Contra a maré

Cartunistas avaliam charge de João Montanaro, na Folha , que causou desconforto por retratar tsunami


Reprodução

Desenho de João Montanaro publicado na Folha um dia depois da tragédia

DIOGO BERCITO
DE SÃO PAULO

O cartunista da Folha João Montanaro, 14, achava que a charge dele publicada no último sábado, 12/3, "passaria despercebida".
Mas o desenho de uma onda carregando destroços, veiculada um dia após o tsunami que devastou o norte do Japão, foi o tema mais comentado nas cartas enviadas ao jornal nos dias seguintes.
Alguns leitores apontam desrespeito ao retratar a tragédia, e a discussão chegou à escola em que estuda. Ele foi chamado de "babaca" por colegas. Entre artistas, porém, o desenho foi elogiado.
A ilustração toma como inspiração a xilogravura "A Grande Onda de Kanagawa", de Katsushika Hokusai (1760-1849), realizada entre 1830 e 1833. Nesta versão, ganhou destroços flutuantes, fogo e uma usina nuclear.
A opção de reaproveitar um símbolo da cultura japonesa é um dos aspectos da charge que recebem ao mesmo tempo críticas e loas.
"Os japoneses prezam muito seus ícones", explica a pesquisadora Sonia Luyten, autora de "Cultura Pop Japonesa" (ed. Hedra). "Além disso, não é hora de tocar nesse assunto, acho inoportuno."
Já o artista Ziraldo vê a referência por outro enfoque. "É uma homenagem à arte japonesa! Eu gostaria de ter tido essa mesma ideia."
O quadrinista Gabriel Bá, que publica na Ilustrada, também apoia a sacada. "O artista tem que dar a cara a bater. Ele foi corajoso."


"Minha intenção não era fazer uma piada", diz artista

Chargista da Folha diz que não se sentiria à vontade para desenhar política um dia após o desastre japonês

Garoto afirma estar seguro da escolha que fez; artistas apontam mau humor e "chatice" excessivos de leitores

DE SÃO PAULO

João Montanaro já tinha decidido qual seria o tema da charge de sábado quando acordou na sexta-feira. Então, viu na televisão imagens de prédios se desfazendo em meio ao mar que avançava.
"Não dava para fazer um desenho sobre política!", diz.
Ao decidir retratar o tsunami, Montanaro lembrou-se da xilogravura de Katsushika Hokusai. Foi uma das opções que ele enviou à Folha para aprovação e publicação.
"Fiquei surpreso com as críticas", diz. "Acho que não entenderam a charge."
Apesar da má recepção, inclusive na escola, o garoto diz estar seguro da escolha. "Fiz o certo, minha intenção não era fazer uma piada."
O ilustrador Adão Iturrusgarai, que publica na Ilustrada, defende Montanaro.
"É um desenho superimparcial. É inocente como o ilustrador, que é um jovenzinho", diz. "De mau gosto foi a tragédia em si." E completa: "O humor funciona por conta dessa contraonda, desse mau humor e da burrice dos críticos".
Para o artista Allan Sieber, que também publica na Ilustrada, Montanaro "fez o trabalho dele e a escolha da ilustração valeu a pena".

BOM SENSO
O pesquisador Gonçalo Junior, autor do livro "A Guerra dos Gibis" (Companhia das Letras), afirma que quem perdeu o bom senso, no caso da charge, foram os leitores que se manifestaram contra.
"Vivemos na era da chatice e do politicamente correto. É uma reação paranoica, o desenho retrata as mesmas coisas que todos esses vídeos que estão no YouTube."
Exagerada ou não, a recepção da charge de Montanaro foi semelhante à vista na Malásia nesta semana.
O desenho de Mohamad Zohri Sukimi, publicado no jornal "Berita Harian", mostrava o herói japonês Ultraman fugindo de uma onda . Uma petição on-line rodou o mundo. O jornal se retratou.
"Apesar de o desenho de Montanaro não ter me incomodado, consigo entender por que alguns leitores se sentiram desconfortáveis", diz Sidney Gusman, editor-chefe do site Universo HQ.
"Fico imaginando como eu reagiria se tivesse perdido alguém nesse desastre."
Outra razão apontada para a má recepção é o desconhecimento do desenho original.
"Quando vi o rascunho, perguntei a ele se as pessoas não iriam se chocar", diz Mario Sergio Barbosa, pai de Montanaro. "Mas eu não conhecia a referência dele."
Há também a possibilidade de o leitor não estar acostumado ao gênero da charge.
"As pessoas ligam a palavra "charge" a coisas alegres, mas a ideia é ser um convite ao pensamento", diz o quadrinista Mauricio de Sousa.
O jornalista e professor de letras da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Paulo Ramos concorda.
"Quem está acostumado entende melhor desenhos como o de Montanaro. Outros veem as charges como necessariamente uma piada e, por isso, se incomodam."
Para Jal, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, "é nesses momentos de tragédia que temos de fazer críticas".

(DIOGO BERCITO)


Frases

"As pessoas não sabem lidar com humor quando se trata de um assunto delicado. Elas levam para o lado pessoal. Mas o trabalho do artista é colocar [assuntos] em pauta e dar a cara a bater. Ele foi corajoso"
GABRIEL BÁ
quadrinista da Folha

"Não gostei. Não é hora de brincar com isso. É como um artista japonês usar o [quadro] 'Abaporu' para criticar o Brasil. Não temos de mexer com isso. É inoportuno porque os japoneses prezam muito os ícones deles"
SONIA LUYTEN
pesquisadora

QUADRINHOS

Chiclete com Banana

Angeli

Piratas do Tietê

Laerte


Bifaland, a Cidade Maldita

Allan Sieber


Daiquiri


Caco Galhardo

Níquel Náusea

Fernando Gonsales


Mundo Monstro


Adão

Macanudo


Liniers

Sobreviventes relatam a destruição que não foi registrada pela TV ou Internet

The New York Times
Martin Fackler*
Em Minamisanriku (Japão) 


  • Equipe de resgate faz buscas por sobreviventes em área atingida pelo tsunami Equipe de resgate faz buscas por sobreviventes em área atingida pelo tsunami
Jin Sato, prefeito deste tranquilo porto pesqueiro, tinha acabado de fazer um discurso na assembleia municipal sobre a necessidade de fortalecer os preparativos para um tsunami quando ocorreu o terremoto. O tsunami ocorreu pouco mais de meia hora depois, ultrapassando em muito seus piores temores.

Ele e outros sobreviventes descreveram um muro de água marrom espumante que atravessou esta cidade de mais de 17 mil habitantes tão rápido que poucos puderam escapar. As autoridades municipais disseram que mais de 10 mil pessoas podem ter sido engolidas pelo mar. Mesmo muitos daqueles que chegaram a um terreno mais elevado não foram poupados de ondas que os sobreviventes disseram ter chegado a mais de 18 metros de altura.

“Foi uma cena do inferno”, disse Sato, 59 anos, com os olhos vermelhos de lágrimas. “Foi além de qualquer coisa que poderíamos imaginar.”

Grande parte da destruição provocada pelo tsunami, que atingiu a costa nordeste do Japão na sexta-feira, foi registrada pela televisão, para que todos pudessem ver. Mas a devastação mais letal ocorreu em comunidades pesqueiras remotas como esta, onde os moradores disseram que as montanhas íngremes e as pequenas baías ampliaram o tamanho da onda esmagadora, não registrada por helicópteros dos noticiários de TV ou vídeos de Internet.

Os únicos registros agora são os relatos dos sobreviventes e, enquanto a notícia sobre o que aconteceu aqui começa a se espalhar, mesmo o Japão atingido pelo desastre se vê horrorizado.

Nesta cidade, e em outras próximas, o tsunami criou cenas de destruição quase apocalíptica. Sobreviventes traumatizados agora pensam que os vivos e os mortos foram separados por um mero capricho de uma parede de água devoradora, veloz, e por decisões às vezes de fração de segundo.

Yasumasa Miyakawa, 70 anos, que é dono de uma lavanderia no piso térreo de sua casa, disse que ele e sua esposa correram para uma colina quando ouviram o alerta de tsunami. Então Miyakawa voltou, porque esqueceu de desligar o ferro e teve medo de que pegaria fogo.

Quando ele saiu de sua loja, ele ouviu as pessoas na colina acima dele gritando: “Corra!” Uma onda investia contra ele, a cerca de 800 metros de distância na baía, ele contou. Ele entrou em seu carro e quando virou a chave e engatou a marcha, a onda já estava quase sobre ele. Ele disse que acelerou para fora da cidade perseguido pela onda, que se erguia em seu espelho retrovisor.

“Foi como uma das cenas ridículas de um filme de ação, exceto que foi real”, disse Miyakawa, com suas mãos tremendo. “Eu estava a 70 quilômetros por hora e a onda estava me alcançando. Ela foi assim rápida.”

Quando ele voltou na manhã seguinte, ele encontrou sua casa reduzida às fundações e ouviu fracos gritos de ajuda. Ele os seguiu até o prédio de apartamentos vizinho, onde encontrou uma mulher tremendo e molhada em meio ao frio de março. Ele então a levou para um abrigo. “A onda matou muitos”, ele disse, “mas poupou alguns poucos”.

Entre estes estavam as crianças da cidade, cujas escolas ficavam localizadas no alto de uma colina.

De fato, as crianças disseram que nem mesmo perceberam a onda. Ryusei Tsugawara, um estudante de 13 anos, disse que percebeu que algo estava errado quando a aula chegou ao fim e os professores não deixaram as crianças irem para casa. Em vez disso, as crianças permaneceram na escola até o dia seguinte, quando seus pais vieram buscá-las.

Alguns pais não vieram, e as crianças desafortunadas foram colocadas aos cuidados de amigos e parentes, disseram as autoridades municipais. “A cidade desapareceu e tenho medo de permanecer aqui”, disse Ryusei.

Uma decisão de subir na cobertura da prefeitura provou ser fatídica para muitos. Sato, o prefeito, disse que ele e outros funcionários municipais correram para observar a onda que se aproximava do alto do prédio, que por estar a três andares de altura e a 800 metros da costa parecia ser um local seguro.

Em vez disso, disse Sato, a água atingiu o prédio e varreu seu teto, o prendendo contra uma grade de ferro, com sua cabeça pouco acima da água. Ele disse que foi o único motivo para ter sobrevivido. Das 30 pessoas que estavam na cobertura, apenas 10 sobreviveram se agarrando à grade ou à antena.

Após o recuo das águas, Sato e outros sobreviventes trêmulos na cobertura reuniram pedaços de madeira e espuma para acender uma fogueira. Na manhã seguinte, eles usaram algumas cordas de pesca para descer. Aproximadamente 7.500 sobreviventes se reuniram em abrigos nas colinas, onde permanecem sem eletricidade, aquecimento ou água encanada, aguardando por ajuda de fora.

As autoridades municipais disseram que aproximadamente 10 mil moradores estão desaparecidos, apesar de não saberem exatamente quantos, porque muitos dos registros e documentos da prefeitura foram destruídos pela onda. Mil corpos já foram encontrados, segundo o noticiário local, um número que as autoridades se recusaram a confirmar ou negar. Muitos mais devem estar presos em escombros, ou enterrados sob a lama marrom que o tsunami deixou para trás.

De modo semelhante em Kesennuma, a aproximadamente 25 quilômetros ao norte daqui, as autoridades disseram que uma baía de 10 quilômetros que acolhia uma cidade também provou ser sua ruína, canalizando e comprimindo o poder do tsunami até, no final, a onda se erguer a quase 15 metros de altura.

A escala da destruição, disseram as autoridades, ultrapassou em muito os modelos de pior cenário das projeções dos especialistas em tsunami. A onda arrasou completamente aldeias de pescadores e enclaves residenciais de cima a baixo de um estreito, destruiu a usina de tratamento de esgoto da cidade e destruiu mais de 2,5 quilômetros de lojas e apartamentos em seus arredores.

