PSYCHE, POLIS, DIKAIOSYNE:


A DIMENSÃO UTÓPICA DO POLÍTICO EM PLATÃO*



Nythamar Fernandes de Oliveira



* Versão original deste artigo foi publicada em Philosophia 7/8 (1994): 41-46. Cf. Tractaus ethico-politicus. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. Cap. II.



SwkratouV de peri men ta hqika pragmateuomenou

peri de thV olhV fusewV ouqen

(Aristóteles, Metafísica 987b)





1 - Justiça, ética e filosofia política

Assim como atribuíra aos naturalistas pré-socráticos uma preocupação unilateral com as primeiras causas materiais do kosmos, Aristóteles viu no sucessor de Sócrates um distanciamento programático das coisas sensíveis (twn aisqhtwn) para ocupar-se de questões morais (ta hqika) e articular sua teoria das formas ou "idéias" --num sentido pré-lockeano (ideaV)-- enquanto causas de fenômenos particulares, pela participação destas naquelas.(1) Como seu mestre, Platão teria herdado o apelo délfico do daimon socrático e procurado a verdadeira justiça na vida privada, antes mesmo de proceder à missão pública do filósofo, através da definição das virtudes e da idéia universal que as viabilizaria. Antes mesmo de falarmos de homens justos ou de diferentes opiniões sobre o que seja justo e injusto, é mister mergulharmos nas profundezas da alma e buscarmos uma definição ideal de justiça, segundo o seu eidoV. A questão da justiça é introduzida no mais famoso diálogo platônico, A República -considerado por muitos o primeiro tratado de filosofia política--com o intuito pedagógico de elevar a alma a um nível idealizado de inteligibilidade capaz de dar conta da melhor constituição (em grego, politeia, como é intitulado no original) para os cidadãos de uma polis contratual. O proto-contratualismo platônico -bem como o seu intrigante proto-comunismo--logra articular num mesmo logos sobre a justiça uma concepção moral de virtudes da alma com um projeto político aristocrático. A corrupção da polis -tão iminente quanto a demagogia inerente aos movimentos das massas--é dialeticamente proporcional à perversão da alma, tentada pelos prazeres imediatos de uma existência finita, destinada à morte. Daí a clara conexão entre imortalidade e virtude, justiça e eternidade. De resto, a imortalidade da alma ocupa um lugar privilegiado na história das idéias que estruturaram a tradição metafísica, de Platão a Descartes, culminando com a crítica empreendida por Kant no século das Luzes. Assim como outros conceitos metafísicos correlatos (p. ex., ser e devir, essência e existência, realidade e aparências, causalidade e substância), a concepção platônica da imortalidade da alma pode ser compreendida em função de uma rede de significantes que, como os conceitos de poliV e yuch, desvelam o próprio modo de estruturação dialética que caracteriza não apenas a composição dos diálogos de Platão, mas a sua filosofia como um todo. Deste modo, as concepções platônicas do bem, da justiça, das idéias, etc, fazem parte de um todo orgânico, uma metafísica, onde a alma humana figura como ponto de encontro do macrocosmos e do microcosmos, do sensível e do inteligível, das aparências e da realidade. Sem nenhuma pretensão estruturalista, esse tipo de approach textual tem sido adotado por autores tão diversos como Jacques Derrida, John Sallis e Ronna Burger.(2)

