Sacerdote
que comanda as orações do time, arquimilionário
banqueiro do bicho, que se cerca de 23 guarda-costas.
Castor de Andrade, numa semana passada toda em estado
de graça
Acabado o massacre sobre o Brasil, a torcida do Bangu
já deixava sambando as arquibancadas do Maracanã
em direção à zona norte do Rio.
No gramado, apenas Marinho, cercado por repórteres
de rádio, uma entrevista emendada na outra,
saboreando a glória. De repente, os olhos do
artilheiro focalizam a figura esguia que abre caminho
entre os repórteres. Marinho corta a frase
pelo meio, à espera da ordem que não
tarda. "Vamos logo". diz Castor de Andrade.
"Só falta você para a gente rezar
e liberar o vestiário." Há seis
anos, desde que Castor voltou a comandar o clube,
ganhe ou perca o Bangu, o ritual é sempre o
mesmo: antes e depois dos jogos, estranhos são
mantidos fora do vestiário e o time reza em
torno de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.
A voz delicada de Castor de Andrade entoa a prece
e o vestiário vive um clima místico.
Aquele bando de homens feitos, de calção
e chuteiras, formam um círculo com as mãos
dadas, incluindo o treinador Moisés, conhecido
como Xerife desde seus tempos de zagueiro truculento.
Todos agradecem o milagre da classificação
para a final da Taça de Ouro e não há
dúvida entre eles sobre quem seria o santo.
Claro, é o mesmo que dirige o clube, apesar
de ter o cargo de presidente do conselho deliberativo
- o presidente no papel, o dentista Rui Esteves das
Dores Filho, é um rapaz obediente de 37 anos,
crescido no bairro de Bangu, que não mexe uma
palha sem consultar o mestre. Castor de Andrade, 59
anos, não tem tempo para cuidar apenas do time
- é um dos reis do jogo do bicho carioca e
presidente também da escola de samba Mocidade
Independente de Padre Miguel, campeã deste
ano. Para ajudar a controlar o Bangu, conseguiu um
outro milagre: nomeou como diretor de futebol Carlinhos
Maracanã, presidente da rival Portela e outro
luminar do bicho carioca.
O Bangu é Castor. Na arquibancada do Maracanã,
domingo, foram agitadas lado a lado as bandeiras vermelho
e branco do clube e verde e branco da Mocidade Independente.
Seu império se confunde e não há
ameaças rondando seu poder. Nesta terça-feira,
ele está intimado a depor na 28ª Vara
Criminal do Rio, num processo em que responde como
um dos 13 envolvidos pelo funcionamento de um cassino
no Clube Umuarama, na Gávea, mas não
parece nem um pouco incomodado. Ao contrário,
nesse domingo era com muita tranqüilidade que
Castor de Andrade circulava pelo Maracanã,
sem nenhum de seus 23 guarda-costas por perto. A seu
lado, apenas dois protetores: os delegados da Policial
Federal gaúcha Irandir Paiva e Carlos Lacerda,
amigos que coordenaram seu esquema de segurança
no primeiro jogo das semifinais, quarta-feira em Porto
Alegre, e vinham completar o trabalho no Rio. Foi
só com eles que Castor se instalou domingo
na cabine 15 do Maracanã - reservada ao superintendente
do estádio -, depois de comandar a prece inicial
no vestiário, antes da partida. Ao passar pela
tribuna, distribuindo autógrafos, Castor reparou
na presença de fotógrafos e sussurrou
para um dos delegados; "Essas fotos não
vão prejudicar vocês?" O policial
balançou a cabeça; "Nada, doutor,
somos seus assessores".
Deu sorte assistir ao jogo de Porto Alegre ao lado
dos delegados, com os dedos em figa, raros goles de
uísque servido por um garçom e apenas
dois cigarros filados de seus acompanhantes no camarote.
Foi no carro do delegado Paiva que Castor chegou ao
Estádio Olímpico, precedido por uma
viatura da Polícia Militar, de sirene aberta.
Antes de ir ao vestiário, desceu o túnel
e apareceu no gramado para examinar de frente a torcida
do Brasil. "Assassino!", "Mafioso!",
"Bicheiro!", urrava a Xavante. O dirigente
não moveu um músculo. "Tudo bem,
é sempre assim. Você vai passando e as
vaias acabam virando aplausos", refletiu. No
vestiário, a meia hora do jogo, enquanto os
jogadores enrolavam as ataduras e calçavam
as chuteiras, Castor estava ajoelhado em frente à
imagem de Nossa Senhora, que acompanha o clube desde
sua última grande conquista, o Campeonato Carioca
de 1966. A imagem foi doada por seu pai, o fazendeiro
Eusébio de Andrade e Silva, o "seu"
Zizinho, patrono do clube, falecido há menos
de um mês. Ao se levantar, Castor parecia tomado.