Ela avançou por um rio e alagou o novo distrito de varejo, saltou por cima do muro do porto, virou à esquerda e arrasou quadras inteiras do centro velho da cidade, invadindo prédios inteiros 100 metros ou mais.

Segundo o mais recente levantamento, aproximadamente 17 mil ficaram ilhados, ou mais de um entre cinco habitantes, e havia 211 mortos no necrotério.

Haverá mais, pois a simples escala dos estragos impede os esforços de contar os mortos e desaparecidos. As autoridades de emergência dizem que os cadáveres presentes em centros comunitários periféricos ainda não foram computados. Equipes de resgate de Tóquio e outros lugares estão apenas iniciando as buscas em muitas áreas.

Mas as autoridades não estão preocupadas com o número de mortos por ora. Há muito mais o que fazer.

“Ao longo da costa, tudo desapareceu”, disse Komatsu Mikio, o chefe das finanças em Kesennuma. “Ela foi totalmente varrida. Nós não estamos priorizando a recuperação dos corpos. Nós precisamos liberar estradas, restabelecer o fornecimento de eletricidade e água. Essa é nossa meta principal. E enquanto fizermos isso, nós encontraremos os corpos.”

*Michael Wines, em Kesennuma (Japão), contribuiu com reportagem.
Tradução: George El Khouri Andolfato

Igreja inicia excomunhão de padre que financiou dois abortos

El País
Camilo S. Baquero
Em Barcelona (Espanha) 


Em uma situação inédita dentro da Igreja Católica espanhola, o Arcebispado de Barcelona anunciou ontem que estuda a excomunhão de um de seus sacerdotes por ter ajudado a abortar duas meninas de 14 e 15 anos. Trata-se do padre Manel Pousa, reconhecido na cidade por seu trabalho em bairros humildes e em prisões. O "Pare Manel", como também é chamado, revelou em um livro que tinha financiado a intervenção nas menores porque elas pretendiam abortar em sua casa, para assim evitar o risco de que morressem de hemorragia.
Pousa ajuda os moradores de bairros operários como Trinitat e Roquetes através de uma fundação que leva seu nome e que foi reconhecida, entre outros, com a Creu de Sant Jordi, o galardão máximo concedido pela prefeitura. Ele arrecada recursos sempre que pode: desde roupas que lhe dão os abonados do Clube de Natação de Barcelona até as receitas de espetáculos em que colaboram artistas como Joan Manuel Serrat ou, outrora, Pepe Rubianes.
Seu trabalho de 35 anos de sacerdócio o transformou em uma pessoa reconhecida em Barcelona, mas setores católicos conservadores o veem com reservas, pois Pousa defende posições polêmicas e incômodas a respeito de temas como o casamento homossexual (na verdade, casou vários casais na prisão) ou o sacerdócio feminino. Também é um defensor do celibato opcional e admite que vive com "uma companheira", Conchita, embora afirme que não mantêm relações sexuais.
Todas essas reflexões foram recolhidas pelo escritor Francesc Buxeda em seu livro "Pare Manel. Més a prop de la terra que del cel" (Pare Manel. Mais perto da terra que do céu - Angel Editorial), publicado em fevereiro deste ano. O texto traz pensamentos como este: "Crer em Deus não é crer cegamente em uma norma de boa-fé, educação, bons costumes", e sim "dar de comer ou beber" aos pobres. Também acrescenta: "Sou tão da Igreja quanto o papa. Pode ser que o que eu digo soe mal para extrema-direita, mas essa gente não vai me afastar de minha Igreja".
No entanto, a parte do livro pela qual o arcebispo de Barcelona, Lluís Martínez Sistach, criticou Pousa foi a que conta como ele ajudou duas menores a abortar. Pousa, que anunciou ontem que não fará declarações até que acabe a investigação do arcebispado, declarou-se em várias ocasiões "antiaborto".
Segundo ele, a decisão de ajudar as jovens foi impelida pela ideia de "cometer um mal menor para evitar outro maior". Segundo o livro, o sacerdote tinha na cabeça a lembrança de outra menor que morreu de hemorragia depois de abortar sem qualquer assistência em casa, o que também o motivou a pagar os abortos. Pousa revelou o episódio em uma entrevista em 2008. O tema foi retomado por blogs e sites católicos. No texto se queixa de que a versão jornalística não captou o contexto em que ele tomou a decisão.
O entorno de Pousa afirma que por trás da decisão de Sistach está o grupo ultracatólico E-Cristians e os cardeais de Madri. O próprio sacerdote reconhece no livro que se estivesse em Toledo "já teriam me excomungado e tirado de padre".
A nota da cúria em que se informa sobre o início das investigações elogia o trabalho do sacerdote: "Essas diligências preceituais pela normativa canônica não impedem de reconhecer o trabalho social que há muitos anos este sacerdote realiza a serviço dos grupos mais necessitados de nossa sociedade".
O arcebispado diz que serão abertas diligências de ofício para esclarecer a participação do padre no aborto, para dar cumprimento ao Código de Direito Canônico. Segundo essa norma, o fato de cooperar em um aborto leva automaticamente à excomunhão "latae sententiae", embora previamente se deva investigar.
Segundo Josep Casanovas, professor de direito na Universidade de Barcelona e Esade e especialista em tribunais da Igreja, o início da investigação "não quer dizer que se vá excomungar diretamente o padre". Acrescenta que Pousa tem direito a colaborar dentro do processo com seu depoimento. Casanovas acredita que será difícil demonstrar que o Pare Manel foi "cooperador necessário" do aborto, isto é, que sem sua ajuda não teria sido possível realizar a interrupção da gravidez, condição para poder excomungá-lo.
Francesc Buxeda, o autor do livro, afirmou que o encontro em que Sistach anunciou a decisão ao Pare Manel "foi cordial", embora acrescentasse que todo o episódio os distanciou. "É lógico que o arcebispado atue de acordo com seus códigos. Outra coisa é que seja coerente com a realidade social. A Igreja não está preparada para dar soluções reais aos problemas reais", indicou o jornalista.
Pousa continua com sua vida normal e, segundo seus amigos próximos, está tranquilo. Segue uma de suas máximas: "Cada um deve ser livre para poder adaptar a religião a sua maneira de viver".

Um sacerdote perto da terra
História de dois abortos. "Nunca recomendei a essas meninas que abortassem, lhes dei a opção de dar seus bebês em adoção ou de ajudá-las até que completassem 18 anos. Mas juraram a Ana [a educadora] que abortariam igualmente, e no último momento decidi pagar. (...) Pedir uma entrevista aos serviços sociais era lento demais, passaríamos do prazo. (...) Não sou a favor do aborto."
Casamento homossexual. "São casais que se casaram previamente pelo civil e depois querem uma cerimônia religiosa para dar graças a Deus por seu amor. Hoje não é ilegal canonicamente. Se você disser que isso é um casamento seria ridículo. As pessoas têm direito a dimensionar religiosamente sua festa, independentemente de sua orientação sexual."
Sacerdócio feminino. "Em minha família eclesiástica não posso condenar as igrejas que não ordenam mulheres (...) Quem quiser ser sacerdotisa que vá à anglicana."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Deus salve o Queen - Pedro Caiado

Os 40 anos da banda ganham exposição, filme com Sacha Baron Cohen no papel de Freddie Mercury, documentário da BBC e uma série de discos

Eu nao vou ser uma estrela, eu vou ser uma lenda." Foi sem modéstia que, há exatos 40 anos, Freddie Mercury - com Brian May, Roger Taylor e John Deacon - iniciava a banda que mudaria o cenário do rock. O grupo, severamente atacado pela crítica por seu estilo musical supostamente ridículo e teatral, provou ser o preferido do público a cada novo álbum lançado: foram 18 a alcançar o topo das paradas, 150 milhões de cópias vendidas e 700 apresentações pelo mundo. Mesmo após o fim, o sucesso continua - como prova o musical "We will rock you", em cartaz no circuito londrino desde 2001, que mantém vivas as melodias do quarteto e já soma mais de 12 milhões de ingressos vendidos. O valor do Queen para a música parece imensurável, e o aniversário de sua formação está sendo comemorado à altura. A curiosa história dos seus primeiros anos é tema da exposição "Stormtroopers in stilettos: The early years", que acaba de passar por Londres, onde terminou no último sábado, e agora percorrerá as principais cidades do mundo durante o "ano Queen" - o Brasil está na lista, mas ainda não há confirmação. Além disso, dois discos de "Greatest hits" foram relançados, e novas edições dos cinco primeiros álbuns da banda chegam às lojas remasterizados no fim deste mês, cada um trazendo gravações extras como bônus. Também serão lançadas três compilações de lados B, incluindo uma das canções mais populares cantadas pelo baterista Roger Taylor, "I"m in love with my car". Tem mais. No cinema, Hollywood inicia as filmagens da biografia de Freddie Mercury, escrita por Peter Morgan (de "Frost/Nixon" e "A rainha"), estrelada pelo ator britânico Sacha Baron Cohen (de "Borat") e produzida pela produtora de Robert De Niro. E, na TV, a BBC prepara para junho um documentário com entrevistas inéditas de Brian May e Roger Taylor.
Montada em um antigo depósito na famosa rua Brick Lane, em Londres, a exposição revela os bastidores do começo da história do Queen em detalhes, desde antes da formação, em 1971, até o histórico show gratuito para 250 mil fãs no Hyde Park, em 1976. Antes do Queen, o jovem Farookh Bulsara (nome real de Freddie Mercury) vendia roupas e quinquilharias no badalado mercado do bairro de Kensington, até encontrar o guitarrista Brian May e arriscar a criação de uma banda. Na época, sua clientela na feira incluía nomes como David Bowie, Jimmy Page e os Rolling Stones.
Um passeio pela mostra ajuda a entender a história por trás dos primeiros cinco álbuns da banda e do ícone Freddie Mercury, que nasceu em Zanzibar, na Tanzânia, e mudou-se para o Reino Unido com o objetivo de estudar moda, largando tudo mais tarde devido à sua obsessão pelo rock"n"roll. "Ele assistiu a Jimi Hendrix 14 noites seguidas em diferentes bares", disse Roger Taylor sobre Mercury em entrevista recente. "Nós nos entendemos imediatamente. Tínhamos o sonho de trabalhar numa banda, mas a única maneira de viver naquela época era vendendo o tipo de roupa excêntrica que adorávamos vestir", contou Taylor sobre a vida nos tempos em que o sucesso era apenas um sonho. Por meio de vídeos, gravações, rabiscos de letras de músicas, LPs, imagens do fotógrafo Mick Rock e extravagantes figurinos usados por Freddie durante suas turnês, a exposição é pura nostalgia.
A maioria das imagens exibidas veio do arquivo do guitarrista Brian May. "Eu costumava ficar envergonhado ao ver estas imagens, mas me sinto melhor atualmente. É como olhar para as minhas crianças", confessou o guitarrista em recente entrevista. Murais pela exposição contam o esforço da banda em busca do sucesso, como nos depoimentos de produtores e engenheiros de som que lembram os longos turnos de 15 horas em estúdio. "Mercury e May praticamente não se moviam da mesa de som", conta um colaborador de estúdio. A banda, que conseguiu um contrato com a gravadora EMI em 1972, fracassou com o lançamento do primeiro single e álbum. "Foi traumatizante", confessa Taylor. "Nós sempre tivemos medo de ficar para trás. Levou tanto tempo para termos algum sucesso...", declara o baterista. Já na revista "Time Out", o fotógrafo Mick Rock comparou a enorme confiança do Queen com a de Lady Gaga: "Desde o início eles sabiam que seriam uma banda gigante. Foi como quando eu conheci Bowie pela primeira vez, ele emanava confiança; algo que encontrei recentemente em Lady Gaga. Eu a conheci seis meses antes de seu enorme sucesso, e ela me disse: "Em alguns meses eu serei um estouro mundial"."
A banda que certa vez teve suas músicas descritas como "lâminas descartáveis" pelo próprio líder - "Use-as, querido, depois as jogue fora" - está mais por cima do que nunca.
CINCO TEMPOS
1971
O COMEÇO: A banda Smile, formada em 1968 pelo guitarrista Brian May e pelo baixista Tom Staffell, muda de nome para Queen no fim de 1970, por sugestão do amigo Farookh Bulsara, um tanzaniano que logo passaria a se chamar Freddie Mercury.
1974
SUCESSO: Depois de dois discos, "Queen" e "Queen II", influenciados pelo rock progressivo, a banda começa a atrair mais a atenção com "Sheer heart attack", que trazia "Now I"m here" e "Killer queen". Os figurinos ousados também se tornam populares entre os fãs.
1980
POP: Depois de conquistar o mundo do rock, o Queen, que sempre fundiu gêneros, assume um som mais pop com o disco "The game", o primeiro a incluir sintetizadores, com sucessos como "Crazy little thing called love". A banda toca no Morumbi, em São Paulo, em 1981.
Arquivo
1985
ROCK IN RIO: O ano começa com os históricos shows no Rio, dias 11 e 18 de janeiro, e uma semana com Freddie Mercury comandando festas homéricas no hotel Rio Palace (hoje Sofitel). A banda é a principal atração do Live Aid.
1991
O FIM: Depois da turnê "A kind of magic", a banda tira longas férias, quando a saúde de Freddie começa a declinar, por causa da AIDS. O Queen ainda lançaria "The miracle", em 1989, e "Innuendo", em 1991. O cantor morreria no dia 24 de novembro.