A doutrina platônica tem sido tradicionalmente dividida em três partes principais, a saber: dialética (p. ex., a questão do conhecimento da realidade e das aparências, nos Livros VI e VII da República), física (p. ex., a questão cosmológica da origem do kosmos, no Timeu) e ética (p. ex., o questionamento moral e político sobre a essência da justiça e das leis, no Político, na República e nas Leis). A metafísica de Platão se relaciona, seguindo esta lógica de divisão, com problemas específicos de epistemologia (na acepção de "gnoseologia"), ontologia e moral. Na verdade, o sentido do logoV em Platão ainda se mantém tão intimamente ligado ao conceito de kosmoV --certamente uma herança dos pré-socráticos-- que seria um exagero simplesmente opor pensamento e natureza como na dicotomia moderna do sujeito que pensa um objeto que lhe é, por definição, oposto (Gegenstand). Uma grande inovação de Platão com relação a Heráclito e Parmênides consiste, todavia, na sua articulação dialética do que une e opõe o ser e o pensamento, problematizando, ao mesmo tempo, a unidade heraclítica de contrários e a redução eleata do pensamento ao ser. A doutrina da alma traduz, portanto, a questão central da chamada "teoria platônica das idéias" em termos de uma dialética entre a yuch (alma) e o destino coletivo da poliV (cidade-estado). Neste capítulo, reexaminaremos a questão da imortalidade da alma no último livro da República, dentro do seu contexto imediato do mito de Er (608c-621d) e do contexto geral da justiça.(3) Diga-se de passagem que este permanece um dos trechos mais enigmáticos do diálogo e da obra completa de Platão, e que certamente mereceria um exame mais meticuloso com relação a seu tratamento em outros diálogos, notavelmente no Górgias e no Fedo. E não é sem ironia que a complexidade desta problemática platônica termina por nos revelar uma compreensão mais profunda da República, e em particular, da sua articulação dialética entre psyché e polis. Se a doutrina platônica da imortalidade não pode ser meramente reduzida a uma sobrevivência pessoal depois da morte, ela também não deveria der descartada como um sofisma quase mítico, sem nenhuma pertinência filosófica. Para Platão, a politeia é a alma da polis, como já observara Allan Bloom(4), na medida em que a psyché aparece como o princípio (arché) por excelência que informa e governa a vida humana, tanto individualmente como coletivamente. Como veremos, a concepção de imortalidade deve ser compreendida à luz da teoria platônica das idéias e dentro do contexto mais amplo da correlação dialética entre a polis e a psyché.



2 - A imortalidade da alma e a polis dos mortais

No seu contexto imediato (608c-611b), o argumento da imortalidade da alma não é primariamente elaborado como a apologia filosófica para a doutrina platônica da justiça. Se a República como um todo pode ser tomada como a verdadeira apologia de Sócrates com referência à polis que injustamente o condenou, a doutrina da imortalidade da alma parece apenas figurar como uma ilustração na discussão empreendida por Sócrates acerca da justiça. À medida em que continua a persuadir Gláucon da excelêcia do conhecimento (episthmh) e da prática (praxiV) do bem, Sócrates conclui que somente se não puder ser destruída (ajanatoV, 608d), a alma nunca sobreviverá ao mal corporal (kakiaV, 609c,d) e jamais alcançará a verdadeira justiça (dikaiosunh). Ao contrário, é somente porque a corrupção natural do corpo não pode destruir a alma (610a), que a alma corrompida ainda pode ser educada de modo a "distinguir de maneira mais clara entre a justiça e a injustiça" (611c) além das aparências da vida corpórea. Afinal, se a alma não fosse imortal, argumenta Sócrates, o injusto triunfaria sobre a justiça no ato mesmo da sua própria morte (610c-e), tornando a busca da justiça arbitrária, como o afirmavam Céfalo, Polemarco e Trasímaco no Livro Primeiro. Foi precisamente com o intuito de superar opiniões (doxa) que Sócrates se propôs a conduzir Adimanto e Gláucon ao verdadeiro conhecimento (episthmh) da justiça. Neste contexto imediato, nota-se claramente que Sócrates está antes corroborando (e ilustrando) uma teoria político-filosófica da justiça do que formulando uma doutrina cosmológica da imortalidade. Com efeito, se a alma é simplesmente compreendida como princípio físico da vida --como o sugere o binômio dualista corpo-alma-- neste caso um pseudo-argumento não teria nada a acrescentar aos nove primeiros livros da República. Portanto, a imortalidade da alma deve ser elucidada por um desenrolar textual (dénouement) do diálogo como um todo.