Batendo, palmas, gritava: "Vamos assinando a
súmula!" Em seguida começou a reza.
No caminho para a tribuna, todos lhe abriam passagem,
reverentes. Ele parece satisfeito, mas acha normal
ser tratado como um ser especial, uma lenda viva.
Conta que no Sul mesmo ganhou um jogo de facas de
um admirador. No Nordeste, recentemente, um rapaz
lhe trouxe para benzer o filho de três anos,
batizado com seu nome. "Minha relação
com o clube é assim: eu não me promovo
com o Bangu, meu prestígio é que ajuda
a promovê-lo", diz.
Castor parece ter sempre algo mais a fazer, é
difícil descansar. No domingo anterior, por
exemplo, depois que seu time realizou o primeiro da
série de milagres derrotando o Internacional
em Porto Alegre, o dirigente mandou o técnico
Moisés dar toda a liberdade aos jogadores naquela
noite e embarcou para o Rio. Os craques já
tinham feito sua parte, agora era com ele. No avião,
veio tramando seu trabalho de bastidores na CBF para
transferir a partida de Pelotas para Porto Alegre,
até que soube da orientação já
estabelecida pela entidade: os jogos nesta fase devem
ser disputados nos melhores estádios de cada
Estado. Estava riscado o pequeno reduto do Brasil
em Pelotas, com seus 25 mil lugares.
Na manhã de terça-feira, completamente
descansado, Castor tomava café com torradas
e frutas junto com a filha Cármen Lúcia,
19 anos, uma bela morena, estudante de Direito, no
espetacular apartamento de frente para o mar, os vidros
com as iniciais C.A. Mastigando uma torrada, ele dava
ordens para o mordomo Hércules, um moreno gordinho
que faz mais do que servir a mesa e supervisionar
o trabalho dos outros empregados. "Entregue 2
milhões àquele senhor daquela casa de
caridade", ordenou o patrão. "E mande
dar uma olhada no banheiro de Cármen Lúcia,
ela acha que está dando cupim no armário."
Aquela hora, Castor já ligara quatro vezes
para Porto Alegre querendo saber se a torcida do Brasil
estava incomodando seus rapazes. Retirou-se para trocar
de roupa e voltou à sala com uma capa de gabardine
azul-marinho. Lá embaixo, onde o esperavam
três seguranças, enfiou o chapéu
italiano, da marca Borsalino, um dos dez de sua coleção,
e rumou para Bangu, a 50 km dali. Num Opala, ele e
o motorista Haroldo. Em outro carro, atrás,
os seguranças.
Bangu, 1 milhão de habitantes incluindo a zona
rural, seu reinado carioca. Ao meio-dia Castor chegava
ao primeiro de seus quartéis-generais, o Estádio
Proletário. Deu uma série de ordens,
pediu ao funcionário Carlinhos um histórico
de toda a campanha do Bangu na Taça de Ouro,
a papelada para profissionalizar o lateral-esquerdo
Baby, ainda amador, e a quantia reservada ao pagamento
dos direitos de arena a quem participara do jogo contra
o Inter, domingo.
Minutos depois já estava na Castor Veículos,
não muito longe, uma espécie de galpão
bem-acabado. Antes de entrar no escritório,
acariciou sua Mercedes-Benz verde-clara, um dos 40
carros estacionados na agência. Em sua mesa
de trabalho, onde aparece sob o vidro numa foto de
jornal cumprimentando o ministro da Marinha do governo
Figueiredo, Alfredo Karam, falou pela quinta vez com
Porto Alegre. Quem atendeu foi Baby, a quem informou
do processo de profissionalização; depois
mandou chamar o apoiador Israel, para avisar que o
Escort prateado, que o jogador namorava há
algum tempo, estava à disposição.
"Olha, eu comprei o carro por 43 milhões",
explicou Castor. "Como te devo 10 milhões
das luvas, sai por 33, tudo bem?"
Uma hora mais tarde despachava em seu terceiro QG,
o principal: a casa na Rua Fonseca, onde a família
morou tantos anos e ele cresceu em sua infância
despreocupada de família já rica, um
garoto que matava as aulas do tradicional Colégio
Dom Pedro II nadando na Praia do Flamengo. Os seguranças
estavam à sua espera. O ex-boxeador Válter
Silva, 50 anos, campeão brasileiro dos meios-pesados
em 1963, homem imenso que Castor chamava de "Anjo
Negro", se perfilou e bateu continência.