Fukushima, Belo Monte e a novela das 9 - Agostinho Vieira

Procura-se uma fonte de energia confiável, que mantenha a geladeira funcionando vinte e quatro horas por dia, deixe o escritório refrigerado e garanta a nossa novela das nove. Exige-se que seja segura, não exploda e nem mate de câncer quem mora na vizinhança. É fundamental que não destrua florestas, contamine rios e nem ameace os pássaros com suas turbinas. Deve manter o ar limpo e não ocupar grandes extensões de terra. E, claro, precisa ser barata e ter boa aparência. Tratar com Deus.
Pelo menos duas lições podem ser tiradas da tragédia que se abateu sobre o Japão na última semana. A primeira, óbvia e recorrente, é a nossa completa fragilidade diante da força da natureza. A segunda, menos evidente, é que não existe mundo ideal. E, se quisermos manter o padrão de vida conquistado no último século, temos que fazer escolhas, algumas delas difíceis, como tenta mostrar o anúncio classificado aí de cima, inspirado no mestre Veríssimo.
Os ambientalistas defendem mais investimentos em energias renováveis, como a eólica, a solar e a biomassa. Estão certos. Pelo menos no Brasil, a participação dessas fontes ainda é ridiculamente baixa. No entanto, juntas ou separadas, elas não são capazes de garantir, com segurança, a transmissão do jogo do Flamengo na quarta à noite. Em qualquer lugar do mundo, energias deste tipo são complementares. Infelizmente, na maioria das vezes, complementam usinas térmicas a carvão, que são terríveis para o meio ambiente. Mas são seguras, fáceis de instalar e, relativamente, baratas.
Começamos o ano discutindo a hidrelétrica de Belo Monte, para alguns críticos, um verdadeiro atentado contra a Floresta Amazônica. Mas é uma energia limpa, segura e barata. O trimestre ainda não terminou e, assustados, acompanhamos os horrores da alternativa nuclear. Que é uma fonte cara, porém limpa e confiável, pelo menos no fornecimento. Como Deus não deve estar disponível para tomar essa decisão, precisamos fazer um enorme exercício de humildade e bom-senso para escolher que tipo de risco estamos dispostos a correr no futuro.

Joaquim Ferreira dos Santos -- Gente Boa

De olho no cara

Ontem já tinha um camelô vendendo binóculos na Cinelândia. "Veja o Obama de perto", gritava. "É dez real"

Grande ideia

O grande show das baterias das escolas de samba, que atravessam a avenida em 80 minutos para só reaparecerem no ano seguinte, vai ter mais uma versão a partir deste ano. Em novembro, elas vão se reunir novamente no Festival da Lapa, evento que Ricardo Amaral está produzindo. Disputarão um concurso para definir a melhor.


A cor da moda

O branco, que era exclusivo de carro de bicheiro (Raul Capitão tinha um Rolls-Royce assim), passou a ser o tom mais disputado nas revendedoras de Land Rover da Barra. É branco o Discovery que mais sai ali, ao preço de R$191 mil.


Cor da moda/2

A onda alvejante se alastra pelos carros da Europa há dois anos e não deu outra cor nos últimos salões de Frankfurt, Paris e Genebra. Teoricamente, o branco permitiria que se enxergue melhor os contornos do design da carroceria.


O pornógrafo

O bonequeiro Zé Andrade viu a peça "Os catecismos", que um grupo paranaense monta no Rio sobre a vida de Carlos Zéfiro, e faz a defesa do editor do pornógrafo, Helio Brandão, apresentado como uma espécie de corruptor de menores. "Os livrinhos eram para adultos, se caíam nas mãos das crianças não era problema do Helio nem do Zéfiro", diz.


O pornógrafo/2

Zé Andrade foi amigo de Helio e Carlos Zéfiro, o desenhista que na vida real era o pacato funcionário público Alcides Caminha.


Mais grave...

O musical sobre Tim Maia, baseado no livro best-seller de Nelson Motta, estreia em julho no Teatro Carlos Gomes. A banda Vitória Régia é que fará todos os acompanhamentos musicais do espetáculo.


Mais agudo...

Tim Maia vai ser interpretado por dois atores, um jovem no inicio da carreira, e outro velho, dos últimos anos - e eles brigam em cena o tempo todo. Estão cotados Duani, para o jovem, e Serjão Loroza para o mais recente e inesquecível Tim.

Passamos pelo mesmo horror e segurávamos nas saias de nossas mães

LÍDIA TÍMTCHENKO personagem do livro



A Ira é um testemunho vivo que sobreviveu a Stalin e Hitler

FERNANDA TORRES



Ela fez um livro com espírito pra cima, mesmo passando por situações barra pesada

ANDRUCHA WADDINGTON



O livro dá um puta filme, mas tem que ser falado em russo. A Rússia tem um mercado imenso

ANDRUCHA WADDINGTON

Desembucha!

David Brazil, o gago mais famoso do Brasil, viu "O discurso do rei".


Mais agudo...

Tim Maia vai ser interpretado por dois atores, um jovem no inicio da carreira, e outro velho, dos últimos anos - e eles brigam em cena o tempo todo. Estão cotados Duani, para o jovem, e Serjão Loroza para o mais recente e inesquecível Tim.

Passamos pelo mesmo horror e segurávamos nas saias de nossas mães

LÍDIA TÍMTCHENKO personagem do livro



A Ira é um testemunho vivo que sobreviveu a Stalin e Hitler

FERNANDA TORRES



Ela fez um livro com espírito pra cima, mesmo passando por situações barra pesada

ANDRUCHA WADDINGTON



O livro dá um puta filme, mas tem que ser falado em russo. A Rússia tem um mercado imenso

ANDRUCHA WADDINGTON

Desembucha!

David Brazil, o gago mais famoso do Brasil, viu "O discurso do rei".


Acabou a areia

Barraqueiros do Arpoador vão pedir à prefeitura para serem remanejados enquanto a faixa de areia, tomada há uma semana pela água, não volta ao normal. "É alta temporada, não dá pra parar", diz Paulo Joarez, da Associação do Comércio Legalizado.



Aliás e a propósito

A perda da areia no Arpoador é fenômeno comum, mas não com essa intensidade. "Toda a areia de lá foi jogada pela ondulação de sul e sudeste para o Leblon", diz o oceanógrafo David Zee. "Desta vez foi mais forte que o normal. Em 30 anos nunca vi o Leblon com tanta areia". Alô: a tsunami do Japão é inocente.


O filme é bom?

DAVID BRAZIL: É tudo verdade. Cantando a gente não gagueja, e ninguém nasce gago. Eu fiquei assim por um problema de respiração. E na minha sala tinha um garoto gago. Aquilo me impressionou.

Você fez tratamento?

DAVID: Sim. Tinha que assoprar bolinhas durante meia hora. Não deu certo.

Que é pior para um gago?

DAVID: Se quiser fazer o gago travar de vez, é só apressá-lo e dizer: "Fala! Desembucha!"

PAULO SANT’ANA - A razão dos terremotos

Em termos relativos. a tragédia de São Lourenço foi maior que a do Japão.
Não sei se me explico bem, mas em São Lourenço morreram sete pessoas na inundação.
E digamos que no Japão possam ter morrido 4.000 pessoas.
Sete pessoas em poucos milhares é mais relativamente que os 4.000 mortos do Japão, entre milhões de habitantes na região afetada pelo tsunami e pelo terremoto.
A diferença é que o Japão é um país talhado histórica e geologicamente para terremotos, enquanto a plácida São Lourenço, aquela mesma cidade onde eu pulava carnaval de clube na minha mocidade, quando eu era inspetor de polícia em Tapes, nunca teve qualquer vocação para tragédias naturais.
Leio que não se fizeram mais vítimas no Japão porque as construções dos prédios lá possuem fundações mais profundas nos terrenos, visando justamente a resistir aos terremotos.
Mas me assalta uma dúvida. Depois que acontece um terremoto no Japão, os prédios que resistiram a ele na região atingida não ficaram agora com suas fundações mais frágeis, constituindo-se no momento e no futuro em edifícios temerários?
O meu poeta Augusto dos Anjos fala uma vez em terremoto no seu único livro:
A queda de teu lírico arrabil
De um sentimento português ignoto
Lembra Lisboa, bela como um brinco,
Que no ano trágico de mil
E setecentos e cinquenta e cinco
Foi abalada por um terremoto.
Neste terremoto célebre de que fala meu poeta, segundo cálculos da época, morreram de 30 mil a 60 mil pessoas em Lisboa.
A exemplo do que aconteceu agora no Japão, além do terremoto, Lisboa foi varrida minutos depois por um tsunami.
O abalo e a onda gigantesca provocaram, além dos milhares de mortes, dores e pestes inenarráveis em Lisboa.
Essas tragédias naturais deveriam nos levar a profundas reflexões. Por sinal, li ontem um artigo do filósofo porto-alegrense Marco Aurélio Weissheimer, em que ele aborda um debate instalado à época do Terremoto de Lisboa, mas olhem a altura dos debatedores de então: Voltaire, Rousseau, Kant, Leibniz.
Apesar da estatura desses vultos que se esforçaram para explicar as razões filosóficas que ligam os homens às catástrofes naturais, o assunto, se vê, hoje, ficou envolto em uma penumbra de conteúdo.
O vetor filosofal sobre os terremotos é a dúvida se tem ou não o homem culpa dos desastres naturais.
Está muito em voga dizer que a natureza, quando provoca terremotos e inundações, faz isso porque o homem a fustiga.
No entanto, peguemos o Terremoto de Lisboa como exemplo: ele se deu no século 18, quando não havia aquecimento global, poluição pela quantidade de carros existentes, poluição nos rios e oceanos, nem exploração do petróleo.
Então como é que havia terremotos?

MARTHA MEDEIROS - Saques e saquê

Tem uma música do Capital Inicial cujo refrão pergunta “O que você faz quando ninguém te vê fazendo?” A partir daí, a letra fala de meninas que posam nuas na frente do espelho e de garotos que dão uns amassos nas namoradas sem que os pais delas percebam. Mas é uma pergunta interessante não só para os adolescentes, e sim para todos nós. O que faríamos se ninguém pudesse nos ver? Para além das fantasias sexuais, a resposta pode revelar também nosso caráter.