Assim, ao relacionarmos o argumento da imortalidade com o problema da justiça e com o mito de Er no final do Livro X, estamos explicitamente endossando a tese de Schleiermacher sobre a unidade dramática dos diálogos platônicos, onde forma e conteúdo são inseparáveis.(5) A República pode então ser lida como uma mise en scène dialética da reminiscência platônica, começando e terminando com a descida de Sócrates ao Hades (encenação e narrativa do mito de Er), e tematizando a concepção, construção e destruição da polis (ou a perfeição e corrupção da alma) pela sua ascensão dos infernos. No ápice desta estrutura parabólica encontra-se a famosa alegoria da caverna, ponto central na ascese platônica (Livro VII). De fato, o movimento ascendente da alma que é educada pela filosofia constitui um dos motivos centrais dos chamados "diálogos intermediários" de Platão --notavelmente no Fedro, no Simpósio e na República. Como num jogo de espelhos, a alma se reflete a si mesma e ludicamente reflete suas múltiplas faces e perspectivas ad infinitum. É assim que Sócrates freqüentemente nos aparece reformulando argumentos de seus interlocutores, como se os estivesse repetindo a partir de novas perspectivas. Os deslocamentos textuais assinalados pelas transições entre as três concepções da justiça no Livro I e a constituição(6) da polis em termos do bem nos Livros II a V servem para ilustrar como a ironia de Sócrates realiza sua função propedêutica de manifestar o que permanece oculto, aquilo que não foi visto ainda, na medida em que sua doutrina da alma interage com os desenvolvimentos paralelos de sua doutrina das idéias e de uma teoria ética da justiça.

Uma vez contextualizado, o argumento de Platão em favor da imortalidade da alma serve não apenas para corroborar a unidade de diferentes discursos que integram a sua filosofia (sobre o ser, o saber e o agir) mas une também os cinco primeiros livros aos demais capítulos do diálogo. A imortalidade da alma confirma ainda a tese de que a filosofia de Platão e sua problemática da polis não devem ser opostas como dois "reinos" diferentes do pensamento, mas se completam mutuamente em sua estrutura dialógico-dialética. A notável semelhança entre a divisão tripartida da alma no Fedro e a estrutura triádica da polis-psyche na República é reveladora neste sentido. A fim de ir além das aparências da justiça (aquilo que a justiça apenas parece ser), Sócrates parte em busca da verdadeira natureza da "justiça"(dikaiosyné) e "injustiça" (adikia) na alma humana (375-77). Com efeito, assim como o argumento da imortalidade da alma ilustra a filosofia política de Platão, a própria polis surge primeiro como um mero artifício ilustrativo (369a), precisamente ao introduzir o microcosmos da alma individual. O eidos de tal relação entre a polis e a psyché é tematizado de maneira mais completa no Livro IV, quando Sócrates conclui com espanto "que em cada um de nós existem os mesmos princípios e modos de ser que na polis" (435e). Platão emprega aqui a palavra eidé, que é comumente traduzida como "formas". Ora, é sabido de todos que a metáfora platônica da visão, em particular sua concepção de eidos, orquestra grande parte de seus conceitos. Esta palavra é derivada do verbo eidew, "ver", e pode significar "a aparência de algo", o seu aspecto, como algo aparece aos nossos olhos. Daí o sentido de "forma, classe ou espécie" de coisa. A relação entre polis e psyché não pode, todavia, ser reduzida a uma analogia ontológica de causa-e-efeito ao ponto de fazermos corresponder às três classes da polis (governantes, soldados e "o resto da polis", 414d) meramente uma divisão tripartida da alma. Com efeito, o eidos não implica nenhuma forma de correspondência causal, pois o próprio Sócrates chega a descrever elementos opostos da alma em termos de "classes", isto é, diferentes que caracterizam contrários na estrutura da psyché. Por exemplo, a análise do homem sedento que se abstém de beber é usada por Sócrates para distinguir entre a faculdade racional (logistikon) e a faculdade sensual (epithymetikon). Contudo, um terceiro elemento a ser acrescentado é a faculdade afetiva, thymos ("vivacidade, espirituosidade"), que é caracterizada pela ambigüidade, podendo aliar-se tanto à razão como aos desejos (Livro IV). Neste caso, a razão aparece em oposição principial ao eros --notando-se que a polis não abriu ainda espaços para incluir o filósofo, que só entra em cena no Livro V. Às três partes da alma correspondem portanto as três classes da polis, num sentido estri-tamente dialético. Quanto às virtudes da polis, sophia (sabedoria) e andreia (coragem) são "departamentais", isto é, só podem ser encontradas entre governantes e soldados, respectivamente, enquanto sophrosyné ("temperança" em oposição a hybris, "excesso") e dikaiosyné são estendidas a todas as três classes. Como modelo da polis, a estrutura da alma é hierárquica, governada pela sophia, auxiliada pela andreia; um equilíbrio interno é mantido pela sophrosyné, e a "ordem" (kosmos) é assegurada pela dikaiosyné. A polis ilustra e molda o ser humano, assim como a psyché governa e informa o indivíduo viabilizando a própria vida humana. Todavia, a constituição socrática da polis ideal parece condenada a fracassar na sua constituição de almas capazes de compor tal cidade-estado.



