Graciliano Ramos, a visão de mundo de um cidadão-escritor
A imagem de pedra em cascalhos ultrapassa a simplória fronteira dos olhos sertanejos, acostumados apenas àquela cor que nem é branco nem cinza: uma cor própria do sertão
Arco-íris nenhum jamais essa cor fará parte. A alma de quem lá nasceu não é senão uma continuidade do clima e da paisagem quase nunca esverdeada. E por mais que se queira expressar tão somente sentimento, a força bruta do natural se impõe com todo vigor. O homem é taciturno, parado, de olhar duro, porque tudo em sua volta é rígido e parado: jeito impiedoso que o sertão tem na convivência com os nascidos por lá.
E reside aí, sem mar e como muito sol, um dos paradoxos daquelas paragens: a miséria, a dor estigmatizante, a falta de qualquer perspectiva em vez de tornarem o ser em alguma coisa amolecida, tornam-no, isto sim, num hercúleo homem subdesenvolvido. Onde ele, assim nesse estado; onde ele, com um fardo de toneladas sobre os ombros, só osso; onde ele, esquecido pelos poderes divinos e humanos, consegue represar tanta força para encarar a existência? Enigma esse, pois o que leva a enfraquecer, nele fortalece.
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Judeia
Localizada entre o mar Morto e o mar Mediterrâneo, faz fronteira ao norte até as colinas de Golan e ao sul até a faixa de Gaza; ambas regiões em contínuo conflito entre Israel e Palestina. Foi também o nome dado a toda a província do Império Romano no Oriente Médio, a partir de 63 a.C.. Com a adoção do Cristianismo por Roma, passou a ser considerada a Terra Santa. |
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O estranho relacionamento homem-ambiente, em que a inclemência, antes de ser um objeto de distância, aproxima, como uma relação amorosa mórbida, nos atrai e nos faz questionar sobre a força mística que cerca o sertanejo. A ignorância pode levá-lo ao divino; mas a semelhança áspera do seu torrão leva-o, também, à inevitável comparação com a terra onde nasceu o Filho do Homem. Escolhido será o que sofre aqui, pois, com certeza, um reino de pão e mel o aguardará no duvidoso paraíso, que o cético hesita em pintar.
Não faz mal. Tanto faz a Judeia como Salgueiro , os sulcos em cada rosto extrapolam a mera convenção regional: o homem é um e todos em qualquer lugar. A soma de províncias faz a universalidade da alma humana. As águas do Reno são amareladas e doces, como as do Una em tempo de bom inverno e verão ameno. Pois não é verdade que a fome daqui, que mata crianças tão tenras ainda, é a mesma que nas estradas arrasta os molambos africanos de olhos e vértebras à mostra? A dor é uma linguagem universal. Equivocada a ideia de fechá-la num espaço de um lugar. Amplia-se a fronteira de nossa província-mãe. Aniquilam-se as porteiras que não nos deixavam ver os currais vizinhos. O mundo é um grande cercado. Mudam-se as roupas; mas todo vaqueiro tem o chapéu, o olhar trancado e o cheiro de vaca, que são comuns a todos. O resto é não ter noção de humanidade.
O carcará sobrevoa. O borrego novinho nem desconfia. É sagaz o bastante para ganhar fama no sertão. Tempo não houve para o gadinho crescer e, claro, morrer de fome na terra estorricada. Já o sangue espirra por todos os lados. Apenas um estremecimento, suculenta a carne fresca. Devorada em alguns minutos. A lei do mais forte prevalecendo. Cabramacho no sertão, quem vive nele tem de ser.
O menino viu tudo, não há como esconder o rosto, cegar a vista que o sol acostuma à luz intensa. O menino viu, sim. Forjou o caráter do menino a vida endurecida. A rudeza agreste dos pais. Cedo, tão cedo formou um calo emocional. E apesar de tudo, tornou-se uma criatura que foi um misto de imagem seca, aparente aspereza, com um profundo sentimento de humanidade. Assim se deu o milagre. Um predestinado. A natureza não deixa o meio interferir na vida dos eleitos. Aquele clima da infância só de leve influenciando sua mente. Observador, tirou lições do que assistiu, para contribuir com um possível mundo melhor. É bem verdade, a seu modo: lâmina fria, que não corta, porém. Comedido, parcimônia necessária, falar só o suficiente: não paga a pena um floreio estéril. Pedra fértil, Graciliano; rocha bondosa. Líder não era. Popular também não, como um Jorge Amado. Fez uma literatura a serviço do povo, contudo.
O ESPÍRITO DE GRACILIANO
Atesta isso o prefeito da cidadezinha medíocre. Um relatório ao governo, entre uma prestação de conta e outra, a verdade social, o retrato da pobreza em todos os níveis, a fina ironia como denúncia. Sua visão de mundo se delineando para o leitor. Os desmandos dos grandes proprietários, a aplicação das leis só para punir os pobres.
Esse relatório é uma peça literária. Já encarna o espírito de Graciliano. Traz à tona as concepções do autor sobre a sociedade e as relações do poder de mando com o homem comum, desprotegido este de tudo, carente do menor direito. O prefeito de Palmeira dos Índios prestando contas ao governo estadual estava, na verdade, abrindo as portas para a sua obra literária. Mais ainda, abriu as portas para uma Literatura que, partindo do regional, da visão provinciana, tornou-se cosmopolita, ultrapassou a barreira de uma região, para ser universal. Universalidade que só os grandes artistas conseguem atingir.
Universo: "tudo o quanto existe. Toda a matéria disseminada no espaço". Universal: "comum a todos os homens".
E dele se disse mais de uma vez: Universal.
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