Jornalistas que estão no Japão têm revelado seu pasmo diante da tragédia provocada pelo terremoto e pelo tsunami, só que a perplexidade deles não se resume às consequências gravíssimas que todo mundo viu pela tevê: eles estão pasmos também com o comportamento do povo japonês, que não está saqueando lojas destruídas e tampouco casas abandonadas às pressas pelos seus conterrâneos. Não é surpreendente?

Ninguém deveria ficar surpreso com atitudes corretas, mas ficamos, porque a gente se acostumou a ver cenas de pessoas que aproveitam circunstâncias de vulnerabilidade para invadir supermercados, levando tudo o que podem, sem pensar um segundo que aquela mercadoria tem dono, ele apenas não está de vigília. É o que você faria também se ninguém pudesse te ver?

Quando um caminhão tomba na beira de uma estrada, surgem criaturas de tudo quanto é lado para recolher a carga espalhada pelo asfalto, e acabamos considerando isso uma espécie de redistribuição de renda. Afinal, são pessoas necessitadas que estão se virando como podem etc etc. Com gente olhando ou sem gente olhando, a surrupiada acontece liderada por papai e mamãe e imitada pelos filhinhos.

Nos dias posteriores à enchente em São Lourenço do Sul, percebi que a cobertura jornalística destacava também a proteção que o Batalhão de Operações Especiais estava oferecendo aos moradores que tiveram que deixar suas residências. Brigadianos fizeram plantão noite e dia para evitar saques.

Ou seja, se não houvesse um policial em frente a uma casa que teve as janelas e portas desobstruídas pelas águas, um sujeito qualquer poderia entrar e levar o que encontrasse. Não é que a Brigada estivesse evitando crimes cometidos por assaltantes profissionais: estava evitando também o impulso de pessoas de bem que não resistem em tirar alguma vantagem quando ninguém está de olho.

Quem é que determina o limite do que se pode e o que não se pode fazer quando não há vigilância? Esse limite é determinado pela cultura e pela educação de um povo. Respeito à propriedade alheia é algo que devemos ter em todas as circunstâncias – todas. Se a propriedade deixou de ficar definida, ainda assim a pilhagem segue sendo uma atitude pouco nobre. Mas há culturas e culturas. Na terra do saquê, não há saques. Em outras, onde o exemplo de gatunagem vem de cima, a ocasião faz o ladrão.

LETICIA WIERZCHOWSKI - O destino de um homem

A propósito de um texto que me pediram, reli recentemente um dos meus livros prediletos – O Destino de um Homem, de William Somerset Maugham. Um romance delicadíssimo que deita o olhar sobre o mundo e o fazer literário, a partir da história de um famoso romancista, Edward Driffield, um escritor talentoso e esquivo, cuja vida está sendo biografada por outro escritor, Alroy Kear, homem cheio de ambição e de caráter bastante duvidoso.

A história é narrada por um terceiro homem de letras, que conheceu o famoso Driffield durante sua infância numa prainha onde vivia aos cuidados do tio – e que abomina tanto os meios como os objetivos do dito biógrafo.

Um livro sobre o que não se diz, e sobre as infinitas possibilidades do dizer ficcional – esse mar onde nós, escritores, navegamos às vezes quase à deriva, e noutras tão senhores de nós mesmos, corajosamente aventureiros como o foram os portugueses em suas caravelas.

Desse romance, o trecho final ficou soando na minha alma. Diz assim: “... aproveitei para refletir sobre a vida do escritor. É uma vida cheia de contratempos. Para começar, ele deve sofrer a pobreza e a indiferença do mundo, depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se submeter sem protesto aos seus riscos. (...)

Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma reflexão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, enfim, qualquer emoção ou qualquer ideia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre”.

E, justo no dia em que terminei essa leitura, volto de uma caminhada à beira-mar e recebo a triste notícia do falecimento de Moacyr Scliar. Foi uma figura rara: um escritor alegre, de talento inesgotável, um homem simpático e generoso. Faz muito tempo, cruzou comigo na Feira do Livro, numa sessão de autógrafos, e elogiou-me vivamente meu terceiro romance, Prata do Tempo. Nem nos conhecíamos.

Nunca lhe disse o quanto lhe fui grata por aquela conversa rápida, sincera, visceral. Escreveu mais de setenta livros, o que me faz pensar que, ao modo dos escritores, foi um homem livre como um pássaro. E voará até as mais vastas lonjuras, batendo asas a cada vez que alguém abrir as páginas de um dos seus belos romances.

Crise no Japão tira racionalidade do capital - Eduardo Campos

Investidores rápidos no gatilho comandam os mercados locais e externos conforme cresce a preocupação com a crise nuclear enfrentada pelo Japão.
O pregão da quarta-feira foi exemplo claro disso. O tom negativo se aprofundava a cada notícia envolvendo os reatores da usina de Fukushima.
Pela manhã, a correria nas mesas de operação foi patrocinada pelo Comissário de Energia da União Europeia, Guenther Oettinger, que disse que "nas próximas horas poderiam ocorrer eventos catastróficos".
Conforme a notícia piscou nos monitores dos investidores, as ordens de venda se acentuaram nas bolsas e as ordens de compra de dólar subiram nos mercados de câmbio.
Já à tarde movimento igual a esse foi estimulado pela recomendação do governo americano para seus cidadãos se afastarem ainda mais da usina nuclear de Fukushima. O raio foi ampliado de 50 km para 80 km.
Foi à tarde que o Dow Jones marcou as mínimas do dia e, por aqui, o dólar comercial registrou as máximas. Após cada evento desses, o mercado "voltava à normalidade".
Um sintoma desse "bate e assopra" foi o VIX, índice de volatilidade visto como termômetro do medo do mercado, que chegou a disparar mais de 28% no dia, antes de fechar com alta de 20,9%, aos 29,4 pontos, maior patamar desde julho do ano passado.
Esse mercado rápido é indicação clara de que ninguém sabe quais serão os efeitos secundários de toda essa catástrofe que colocou a terceira maior economia no mundo próxima do colapso. A sequência de eventos ocorridos no Japão provoca um grau de incerteza que coloca à prova toda a "racionalidade" do capital.
Os agentes não conseguem enxergar os próximos dias, mas mantêm a percepção de que em horizontes mais dilatados há possibilidade de melhora, já que a economia japonesa terá de ser reconstruída.
O ponto é que até esse "otimismo de longo prazo" passa a esbarrar na crise nuclear, pois, dependendo do desfecho dos vazamentos e áreas contaminadas, parte do território ficaria inabitável.
Um desdobramento que toma corpo é o questionamento da matriz energética nuclear. São crescentes as notícias de que países vão adiar a construção de novas usinas e rever as unidades já em funcionamento.
Uma onda contra energia nuclear somaria ainda mais incerteza à economia mundial, pois essa matriz é vital para alguns países e não há "bem substituto" disponível no curto prazo.
Voltando o foco ao mercado doméstico, a parcial sobre o fluxo cambial voltou a surpreender os investidores.
No acumulado de março até o dia 11, ou sete dias úteis, o saldo estava positivo em US$ 7,429 bilhões. Montante superior a todo o saldo de fevereiro, de US$ 7,419 bilhões. Apenas na semana passada, que teve dois dias e meio de atividade, a sobra de dólares foi de US$ 6 bilhões.
O país não tem característica de "porto seguro" em momentos de incerteza, nem as perspectivas de curto prazo são muito animadoras, já que próprios gestores externos alertam para inflação, alta de juros, medidas prudenciais e menor crescimento da economia.
Mas o que estimulou essa enxurrada de dólares? Uma boa resposta é: o próprio governo.
Ao deixar circular no mercado, por mais de uma semana, rumores, boatos e diversas matérias feitas com base em "fontes oficiais" e "fontes próximas ao ministro", o governo parece ter estimulado uma antecipação de fluxo.
"Isso é grana fugindo da maldade", resume um gestor, indicando que, ao ameaçar ao invés de tomar medidas e pegar o mercado de surpresa, o governo instiga a entrada de dinheiro no país.
O raciocínio é lógico. Se vem uma canetada no câmbio, melhor enviar o dinheiro logo para o Brasil, mesmo que não seja para comprar bolsa, juros ou qualquer outra coisa imediatamente.

A Justiça vai ou não à favela? - Joaquim Falcão

Pouco a pouco se consolida a ideia de que fazer justiça, como dever do Estado, é um serviço público a ser oferecido como qualquer outro. O cidadão tem direito a educação, saúde, segurança, transporte e a justiça também. Como serviço público, a administração da Justiça requer também políticas públicas sempre mais eficientes. Políticas de administração judicial. Como estaria a oferta desse serviço público nas favelas hoje em dia? Está chegando aos cidadãos? Está colaborando para uma convivência social mais livre, igualitária e pacífica? Assim como a educação e a saúde, a Justiça tem também que se mover? Em vez de centrar-se nos grandes fóruns, ir aonde dela se precisa? No caso das grandes capitais, ir às favelas? Essas questões se colocam intensamente no momento em que as capitais começam a enfrentar o problema das favelas, sobretudo o Rio de Janeiro, por causa de Copa e das Olimpíadas. A Fundação Getulio Vargas (FGV), com Fernando Barbosa e Márcio Grijó (http://cpdoc.fgv.br/fgvopiniao/pesquisaspublicas), realizou recente pesquisa sobre o índice de percepção carioca sobre a presença do Estado por meio da dimensão dos serviços públicos e da dimensão cidadania. Dividiu os entrevistados em três categorias: os moradores do Morro do Alemão, os da Zona Sul e os das zonas Norte e Oeste. E acompanhou os anos de 2010 e 2011, já sob os efeitos da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Os resultados sugerem fortemente a necessidade de o Poder Judiciário ir às favelas. Abrir varas judiciais, abrir juizados especiais, tal como lá estão abrindo escolas, postos de saúde. Todos têm responsabilidades iguais na democracia.
A Rocinha, lembra Andrea Gouveia Vieira, com cerca de 100 mil habitantes, já tem quatro escolas públicas, uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), várias clínicas de família, mas não tem nem uma vara judicial, nem um juizado especial. A oferta dos serviços de justiça no Alemão está sendo feita por policiais treinados como mediadores. Justiça paraestatal.Tudo bem. Mas e os magistrados? Justiça estatal?
Perguntados se a lei e a Justiça protegem a todos igualmente, em todas as áreas, somente cerca de 30% dos cidadãos tanto acreditam. Se a Justiça ajuda a resolver os problemas dos moradores, menos de 50% concordam. A maior colaboração da Justiça é no direito do consumidor: a percepção favorável sobe acima dos 50%.
Nos últimos dois anos, a percepção dos moradores do Alemão cresce favoravelmente nos demais itens, como na questão de segurança, da presença policial, da liberdade de caminhar sem sofrer assaltos e violências e a qualquer hora por suas áreas. Melhora a educação, piora a saúde. Esgoto, distribuição de energia e iluminação pública estão em nítida ascensão favorável. Não se pode dizer o mesmo da oferta da Justiça estatal.
Pode até estar havendo um planejamento, mas até agora não visível nem participado. Os governos estaduais e municipais estão mobilizados. Os empresários também. Mas, e o Poder Judiciário, para os próximos 10 anos? Maior descentralização, simplificação, agilização, sobretudo em direção às favelas, se fazem necessários. Servir a Justiça nas áreas mais difíceis e que requerem maior inovação deveria contar para a promoção de magistrados, serventuários, defensores e procuradores. Um sistema de incentivos, desburocratização e de investimentos judiciais se fazem necessários.

Professor da escola de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV).