3 - Justiça e utopia social

Neste ponto, podemos levantar a questão crucial de saber se o argumento da imortalidade da alma não teria sido já antecipado pela articulação entre eidos e psyché. Afinal, não é pela construção do político que o eidos dos entes que participam da vida social vem à luz, é manifesto, no próprio evento de constituição da polis? Por outro lado, não é além do temporal, numa concepção que transcende a ascensão e queda das grandes cidades humanas, que o eidos desvela a essência dos seres que as habitam? Qual é a essência da vocação filosófica na polis humana? Se a alma é destinada à contemplação do ser, do que há de verdadeiramente permanente em todo ser, como se dá esta ascese vocacional que une o diverso na visão da unidade do eidos? De acordo com Platão, tudo que pode ser apreendido como eidos é compreendido como logos, pois tudo que é pode ser dito. O ser se manifesta nesta junção do pensamento que reúne o que se manifesta como forma, aspecto, aparência do que é com a sua essência, sua realidade inteligível que só pode ser contemplada por uma conversão da alma ao filosofar. É pelo logos que o amante da sabedoria articula ser e pensamento, a realidade e suas múltiplas aparências.(7) Ora, como deve se dar esta busca erótica e sublime da alma com relação à polis? A cidade dos artesãos, a cidade de luxo e a cidade expurgada devem dar lugar a uma quarta cidade, que vem a ser a cidade do filósofo (473d,e). Neste ponto, no Livro V, atingimos o clímax na investigação platônica da natureza da dikaiosyné e adikia. Sócrates admitira contentar-se em descobrir como uma cidade-estado seria constituída da maneira mais próxima da "nossa descrição" (473a). Todavia, ao discutir o lugar paradoxal do filósofo na polis, Platão parece chegar à aporia do divórcio entre a alma filosófica e o corpo político, como se fosse impossível ordenar uma tal cidade --contrastando com a eterna harmonia do auto-movimento da alma. Vimos que a polis precisa tanto da politeia como o corpo precisa de uma alma para viver. Mas a constituição da polis, a problematização da sua politeia, é tarefa do filósofo. Sócrates discorre sobre a paixão filosófica pelo conhecimento, seu amor pela contemplação da verdade (475e). Para responder à questão de Gláucon sobre o significado de "ver a verdade", Sócrates fala da relação da alma filosófica ao eidé. Sócrates argumenta que somente a alma do filósofo pode manter a distinção entre "o belo em si" (auto to kalon) e as diversas belezas particulares (ta polla kala) que participam do eidos da beleza (476a-d). Uma outra caracterís-tica que distingue o filósofo de outros cidadãos é a capacidade crítica de discernir entre epistémé (conhecimento do inteligível) e a doxa comum (opinião, tradição). Em suma, se os melhores cidadãos devem governar estes devem ser philosophoi. O tema dialético da correlação uno-diverso (hen-panta), que Platão apropria de Heráclito, pode ser compreendido em termos da relação analógica entre conhecimento e bem. O supremo saber é sempre sobre algo superior à justiça e suas virtudes aliadas.(504d) A fim de chegar a uma definição do bem (t'agathon), Sócrates articula uma relação ontológica entre as "muitas coisas belas" e "o bem em si", "uma idéia".(507b) Usando a imagem do sol como fonte suprema de luz, Platão esboça uma analogia entre o bem e a luz, a inteligência e a visão, o que é inteligível e o que é visto.(508b-c) A analogia entre o sol e o bem é corroborada pela ilustração analógica da linha reta dividida, explicando a arte dialética (he dialektike methodos, 533c) opondo visão (ato de ver imagens/ os próprios objetos) e pensamento (matemática/dialética propriamente dita). Assim, a alma dialética é aquela que "apreende o logos do ser [ousia] de cada ente".(534b)