Castor, que chegou a cabo do Exército retribuiu
bem-humorado e foi tratar do que o esperava: o meia
Arturzinho estava ali para acertar detalhes de sua
transferência do Corinthians para o Bangu por
450 milhões de cruzeiros. Castor despachou
tudo muito rápido, com espírito prático,
mas se movimentava algo emocionado pela casa que guarda
um bom pedaço de sua vida. Ele abriu a porta
de um quarto, com as paredes mofadas e uns poucos
móveis amontoados, um piano e algumas fantasias
da Mocidade Independente de Padre Miguel. Desde que
sua mãe morreu, o pai fechou o quarto e nunca
mais abriu. Agora, Castor planeja fazer uma grande
reforma, para devolver à casa a vida que só
se vê em seu gabinete. Por trás de sua
mesa de executivo, um retrato do pai na parede, outros
da filha, de Castor ao lado do estandarte da escola
de samba e, caprichosamente emoldurado, seu diploma
da Escola Nacional de Direito. Castor só saiu
dali para almoçar no refeitório. Na
cabeceira da mesa, com seus auxiliares diretos, não
deixava outro assunto dominar a refeição.
Fez o elogio a quem considera o melhor exemplo do
time, o meia Mário: "A garra, a vontade
que ele tem de ganhar, mostra como nosso grupo é
solidário". Um auxiliar resolveu celebrar
outro nome, com a certeza de que o chefe gostaria
da lembrança: "E Marinho, como está
jogando, hein?" Castor se abriu num sorriso:
"Ah, esse é um passarinho".
Um passarinho, todos concordaram que a definição
era perfeita. Castor olhava o relógio, às
19 horas pegaria o avião para Porto Alegre,
onde Marinho - para quem o dirigente "é
o pai que eu não tive" - e todo o elenco
esperavam ansiosos pela chegada do homem, que dá
muito mais confiança a eles com sua presença
física.
Castor de Andrade era a figura mais conhecida do vôo
da Varig naquele início de noite. Ficou na
ala dos não-fumantes, tomou vinho tinto no
jantar, leu e re-leu os jornais cariocas. Na pasta,
que ele vive abrindo para fazer anotações
em bloquinhos de papel, levava um envelope com 16,5
milhões de cruzeiros em dinheiro - prêmio
pela vitória contra o Inter, que entregou ao
chefe da delegação, o advogado Miguel
Ângelo, assim que chegou ao Hotel InterContinental.
Ali mesmo, já tarde da noite, deu entrevista
para uma rádio gaúcha, tomou uma sopinha
de legumes no restaurante Caçarola, do próprio
hotel, e bebeu uma garrafa de água mineral.
Conversou ainda com Moisés e com os dois delegados
da Polícia Federal, que a partir daí
passaram a acompanhá-lo pela cidade.
"Estamos na Libertadores, porra!", berrou
ao entrar eufórico no vestiário depois
da primeira vitória sobre o Brasil, quarta-feira,
no Estádio Olímpico. Em seguida baixou
a voz, indicou aos intrusos o caminho da porta e,
a sós com o elenco, entoou a prece em que dedicou
uma homília particular ao goleiro Gilmar, em
sua opinião o herói da partida. Saiu
do estádio cada vez mais venerado. Não
se ouviam os gritos de "mafioso" ou "bicheiro"
do início da noite. À sua passagem,
o caminho se abria respeitosamente, as pessoas queriam
tocá-lo, pedir autógrafos. Ele atendia
a todos, e piscou um olho: "Viu só? Hoje,
existem poucos dirigentes que têm coração,
paixão mesmo. Não quero me comparar,
mas não podemos nos esquecer de um Gilberto
Cardoso, do Flamengo, um Carlito Rocha, do Botafogo,
ou Cito Aranha, do Vasco, grandes nomes do esporte
brasileiro".
De todas essas legendas, nenhuma tão poderosa
como a de Castor de Andrade, uma lenda viva que circula
pelo Rio acima do bem ou do mal. Um homem arquimilionário,
declaradamente fora da lei, na medida em que sua fortuna
é construída em torno do jogo de azar,
que ele lamenta sinceramente não ser legalizado
("E triste ver o brasileiro tendo de atravessar
nossas fronteiras para isso", costuma dizer).
Um homem que se define assim: "Tenho amigos de
direita, de esquerda e de centro. Eu sempre estou
com o governo, não tenho culpa se ele muda
de lado". Castor está onde sempre esteve:
no poder.
Repórter:
Tim Lopes. Fotógrafo: Rodolpho Machado.
Fonte: Revista Placar, 02/08/1985.
Revista
gentilmente cedida por Leonardo Cesar (leoicet@terra.com.br).