A integridade é amarela - Taís Braga

A tragédia no Japão tem-nos revelado mais que o sofrimento de uma população diante da força da natureza. Temos visto diariamente a intimidade de um povo que sabemos ser forte diante das adversidades e só então podemos compreender como se forma uma grande nação: com educação. Nem mesmo nos momentos mais duros percebemos atitudes violentas ou tumultos provocados pelos moradores das áreas atingidas pelo terremoto seguido de tsunami. A possibilidade de contaminação por radiação não transforma os cidadãos em seres incontroláveis.
Os japoneses são um exemplo do que é sociedade. Demonstram nos gestos delicados, na forma de falar, que o coletivo é mais importante que o individual. Organizam-se em filas, cuidam de crianças e idosos de forma respeitosa e igualitária. E a postura do cidadão japonês que aguarda o seu quinhão não é a de um pedinte em busca de favor. Sabe que o governo cumpre uma obrigação. E ele, recebe o seu direito.
A nós, ocidentais, o conceito de unidade parece cada vez mais distante quando vivemos e sofremos ao longo dos anos com medidas egoístas tomadas por governantes cujo único compromisso é com o próprio umbigo. Quantas vezes nos deparamos, estarrecidos, com denúncias de desvio de doações, demora na liberação de verbas ou simplesmente o esquecimento de pessoas e áreas atingidas por desastres como seca, inundação?
Conhecido como a Terra do Sol Nascente, o Japão nos dá exemplo de cidadania, coragem e dignidade, conquistadas ao longo dos anos, com o empenho de cada um dos habitantes e com a ação do Estado. Nas imagens podemos ver pessoas pacientemente à espera de comida e água, ainda que próximas a supermercados com portas derrubadas, máquinas avariadas. Em um albergue da província de Miyagi, uma carteira esquecida por um jornalista — com dinheiro e cartões de crédito — foi encontrada e entregue ao responsável pela instituição e, em seguida, resgatada pelo dono.
Por trás do cenário de desolação me vem à mente a trilogia das cores, uma visão pessoal do cineasta polonês Krzysztof Kieslowski, inspirada no lema da revolução francesa e nas cores da bandeira da França: a liberdade é azul, a igualdade é branca e a fraternidade é vermelha. Hoje sei: a integridade é amarela.

A América Latina e as commodities - Jose Luis Machinea

A América Latina passa por um avanço excepcional, graças à disparada da receita com a exportação de recursos naturais. Será, no entanto, que a região aproveita essa oportunidade ao máximo? Esses fundos vêm sendo usados da maneira mais eficiente possível?
Com exceção da América Central, a alta nos preços das commodities melhorou as contas externas e posições fiscais dos países da América Latina. A receita com as exportações de commodities representou 25% da arrecadação total do setor público em 2008. Na Venezuela, Bolívia, Equador e México, o número ficou acima de 40%. Isso equivale a cerca de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) desses países (mais de 11% na Venezuela e Bolívia e 8% no Equador e México).
Para determinar o que deveria ser feito com esse golpe de sorte, é importante saber se o aumento nos preços das commodities deverá ser permanente ou transitório. Se for transitório, o melhor caminho é economizar a receita adicional ou usá-la, como segunda melhor opção, para reduzir a dívida nacional. Se o aumento for considerado permanente, contudo, faria sentido aumentar os gastos ou reduzir a pressão tributária.
A escolha dependerá das características de cada país. Haveria mais motivos para reduzir os impostos na Noruega, por exemplo, do que na América Latina, onde o rumo geral seria o aumento nos investimentos.
É razoável presumir que o efeito positivo da onda de alta das commodities nos termos de troca da América Latina durará por um longo período - talvez 10 a 15 anos-, mas que não será permanente. Além disso, pode se argumentar que se não se agregar mais conhecimento às exportações, será difícil alcançar desenvolvimento econômico sustentável baseado nos recursos naturais.
Tendo isso em vista, seria sensato gastar pelo menos uma parte desses lucros na melhora da capacidade de inovação, que é essencial para o crescimento de longo prazo, mais além da flutuação dos preços internacionais das commodities. Isso significa investir em educação e criar incentivos para melhorar a produtividade por meio de mudanças nos produtos, processos ou na organização.
Então, o que ocorreu com as receitas adicionais decorrentes da alta das commodities nos últimos anos? Alguns desses fundos foram destinados a melhorar o balanço fiscal dos países. Enquanto déficit primário (que exclui o pagamento de juros) em 2002 era similar entre os países com e sem recursos naturais importantes, em 2007, os primeiros tinham superávit equivalente a 3,8% do PIB - em comparação ao de 1,6% do PIB dos países não exportadores de commodities.
Como resultado, a dívida pública caiu de 51% do PIB da região, em 2003, para 28% do PIB em 2008. A consolidação fiscal, contudo, não foi resultado de regras fiscais formais. Enquanto muitos países estabeleceram limites legais para controlar gastos, déficits e endividamento, em alguns casos - por exemplo, Argentina, Equador e Venezuela - tais leis não foram aplicadas.
Além de reduzir as dívidas, o Chile usou as receitas adicionais para aumentar os recursos de dois fundos fiscais: quando a recessão começou, havia mais de US$ 22 bilhões em ativos nos dois fundos. Apesar da gestão fiscal imprudente, a Venezuela também manteve recursos consideráveis em fundos específicos (US$ 11 bilhões no fim de 2008). Equador e Colômbia, em contraste, eliminaram seus fundos de estabilização em 2005 e 2008, respectivamente.
Além de melhorar as contas públicas, uma grande parte das receitas com os preços elevados das commodities foram usadas para aumentar os gastos públicos, embora essa proporção tenha variado de país a país. Em um extremo está a Argentina, com o maior aumento nos gastos públicos em relação ao PIB na América Latina (quase dez pontos). Em outro extremo, estão Chile, Costa Rica e Uruguai.
Como não se especifica nas contas fiscais nacionais qual parte da arrecadação se refere a produtos ligados a recursos naturais, apenas podemos nos aventurar a dar palpites razoavelmente bem informados sobre como foi alocada. Entre 2001-2002 e 2007-2008, os investimentos em bem-estar social nos países com recursos naturais abundantes aumentaram em torno a 55% em termos reais, com os gastos em relação ao PIB tendo aumentado em quase 3,5 pontos percentuais. Portanto, na esfera regional, uma grande parte dos recursos adicionais foi usada para elevar os gastos públicos, especialmente em seguridade social, saúde e educação, nessa ordem.
Em alguns países, também houve aumento nos subsídios. Na Argentina, por exemplo, os subsídios às fontes de energia e transporte aumentaram para o equivalente a 3% do PIB. Algo muito similar ocorreu no Equador e Venezuela ao longo da década. Em contraste, os gastos em outros fins - por exemplo, pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e processos - aumentaram muito pouco.
Em resumo, os países latino-americanos usaram as receitas adicionais com as exportações para pagar dívidas e aumentar os investimentos sociais. Ambos eram necessários, mas com algumas poucas exceções, a região não vem usando as receitas excepcionais com as commodities para fazer o que deveria: melhorar a capacidade tecnológica de forma suficiente para assegurar que o crescimento econômico futuro não dependa inteiramente da instabilidade dos recursos naturais finitos.


Jose Luis Machinea, ex-diretor executivo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e ex-ministro da Economia da Argentina, é decano da Escola de Governo da Universidad Torcuato Di Tella, em Buenos Aires. Copyright: Project Syndicate, 2011.

MARCOS POGGI - O ético e o estético

Mario Vieira de Mello, no livro "Desenvolvimento e cultura — O problema do estetismo no Brasil", analisa o postulado de Kierkegaard acerca do conflito entre o ético e o estético no contexto da cultura brasileira. A tese é de que onde o culto à estética é exacerbado a ética, além de faltar, merece pouca atenção. Ou seja, a opção pelo sentido estético oblitera o sentido ético no Brasil. Bom tema para ser mais discutido neste país seduzido pelo belo.

De fato, aqui "beleza é fundamental". E não poderia ser diferente no urbanismo. Em geral, aceitamos, sem discussão, as propostas urbanísticas que priorizam o estético. Se o objetivo é a busca do belo, não carecemos de racionalizações para justificar prioridades e custos.

Tomemos o "Porto Maravilha", um projeto que visa a criar uma atmosfera renovada e bela na região portuária. Sob esse aspecto, iniciativa meritória. Todavia, serão gastos nas obras R$6,5 bilhões, grande parte para derrubada do viaduto da Perimetral (mais de 2 quilômetros) e sua substituição por túneis e mergulhões. Tudo em tese financiado com recursos da venda de terrenos e direitos sobre solo criado.

A presunção é de que o embelezamento da área e o direito da construção ali de espigões ensejem expressiva valorização dos terrenos de propriedade pública. O mecanismo financeiro contará com os Certificados de Potencial Adicional de Construção, um título a ser oferecido ao mercado. Contudo, a necessidade de antecipação de recursos impôs à Prefeitura a realização de um empréstimo de R$3,5 bilhões junto à Caixa Econômica Federal.

As autoridades garantem que o projeto, apesar de bilionário, se paga sem onerar os cofres públicos. Não fosse assim, ter-se-ia que discutir a questão das prioridades, já que convivemos com problemas gravíssimos no setor de saúde, na educação, nos transportes de massa, no saneamento, na habitação e na segurança.

Não se discute a importância do embelezamento da cidade. A ressalva, no caso, restringe-se à garantia de que o dinheiro para o projeto não sairá dos cofres públicos. Ora, sendo o "Porto Maravilha" um empreendimento, é inegável que há riscos envolvidos. Como diria Alan Greenspan, qualquer empreendimento pode dar errado. Por má estratégia, má conjuntura, ou má sorte. Mas pode dar errado. Fiquemos apenas no empréstimo da Caixa. O que quer que aconteça, ele terá que ser pago pelo tomador. Ou seja, se algo der errado, a conta recairá mesmo sobre os ombros largos do contribuinte.

O fato é que não se debateu o suficiente com a sociedade a alternativa de não se demolir o viaduto. O que poderia ensejar uma economia de bilhões. Isto porque a demolição se impunha, sem maiores debates, por uma única razão: o viaduto é feio. Coincidentemente, o Píer 17, um dos locais considerados mais charmosos de Nova Iorque, tem em frente um viaduto tão feio quanto o da Perimetral. E não se pode dizer que o distrito financeiro, ali junto, seja uma área desvalorizada. Mas lá o viaduto continuará de pé.

Já que o nosso viaduto virá mesmo abaixo, só nos resta torcer para que nosso contribuinte — além de continuar amargando suas carências — não tenha que pagar a gigantesca conta desse projeto. E que nada ocorra no processo que possa ilustrar a dicotomia entre o ético e o estético, no caso brasileiro.
Publicado no Globo de hoje. Marcos Poggi é economista e escritor.