Concluindo, podemos afirmar com Platão que a alma filosófica nunca se encontra completamente no exílio, como se pudesse separar-se do corpo político. Mesmo nas mais adversas condições, é o movimento eterno da alma que sempre renova a vida da polis. Ainda que o argumento da imortalidade da alma não passe de um sinal de esperança utópica, a alma da polis permanece como signo constante da inconstância dos mortais e, portanto, das suas utopias. Se a finitude do ethos originário em Heráclito nos pareceu incapaz de fundar -e fundamentar--uma polis regida por leis humanas, coube a Platão a inovação de articular ética e política numa dimensão antropológica que transcende todos os horizontes das aparências e dos fenômenos sociais, inevitavelmente destinados à corrupção. Platão antecipa, deste modo, não apenas os modelos hipotético-contratualistas que serão retomados pelos jusnaturalistas modernos mas ainda uma dimensão utópica que deve servir de idéia reguladora para modelos abstratos que visariam calibrar as relações concretas entre os mortais sub specie aeternitatis. Contra a banalização de Céfalo e a lei do mais forte de Trasímaco --antecipando a Realpolitik de Maquiavel e o pragmatismo hobbesiano--, o conceito socrático de justiça em Platão nos remete continuamente a um nível de completude ainda por ser alcançado, como se a civitas terrena só encontrasse sua verdadeira destinação na incessante busca de sua arquetípica civitas dei.



4 - O problema do naturalismo ético

A questão do ethos antigo emerge de uma vida política dada, de forma que a ética ou a moral seria sempre tomada a partir de uma existência política. Assim, Aristóteles situa a ética dentro da política ('h politikh) na sua divisão das artes e ciências em teóricas e práticas, na medida em que o supremo bem ou o fim último da ação humana é objeto dessa ciência.(8) Neste sentido, não podemos ainda opor uma moral enquanto teoria normativa a uma ética analítica, ou uma moral substantiva a uma ética (ou meta-ética) teórica, como podemos fazê-lo hoje. Se Kant usa de maneira indiscriminada Moralität e Sittlichkeit --ponto de partida para a crítica de Hegel ao seu formalismo-- a sua fundamentação da moral se propõe precisamente a superar modelos teleológicos de forma a estabelecer a autonomia própria da subjetividade, que só se descobre normativa na modernidade. A subjetividade inerente à liberdade dos modernos é o que distingue, em última análise, o ethos normativo do seu homólogo pré-moderno, em particular, do ethos grego antigo, que poderíamos caracterizar como sendo agonístico, no sentido imanentista sugerido pela genealogia nietzschiana.