Como prever o efeito das atividades humanas - Fernando Reinach

Um pequeno trabalho científico, de menos de uma página de texto, demonstra o tamanho de nossa ignorância. O método utilizado por cientistas para avaliar o impacto de uma atividade humana (como o desflorestamento da Amazônia ou a queima de combustíveis fósseis) é muito semelhante ao método utilizado por cada um de nós para avaliar o efeito da compra de um carro nas finanças.
Não basta saber quanto custa o carro, é preciso entender os fluxos e os estoques de dinheiro à nossa disposição e então avaliar o efeito da compra do carro sobre esses fluxos e estoques. Em uma família, existe um fluxo de dinheiro que entra nos cofres todos os meses - é o salario recebido pelos membros da família. Existe também um fluxo de dinheiro que sai todos os meses - são as contas de alimentação, aluguel, prestações, escola, etc. Existe também um estoque de dinheiro, provavelmente em uma conta bancaria ou debaixo do colchão.
Todos sabemos que, dependendo de como se comportam os fluxos de entrada e saída, o estoque poupado pode aumentar ou diminuir. De posse desses dados é possível avaliar o que ocorre quando compramos um carro. Em um primeiro momento, o estoque vai cair, mas é importante entender que os fluxos também vão se alterar. Vai surgir a conta da gasolina e do IPVA, mas talvez desapareça a conta do ônibus e assim por diante.
Para estudar o impacto de uma queimada ou do desaparecimento de uma floresta sobre a quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera, os cientistas usam um modelo semelhante ao que utilizamos para avaliar o efeito da compra de um carro.
Primeiro, precisam entender e quantificar os mecanismos naturais que produzem os gases-estufa (gás carbônico e metano) e os liberam na atmosfera (seria o equivalente aos salários). Depois, precisam entender e quantificar os mecanismos naturais que removem esses gases da atmosfera, como a fotossíntese nas plantas e outros mecanismos de captura que existem no planeta (seria o equivalente às despesas). Finalmente, precisam avaliar os estoques presentes sob diversas formas no planeta, como a quantidade de gás carbônico na atmosfera, a quantidade de carbono nas florestas ou nos ambientes marinhos (seria o equivalente às contas correntes, as poupanças e outros tipos de investimento).
De posse de todos os dados, os cientistas constroem um modelo de como funciona o ciclo do carbono no planeta, do mesmo modo que construímos um modelo de como funcionam as finanças de nossa casa. É com base nesse modelo que eles podem simular o que acontece quando queimamos uma floresta e liberando gás carbônico e, assim, estimar como a ação humana afeta os fluxos e estoques de carbono.
Mas enquanto o modelo financeiro de uma casa é bastante simples e nossa certeza de que ele está correto é bastante alta (podemos ter esquecido alguma conta ou copiado errado o saldo da poupança) e, portanto, permite uma avaliação muito precisa do efeito da compra do carro, os modelos que descrevem os fluxos e estoques de carbono no planeta são ainda imperfeitos. Muitos dos fluxos são desconhecidos e muitos dos conhecidos são mal quantificados. Além disso, a quantidade dos estoques também é estimada com um alto grau de incerteza.
O resultado é que é difícil estimar com precisão o impacto de uma atividade humana. É como tentar avaliar o efeito da compra de um carro sem saber quanto temos na poupança ou qual é realmente a renda familiar.
Desconhecimento. Um bom exemplo dessa falta de conhecimento ficou evidente quando um grupo de cientistas quantificou a quantidade de metano e gás carbônico emitida pelos rios e lagos. Sabemos que os continentes capturam e estocam grande quantidade de carbono (eles capturam na ordem de 2,6 petagramas de carbono por ano - um petagrama são 1.015 gramas), e esse número é utilizado nos modelos que descrevem os fluxos de carbono no planeta.
Mas, até agora, os rios e lagos, que estão nos continentes, não entravam na conta, apesar de se saber que eles têm o efeito oposto, liberando gás carbônico e metano na atmosfera. Eles não entravam na conta porque não havia estimativa da quantidade de gases-estufa que eles liberavam e, consequentemente, eles eram simplesmente ignorados (é como se eu, não sabendo quanto gasto na padaria, simplesmente desprezasse esse dado no meu orçamento).
Agora, cientistas estimaram quanto os rios e lagos liberam de gases-estufa e, para surpresa de todo mundo, descobriram que essa quantidade é muito grande, entre 0,65 petagrama e 1,4 petagrama por ano, dependendo se forem contabilizadas somente as emissões de metano ou de metano e gás carbônico.
Se essa estimativa estiver correta, a capacidade real de captura de carbono dos continentes pode ser menos da metade do que se imaginava. É claro que esse novo dado, quando incorporado aos modelos, alterará em parte as conclusões. O importante é que esse trabalho demonstra quão imperfeitos são os melhores modelos de que dispomos para avaliar o efeito das atividades humanas no equilíbrio geral do ciclo do carbono.
A situação não é muito diferente da de uma família que deseja calcular o impacto da compra de um carro sem saber quanto ganha, quanto gasta e quanto tem no banco.
Mas em ciência o progresso é assim mesmo, gradual. Não há dúvida de que os modelos atuais são muito melhores do que aqueles que possuíamos há alguns anos, mas é preciso lembrar que eles ainda estão longe de serem fieis à realidade. E conclusões geradas por modelos imperfeitos são por natureza imperfeitas, mas, sem dúvida, são melhores que simples palpites. O importante é prosseguir rapidamente a investigação e aperfeiçoar os modelos.

BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: FRESHWATER METHANE EMISSIONS OFFSET THE CONTINENTAL CARBON SINK. SCIENCE, VOL. 331, PÁG. 50

Os intelectuais e o poder - Lúcio Flávio Pinto

O peruano Mário Vargas Llosa é um dos maiores escritores de todos os tempos na América do Sul e um dos mais importantes em atividade no mundo. Seu prêmio Nobel de Literatura foi justo e merecido. Escreveu muito, sempre em alto nível de qualidade e com muita diversidade. Desde Conversa na Catedral a Pantaleão e as Visitadoras, Batismo de Fogo (na tradução da 1ª edição em português) até A Guerra no Fim-do-Mundo, que muito crítico desdenhou, mas está à altura do seu principal personagem, Euclides da Cunha. Isto em ficção. Em ensaios não desce um patamar sequer, ainda quando emite opiniões controversas ou duvidosas. Sabe escrever como poucos e dar grandeza aos temas que aborda. Como a maravilhosa crônica sobre um aristocrata peruano decadente que freqüenta livrarias em Paris. Uma elegia ao livro e àqueles que o cultivam.

Nada mais natural do que Llosa ter sido convidado para a abertura da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, que será realizada no próximo mês. Sua presença dignificaria a promoção. Feito o anúncio, porém, começaram a agir os censores ex-officio de esquerda. Llosa deveria ser “desconvidado” porque não é adepto da “corrente que abriga a sociedade argentina”, por ser messiânico, antiperonista e crítico da dinastia Kirchner no poder. Além disso, é um fracassado: foi derrotado na eleição para presidente do Peru, em 1990.

Santa derrota. Talvez Vargas Llosa não viesse a ser um bom presidente. Mas um excelente escritor ele continuou a ser depois do “fracasso”. Seu mais recente livro de ensaios, Sabres e Utopias, é um primor. Aprende-se até discordando frontalmente dele, por sua inteligência, seu conhecimento e seu estilo.

O “desconvite” foi feito por ninguém menos do que o presidente da Biblioteca Nacional da Argentina, que devia ter discernimento sobre o significado do livro. Felizmente para a tradição intelectual argentina, a presidente Cristina Kirchner teve um gesto de grandeza: cancelou a mesquinha e burra iniciativa do presidente da Biblioteca, fazendo-o desfazer o ato iníquo. Kirchner ia se juntar aos militares da ditadura, que em 1970 censuraram os livros de Llosa.

A principal função do intelectual – hoje e sempre – é estar longe do poder e o mais próximo dos seres humanos, dos cidadãos comuns, seus clientes e patrões. Da humanidade, em sentido genérico, para não condicionar sua criação às expectativas de consumo e aceitação. O grande desafio para o intelectual é justamente a postura em relação ao poder, quando o lugar é ocupado por companheiros de viagem. Há a tendência a se satisfazer com a realização dos sonhos de chegar ao topo do processo decisório, ensarilhar as armas (sempre configuradas em idéias) e se entregar ao usufruto.

Foi o que aconteceu com os intelectuais de esquerda a partir da chegada de Lula ao poder. Vários deles, alertas para o olho clínico do tempo, quiseram manter estandartes e fantasias de independentes e críticos, mas com um bastão de comando nas mãos ou uma sinecura no bolso. Para manter os críticos verdadeiros e os cobradores de posições à distância, usam os antigos conceitos morais da esquerda, monopolista do direito de uso das bandeiras éticas, como metralhadora giratória. Procuram atingir quem estiver do outro lado, mas no raio de ação dos seus conceitos.

É o que faz o sociólogo Emir Sader. Ídolo de certa faixa da esquerda e de uma ala do PT, ele se considera um ícone da verdade. Antes de assumir a presidência da Casa de Rui Barbosa, depois de não ter conseguido ser ministro da cultura, criticou sua chefa, colocada no cargo pela turma de Dilma Rousseff (e não pelos remanescentes de Lula), Ana Buarque de Holanda, cujo maior atributo é ser irmã de Chico, aquele um. Crítica ferina, deselegante e aética. De tão imóvel, a ministra seria “quase autista”, sentenciou Emir.

Não havia outro caminho que não o do “desconvite”. Ao contrário da grosseria praticada contra Llosa por arbítrio de um Torquemada portenho, no caso brasileiro era a única providência a adotar. Se aceitasse a afronta, a ministra encolheria e o seu agressor cresceria a tal ponto que podia até cometer a inconseqüência de mudar a razão de ser da Casa de Rui Barbosa, há mais de 80 anos centro de acumulação e processamento de documentação, de acervos e coleções, orientados para uma pesquisa especializada de profundidade e amplitude, para o direito público e a literatura.

Sader queria transformar a Casa de Rui numa versão refinada do Teatro Casa Grande. Garante ele que foi num debate que coordenou no ano passado no Casa Grande, no Rio de Janeiro, que a campanha em favor de Dilma Rousseff deslanchou de vez, graças ao apoio de artistas e intelectuais que ali compareceram. Além de um atestado de egocentrismo sem fundamento, é uma afronta aos fatos. Quem elegeu Dilma foi Lula. A conta da vitória já foi jogada sobre os peitos da presidente – e ela está podendo avaliar agora como essa conta pesa. Não tem nada a ver com intelectuais e artistas.

Se estivesse com bons propósitos e de boa fé, Emir Sader teria procedido de outra forma. Talvez ele tenha pretendido mesmo é abrilhantar seu luzidio currículo, não enfrentar o trabalho que ia lhe ser entregue se fosse empossado, se credenciar à reparação da agressão e continuar na posição iconoclasta bem arrimada(e arrumada). No poder, é claro. Quanto mais próximo está do poder, menos intelectual o intelectual é. Os dois casos comprovam.

Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).

DILMA GARANTE GUERRA À INFLAÇÃO

DILMA VAI ADOTAR REGIME DE CONCESSÃO PARA AEROPORTOS
Claudia Safatle | De Brasília
Valor Econômico - 17/03/2011
 

A presidente da Republica, Dilma Rousseff, foi afirmativa: "Não vou permitir que a inflação volte no Brasil. Não permitirei que a infla,ao, sob qualquer circunstância, volte".  A declaração foi dada durante entrevista ao Valor, a primeira exclusiva a um jornal brasileiro, num momento em que as expectativas de inflação pioram e os mercados insinuam que o Banco Central não tem autonomia para agir. "Eu acredito num Banco Central extremamente profissional e autônomo. E este Banco Central será profissional e autônomo", garantiu a presidente.

Em conversa de cerca de duas horas, Dilma não poupou ênfase a guerra antiinflacionária: "Não negocio com a inflação. Em nenhum momento eu tergiverso com inflação. E não acredito que o Banco Central o faça", reiterou, com a ressalva de que o combate não será feito com o sacrifício do crescimento. “Tenho certeza que o Brasil vai crescer entre 4,5% e 5% este ano", afirmou.

A presidente não concorda com a avaliação de que há excesso de demanda e de que o país cresce acima de seu potencial. "Pode ser que essa seja a divergência que nós temos com alguns segmentos". Ela não nega que haja desequilíbrios entre oferta e demanda em alguns setores, mas argumenta: "É inequívoco que houve nos últimos tempos um crescimento dos preços dos alimentos, que já se reduziu, além dos reajustes sazonais do início do ano. E há a pressão ligada aos preços das commodities".

Para a presidente, ver incompatibilidade em segurar a inflação e ter uma taxa de crescimento sustentável representa o retorno da velha tese "de que é preciso derrubar a economia brasileira". A esse respeito, ela é incisiva: "Nós não vamos fazer isso". E salienta que seu governo está adotando "medidas sérias e sóbrias". Está controlando o gasto público e esfriando ao máximo a expansão do custeio. "Conter o gasto de custeio é como cortar as unhas", compara. "O governo sempre terá que controlar, caso contrário ele cresce".