Tanto Platão quanto Aristóteles compartilham uma cosmovisão agonística da moral, e as suas respectivas formulações de filosofia prática não poderiam deixar de merecer tal caracterização na medida em que nos remetem ao espírito helênico de luta (agon)-- o grego agônistikos, pelo latim agonisticu, relativo à luta, nos remetendo à luta pela vida. A dificuldade inerente à própria vida humana é contemplada por tais concepções agonísticas da ética. Sem dúvida, em Aristóteles esta dimensão sobressai de maneira explícita e deliberadamente articulada com sua concepção do viver bem, identificada na eudaimonia ou florecer humano. Lembremos que, segundo o oráculo délfico, o "conhece-te a ti mesmo" (gnwji seauton) era correlato ao "nada em excesso" (mhden agan), de forma que o "ser de uma mente sã" (swfronein) caracterizava uma askesis bio-ética, em corpo e espírito. Entre os gregos antigos, a agônistiké era, com efeito, a parte da ginástica que tratava da luta dos atletas. Em Platão, tendemos a separar de tal forma alma e corpo que perdemos de vista a importante dimensão da participação na própria separação operada pela dialética. Interessantemente, Platão menciona o agônistikos como o que ama a luta e a contestação, como o eristikos (Menon 75c). Um século antes, Heráclito já havia tematizado o "conflito" (eris) como princípio de justiça cósmica, como uma tensão natural que permite a própria manifestação e vir-a-ser de todos os entes enquanto opostos (p. ex., calor e frio, luz e trevas, guerra e paz, morte e vida, etc). O que fora tematizado em filosofia já fazia parte, outrossim, da cultura grega antiga, justamente caracterizada pelo seu espírito coletivo de "competição agressiva e de auto-afirmação", agôn.(9) O agôn, como a agora, era uma assembléia, em particular, uma reunião pública para assistir aos jogos, um lugar de disputas, uma arena, um estádio. A palavra era usada tanto para práticas esportivas como os Jogos Olímpicos como para disputas jurídicas, bélicas e dramáticas. Não seria questão aqui de discorrer sobre a vida social dos gregos, seus jogos de linguagem e sua cultura agonística, sua agonizante democracia de minorias --afinal, crianças, mulheres, metecos e escravos não tinham direitos de cidadania. A prática social em questão, a agonística enquanto praxis, por outro lado, definia um estilo de vida, um modus vivendi, um ethos, um caráter comum a cidadãos e, numa menor proporção, a mulheres, crianças, metecos, escravos e a excluídos em geral que viviam em Atenas. Esta desproporcionalidade é precisamente o que caracteriza o espírito agonístico da Grécia Antiga, na sua visível distinção entre nobres e escravos, entre os mais fortes e os mais fracos. Distinção que, como mostrou o grande filólogo Nietzsche, é "inocente" com relação aos juízos morais das religiões judaico-cristãs e com relação aos ideais de liberdade, igualdade e universalidade da modernidade pós-revolucionária. Sem incorrermos num historicismo ou num esteticismo que privilegie o espírito agonístico grego para criticar os valores democráticos de uma modernidade decadente, é mister que mantenhamos os quase vinte e cinco séculos que nos separam de autores como Platão e Aristóteles, que muitas vezes têm sido apropriados hoje de maneira um tanto descuidada. Somente assim poderíamos aproximar esses pensadores clássicos das suas respectivas apropriações em autores modernos, como por exemplo, em Kant e Hegel, na contraposição de um modelo universalista a um modelo particularista de ética e filosofia política.

NOTAS



1. Cf. ARISTÓTELES, Metafísica 987ab.

2. DERRIDA, Jacques. "La pharmacie de Platon". In: La dissémination, Paris: Seuil, 1972; SALLIS, John. Being and Logos: The Way of Platonic Dialogue. Atlantic Highlands: Humanities, 1975; BURGER, Ronna. Plato's "Phaedrus": A Defense of a Philosophic Art of Writing. The University of Alabama Press, 1980.

3. Os textos originais consultados são os da edição bilíngüe (grego-inglês) da Biblioteca dos Clássicos Loeb, vols. V e VI, tr. Paul Shorey, Cambridge: Harvard University Press, 1982.

4. BLOOM, Allan. The Republic of Plato. New York: Basic Books, 1968, p. 440.

5. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Introduction to the Dialogues of Plato, tr. W. Bodson, (New York: Arno Press, 1973), p. 71.

6. Em grego, politeia nos remete à "constituição" da polis para seus "cidadãos" (de cada um que a compõe) e à "ordenação" do múltiplo, do diverso ('oi polloi , "muitos") sob as mesmas leis.

7. legein traduz tanto "dizer" como "reunir, ordenar junto." Ver Fedro 249c "um homem deve compreender o que é dito conforme o eidos".

8. Cf. ARISTÓTELES, Ethica Nicomachea 1095a12-20; Metafísica 1025b; Política 1261ab.

9. Cf. JONES, Peter V. et al. The World of Athens: An introduction to classical Athenian culture. Cambridge University Press, 1984, p.132.



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