Sobre as desconfianças do mercado em relação à dosagem da política monetária para controlar a inflação e as críticas sobre o uso de medidas prudenciais associadas à elevação da taxa de juros, a presidente comenta: "Não sei se não estão tentando diminuir a importância deste Banco Central porque não há gente do mercado em sua diretoria".

Se o mercado, com suas boas ou más intenções, considera a gestão de Alexandre Tombini no Banco Central "dovish" - frouxa como um pombo, em contraposição a "hawkish", duro como um falcão - ela ri e prontamente responde: "Eu sou uma arara".
 

A presidente Dilma Rousseff anunciou que vai abrir os aeroportos do país ao regime de concessões para exploração do setor privado. Disse, também, que é preciso acabar com o incentivo fiscal dado por vários Estados que reduziram para apenas 3% a alíquota do ICMS para bens importados que chegam ao país por seus portos. "Estão entrando no Brasil produtos importados com o ICMS lá embaixo. É uma guerra fiscal que detona toda a cadeia produtiva daquele setor", comentou a presidente, citando proposta de projeto de lei que já se encontra no Senado para acabar com essa distorção.
Dilma já definiu as propostas que enviará ao Congresso ainda neste semestre: a criação do Programa Nacional de Ensino Técnico (Pronatec) e do Programa de Erradicação da Pobreza, além de medidas específicas que alteram alguns tributos (e não uma proposta de reforma tributária). Ela admitiu, também, concluir a regulamentação da reforma da previdência do servidor público, com a aprovação da proposta que institui os fundos de pensão complementar. "Mas não vamos tirar direitos do trabalhador, não", assegurou.
Em entrevista ao Valor, a primeira concedida a um jornal brasileiro, a presidente adiantou: "Agora nós estamos nos preparando para fazer uma forte intervenção nos aeroportos. Vamos fazer concessões, aceitar investimentos da iniciativa privada que sejam adequados aos planos de expansão necessários. Não temos preconceito contra nenhuma forma de expansão do investimento nessa área, como não tivemos nas rodovias." Até o fim do mês ela deve enviar ao Congresso a medida provisória que cria a Secretaria de Aviação Civil com status de ministério, que agregará a Anac, a Infraero e toda a estrutura para fazer a política de aviação.
Diante da falta de mão de obra tecnicamente qualificada para atender à demanda de uma economia que cresce, o governo está concluindo o desenho do Pronatec, programa de pretende garantir que o ensino médio tenha um componente complementar profissionalizante. Promessa de campanha, o projeto de erradicação da pobreza terá como meta retirar o máximo possível dos 19 milhões de brasileiros da situação de miséria que ainda se encontram.
Desta vez, porém, o programa virá acompanhado de portas de saída, disse. A erradicação da pobreza usará o instrumental reformulado do Bolsa Família e terá tanto no Pronatec, quanto nos mecanismos do microcrédito e de novos incentivo à agricultura familiar, as portas de saída da mera assistência social. "Estamos passando as tropas em revista e mudando muita coisa", comentou a presidente. Nada disso, porém, prescinde do crescimento da economia. A seguir, a entrevista:

Valor: Qual o impacto do desastre no Japão sobre a economia mundial e sobre o Brasil?
Dilma Rousseff: Primeiro, acho que ficamos todos muito impactados. A comunicação global em tempo real cria em nós uma sensação como se o terremoto seguido do tsunami estivessem na porta de nossas casas. Nunca vi ondas daquele tamanho, aquele barco girando no redemoinho, a quantidade de carros que pareciam de brinquedo! Inexoravelmente, a comunicação faz com que você se coloque no lugar das pessoas! Essa é a primeira reação humana. Acredito, numa reflexão mais fria depois do evento, se é que podemos chamar alguma coisa de fria no Japão, acho que um dos efeitos será sobre o petróleo.

Valor: Aumento de preço?
Dilma: Vai ampliar muito a demanda de petróleo ou de gás para substituir a energia nuclear. Pelo que li, 40% da energia de base do Japão é nuclear. Os substitutos mais rápidos e efetivos são o gás natural ou petróleo. Acredito que esse será um impacto imediato. Nós sempre esquecemos da diferença substantiva entre nós e os outros países.

Valor: Qual?
Dilma: Água. Nesse aspecto somos um país abençoado. Não tenho ideia de qual vai ser a política de substituição de energia. Não sei como a Alemanha, por exemplo, vai fazer. Os Estados Unidos já declararam que não vão interromper o programa nuclear. Nós não temos a mesma dependência. Temos um elenco de alternativas que os outros países não têm. A Europa já usou todo o seu potencial hídrico. Energia é algo que define o ritmo de crescimento dos países e o Brasil tem na energia uma diferença estratégica e competitiva.

Valor: E tem o pré-sal. O governo poderia acelerar o programa de exploração?
Dilma: Não. Vamos seguir num ritmo que não transforma o petróleo em uma maldição. Queremos ter uma indústria de petróleo, desenvolver pesquisas, produzir bens e serviços e exportar para o mundo. Não podemos apostar em ganhos fáceis. Temos que apostar que o pré-sal é um passaporte para o futuro. Não vamos explorar para usar, mas para exportar. Queremos nossa matriz energética limpa e queremos, também, ter ganhos na cadeia industrial do petróleo. Esse é um país continental com uma indústria sofisticada e uma das maiores democracias do mundo. Não somos um paisinho.

Valor: A sra. acha que a tragédia no Japão vai atrasar a recuperação da economia mundial?
Dilma: Acredito que atrasa um pouco, mas também tem um efeito recuperador, de reconstrução. O Japão vai ter que ser reconstruído. É impressionante o que é natureza. Nem nos piores pesadelos conseguimos saber o que é uma onda de dez metros.

Valor: O esforço de reconstrução de uma parte do Japão deve demandar grandes somas de recursos. Isso pode reduzir o fluxo de capitais para o Brasil?
Dilma: Pode ter um efeito desses. Acho que vai haver um maior fluxo de dinheiro para lá e isso não é maléfico. Tem dinheiro sobrando para tudo no mundo. Para a reconstrução do Japão, para investir aqui e para especular.

Valor: O governo, preocupado com a taxa de câmbio, tem mencionado a necessidade de novas medidas. Uma delas seria encarecer os empréstimos externos para frear o processo de endividamento de bancos e empresas? A sra. já aprovou essas medidas?
Dilma: Primeiro, é preciso distinguir o que é dívida para investimentos do que é dívida de curto prazo. Imagino que quem está se endividando esteja fazendo "hedge". Todo mundo aí é adulto.

Valor: Mas o governo prepara um pacote de medidas cambiais?
Dilma: Tem uma coisa que acho fantástica. Às vezes abro o jornal e leio que a presidenta disse isso, pensa aquilo, e eu nunca abri minha santa boca para dizer nada daquilo. Tem avaliações de que um ministro subiu, outro desceu, que são absurdas. Absurdas! Falam que tais ministros estão desvalorizadíssimos na bolsa de apostas. Acho que o governo não pode se pautar por esse tipo de avaliação. Nenhum presidente avalia seus ministros dessa forma. E nenhum presidente pode fazer pacotes de acordo com o flutuar das coisas. Toma-se medidas que tem a ver com o que se está fazendo. Mas posso lhe adiantar algumas coisas.

Valor: Quais?
Dilma: Eu não vou permitir que a inflação volte no Brasil. Não permitirei que a inflação, sob qualquer circunstância, volte. Também não acredito nas regras que falam, em março, que o Brasil não crescerá este ano. Tenho certeza que o Brasil vai crescer entre 4,5% e 5% este ano. Não tem nenhuma inconsistência em cortar R$ 50 bilhões no Orçamento e repassar R$ 55 bilhões para o BNDES garantir os financiamentos do programa de sustentação do investimento. Não tem nenhuma inconsistência com o fato de que o país pode aumentar a sua oferta de bens e serviços aumentando seus investimentos. E ao fazê-lo vai contribuir para diminuir qualquer pressão de demanda. Hoje, eu acho que aquela velha discussão sobre qual é o potencial de crescimento do país tem que ser revista.

Valor: Revista como?
Dilma: Você se lembra que diziam que o PIB potencial era de 3,5%? Depois aumentou, e baixou novamente durante a crise global, pela queda dos investimentos, não? E aumentou em 2010, com crescimento de 7,5% puxado pelo aumento de bens de capital. Então, isso não é consistente.

Valor: A sra. comunga ou não da ideia de que é possível ter um pouquinho mais de inflação para obter um pouco mais de crescimento?
Dilma: Isso não funciona. É aquela velha imagem da pequena gravidez. Não tem uma pequena gravidez. Ou tem gravidez ou não tem. Agora, não farei qualquer negociação com a taxa de inflação. Não farei. E não acho que a inflação no Brasil seja de demanda.

Valor: Não?
Dilma: Pode ser que essa seja a divergência que nós temos com alguns segmentos. Nós não achamos que ela é de demanda. Achamos que há alguns desequilíbrios em alguns setores, mas é inequívoco que houve nos últimos tempos um crescimento dos preços dos alimentos, que já reduziu. Teve aumento do preço do material escolar, dos transportes urbanos, que são sazonais.

Valor: E a inflação de serviços que já passa de 8%?
Dilma: Há crescimento da inflação de serviços e isso temos que acompanhar. Mas o que não é possível é falar que o Brasil está crescendo além da sua capacidade e que, portanto, tem um crescimento pressionando a inflação. O mundo inteiro, na área dos emergentes, está passando por isso. Houve um processo de pressão inflacionária que tem componente ligado às commodities e, no Brasil, tem o fator inercial. Mas é compatível segurar a inflação e ter uma taxa de crescimento sustentável para o país. Caso contrário, é aquela velha tese: tem que derrubar a economia brasileira.

Valor: Derrubar o crescimento?
Dilma: Nós não vamos fazer isso. Não vamos e não estamos fazendo. Estamos tomando as medidas sérias e sóbrias. Estamos contendo os gastos públicos. Tanto estamos que os resultados do superávit primário de janeiro e fevereiro vão fechar de forma significativa para o que queremos. Vamos conter o custeio do governo. Estamos esfriando ao máximo a expansão do custeio. Agora, não precisamos expandir o investimento para além do maior investimento que tivemos, que foi o do ano passado. Vamos mantê-lo alto. Olhe quanto investimos em janeiro: R$ 2,5 bilhões pagos. O pessoal fala dos restos a pagar. Ninguém faz plano de investimento de longo prazo no Brasil sem fazer restos a pagar.

Valor: São mais de R$ 120 bilhões. Não está muito alto?
Dilma: Por quê? Ou nosso investimento é baixo ou é alto. Eu levei dois anos - 2007 e 2008 - brigando para fazer a BR-163, entre o Paraná e o Mato Grosso. É todo o escoamento da nossa produção e agora ela decolou. Está em regime de cruzeiro. Estamos nos preparando para ter uma forte intervenção nos aeroportos.

Valor: Intervenção como?
Dilma: Vamos fazer concessões, aceitar investimentos da iniciativa privada que sejam adequados aos planos de expansão necessários. Vamos articular a expansão de aeroportos com recursos públicos e fazer concessões ao setor privado. Não temos preconceito contra nenhuma forma de expansão do investimento nessa área, como não tivemos nas rodovias. Porque não fizemos a BR-163 quando eu era chefe da Casa Civil?

Valor: Por quê?
Dilma: Quando cheguei na Casa Civil havia um projeto para privatizá-la completamente. Esse projeto virou projeto de concessão e eu o recebi assim. Fomos olhá-lo e sabe quanto era o cálculo da tarifa média? R$ 900. Isso mostra que essa rodovia não era compatível com concessão. Talvez no futuro, quando tivesse que duplicar, fosse por concessão porque ela já teria se desenvolvido e criado fontes geradoras para si mesma. A Regis Bittencourt dá para fazer concessão, pois ela se mantém. O que não é possível é usar o mesmo remédio para todos os problemas.

Valor: E como será para os aeroportos?
Dilma: Vamos fazer concessão do que existe - fazer um novo terminal, por exemplo. Posso fazer concessão administrativa com cláusula de expansão. Posso fazer concessão onde nada existe, como a construção de um aeroporto da mesma forma que se faz numa hidrelétrica. É possível que haja necessidade de investimentos públicos em alguns aeroportos. O Brasil terá que ter aeroportos regionais. Nós vamos criar a Secretaria de Aviação Civil com status de ministério, porque queremos uma verdadeira transformação nessa área. Para ela irá a Anac, a Infraero e toda a estrutura para fazer a política.

Valor: Quando a sra. vai mandar para o Congresso a medida provisória que cria a secretaria?
Dilma: Estou pensando em mandar até o fim deste mês.

Valor: Quem vai ocupar a pasta da Aviação?
Dilma: Ainda estamos discutindo em várias esferas um nome para a aviação civil.

Valor: O nome do Rossano Maranhão não está confirmado?
Dilma: Nós sempre pensamos no Rossano para várias coisas. Não só eu. O presidente Lula também. Nós o consideramos um excepcional executivo.

Valor: Eu gostaria de voltar à questão da inflação. A sra. disse que não vai derrubar a economia e vai derrubar a inflação. É isso?
Dilma: Não é só isso. Eu não negocio com inflação.

Valor: Há quem argumente, na ponta do lápis, que não é possível reduzir a inflação de 6% para 4,5% e crescer 4,5% a 5% ao ano.
Dilma: Você pode fazer várias contas. É só fazer um modelo matemático. Agora, se ela é real...

Valor: Mesmo com o corte de R$ 50 bilhões nos gastos públicos, a política fiscal do governo não é contracionista de demanda. Ela é menos expansionista do que foi no ano passado.
Dilma: Ela é uma política de consolidação fiscal.

Valor: O que significa isso?
Dilma: É porque achamos que o que estamos fazendo não é... É como cortar as unhas. Vamos ter que fazer sempre a consolidação fiscal. Na verdade, temos que fazer isso todos os anos, pois se você não olhar alguns gastos, eles explodem. Se libera os gastos de custeio, um dia você acorda e ele está imenso. Então, você tem que cortar as unhas, sempre. Nós estamos cortando as unhas do custeio, vamos cortar mais e vamos fazer uma política de gerenciar esse governo. Estamos passando em revista tudo o que pode ser cortado e isso tem que ser feito todos os anos.

Valor: O que significa não negociar com a inflação do ponto de vista de cumprimento da meta?
Dilma: Significa que a meta é de 4,5% e nós vamos perseguir 4,5%. Tem banda para cima, banda para baixo (margem de tolerância de 2 pontos percentuais), mas nós sempre tentamos, apesar da banda, forçar a inflação para a meta até tê-la no centro.

Valor: Os mercados não estão acreditando nisso. Acham que o Banco Central foi frouxo no aumento dos juros, até porque o Palácio do Planalto teria autorizado um aumento de 0,75 ponto percentual e o presidente do BC (Alexandre Tombini) não usou essa autorização...
Dilma: Eu não vejo o Tombini há um mês, não vejo e não falo. Aproximadamente... eu lembro uma vez que ele viajou e a última vez que falei com ele foi antes dessa viagem.

Valor: O Tombini é "dovish" [neologismo inglês derivado de "dove", pombo, que indica um defensor de juros mais baixas e com postura mais tolerante com a inflação]?
Dilma: E eu sou arara (risos).

Valor: Preocupa a descrença dos mercados na política antiinflacionária?
Dilma: O mercado todo apostou que esse país ia para o beleléu em 2009. E no fim de 2009 a economia já tinha começado a se recuperar. O mercado apostou numa taxa de juro elevadíssima quando o mundo já estava em recessão. Então eu acho que o mercado acerta, erra, acerta, erra, acerta. Não acho que temos que desconsiderar o mercado, não. A gente tem que sempre estar atento à opinião dele, que integra um dos elementos importantes da realidade. Um dos principais, mas não o único. Eu vou considerar essa história de "dovish" e "hawkish" (pombo ou falcão) uma brincadeira, um anglicismo.

Valor: Mas o BC, no seu governo, tem autonomia?
Dilma: O Banco Central tem autonomia para fazer a política dele e está fazendo. Tenho tranquilidade de dizer que em nenhum momento eu tergiverso com inflação. E não acredito que o Banco Central o faça. Eu acredito num Banco Central extremamente profissional e autônomo. E esse Banco Central será profissional e autônomo. Não sei se não estão tentando diminuir a importância desse BC.

Valor: Por quê?
Dilma: Porque não tem gente do mercado na sua diretoria.
Valor: Mas pode vir a ter?
Dilma: Pode ter, sim. Falar que tem que ser assim ou assado é um besteirol. Desde que seja um nome bom, ele pode vir de onde vier.

Valor: A opção por fazer uma política monetária diferente, mesclada de juros e medidas prudenciais, pode estar criando um mal-estar?
Dilma: O mercado tem os seus instrumentos tradicionais, mas tem também os incorporados recentemente, no pós-crise. Você tem que fazer essa combinação. Não pode ser fundamentalista, não é bom. Conte com os dois que o efeito ocorre.

Valor: A sra. reiterou a meta de inflação de 4,5%, mas não mais para este ano, não é?
Dilma: Sobre isso, tem um artigo interessante escrito pelo Delfim (na edição de terça-feira do Valor), a respeito de que não existe uma lei divina que diz que a taxa de crescimento será de 3% e que a inflação será de 6%. Eu acho que isso é adivinhação.

Valor: As condições para o ano de 2011 não estão dadas?
Dilma: Não, depende da gente. Nós mostramos que não estava dado na hora da crise e vamos mostrar que não está dado também na hora da inflação e do crescimento sustentado da economia brasileira. Quando eu digo que tenho firme convicção de que não se negocia com a inflação, é para você saber que nós passamos todo o tempo olhando isso. Por isso eu acredito no que faz o Banco Central, no que faz o Ministério da Fazenda.

Valor: Tem um elemento já dado para 2012 que preocupa os analistas: a superindexação do salário mínimo no momento em que o país estará em plena luta antiinflacionária. Não seria hora, depois de 17 anos de plano de estabilização, de se desindexar tudo?
Dilma: No futuro nós vamos ter uma menor preocupação com a valorização do salário mínimo. Quando? Quando houver um crescimento sustentado nesse país.

Valor: Isso não dificulta o combate à inflação?
Dilma: O que aconteceu com o salário mínimo ao longo do tempo? Uma baita desvalorização. Seja porque ele não ganhava sequer a correção inflacionária, seja porque vinha de patamares muito baixos. Acho que o processo de valorização do salário mínimo ainda não se esgotou. Foi isso que nós sinalizamos aquele dia na Câmara (na votação da proposta de correção pela inflação e pelo PIB até 2015). Nós não fazemos qualquer negócio. Quando a economia vai mal, nós não vamos dar reajuste, ele será zero. Vamos dar a inflação. Quando a economia vai bem, com um atraso de um ano, nós damos o que a economia ganhou ali, porque acreditamos que houve um ganho global de produtividade e de crescimento sistêmico. O prazo de um ano (o reajuste é dado pelo PIB de dois anos anteriores) amortece, mas transfere ao trabalhador um ganho que é dele, é da economia como um todo.

Valor: Esse é um assunto resolvido até 2015, portanto?
Dilma: Dar ao trabalhador o direito de receber o ganho decorrente do crescimento do país, com o cuidado de não ser automático para você poder ter acomodação necessária, é fundamental. Acho que o acordo feito entre as centrais e o governo do presidente Lula dá conta dessa época que estamos vivendo, em que estamos valorizando o salário mínimo.

Valor: E depois, negocia-se outra regra?
Dilma: É, porque esta não vai dar conta de uma época futura neste país, onde teremos mantido uma taxa de crescimento sistemática, durante um período mais longo, mais de cinco anos, por exemplo. Aí, sim, você terá tido um nível de recuperação da renda que justifica você ter outra meta. Agora, o que nós fizemos e explicamos para as centrais foi manter o acordo que tinha uma sustentação política, uma sustentação de visão econômica da questão do salário mínimo.

Valor: O reajuste de 13,9% de 2012 corrigirá também as aposentadorias?
Dilma: Esse aumento vai para 70% dos aposentados que ganham salário mínimo. Quem ganha mais do que um mínimo não tem indexação. Em 2014 nós teremos que apresentar uma política para os anos seguintes.

Valor: Nessa ocasião ele poderá ser atrelado à produtividade?
Dilma: Não sei. Não acho que isso (a regra atual) seja uma indexação e quem está falando que é uma indexação tem imensa má vontade com o trabalhador brasileiro. Temos que fazer com que algumas regiões do país e alguns setores da sociedade cresçam a uma taxa maior do que a média para reduzir as desigualdades. Isso vale para o Nordeste, para o Norte, para a metade sul do Rio Grande do Sul, para o Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais e o Vale do Ribeira, em São Paulo. O mesmo se aplica a alguns setores da sociedade. Há, aí, uma estratégia que olha para o Brasil. O país não pode ser tão desigual. Isso não é bom politicamente, socialmente, e não é bom para a economia. O que nos aproxima da Índia, da Rússia e da China, os Bric, não é tanto o fato de sermos emergentes.

Valor: O que é?
Dilma: É o fato de que países que têm a oportunidade histórica de dar um salto para a frente, países continentais com toda a sorte de riquezas, quando sua população desperta e passa a incorporar o mercado, isso acelera o crescimento. É o que explica que o nosso crescimento pode ser maior do que o crescimento dos países desenvolvidos. Outro fator é se conseguirmos criar massivamente um processo de educação em todos os níveis para a população, e formação de pessoas ligadas à ciência e tecnologia que permita que o país comece a gerar inovação. Essas três coisas explicam muito os Estados Unidos e é nelas que temos que apostar para o Brasil dar um salto. Nós temos hoje uma janela de oportunidade única. Além disso temos petróleo, biocombustível, hidrelétrica, minério e somos uma potência alimentar. Não queremos ser só "commoditizados". Queremos agregar valor. Por isso insistimos em parcerias estratégicas com outros países. Agora mesmo vamos propor uma para os Estados Unidos.

Valor: Na visita do presidente Obama? Qual?
Dilma: Na área de satélites, especialmente para avaliação do clima, e parcerias em algumas outras áreas. Vou lhe dar um exemplo: acho fundamental o Brasil apostar na formação no exterior. Todos os países que deram um salto apostaram na formação de profissionais fora. Queremos isso nas ciências exatas - matemática, química, física, biologia e engenharia. Queremos parceria do governo americano em garantia de vagas nas melhores escolas. Nós damos bolsa. Vamos buscar fazer isso não só nos Estados Unidos, e de forma sistemática.

Valor: O que a sra. espera de fato dessa visita?
Dilma: Acho que tanto para nós quanto para os Estados Unidos o grande sumo disso tudo, o que fica, é a progressiva consciência de que o Brasil é um país que assumiu seu papel internacional e que pode, pelos seus vínculos históricos com os Estados Unidos e por estarmos na mesma região, ser um parceiro importantíssimo. Isso a gente constrói. Agora, essa consciência é importante. Nós não somos mais um país da época da "Aliança para o Progresso", um país que precisa desse tipo de ajuda. Não que a aliança para o progresso não tenha tido seus méritos, agora não é isso mais que o Brasil é. O Brasil é um país que os EUA tem que olhar de forma muito circunstanciada.

Valor: Como assim?
Dilma: Que outro país no mundo tem a reserva de petróleo que temos, que não tem guerra, não tem conflito étnico, respeita contratos, tem princípios democráticos extremamente claros e uma forma de visão do mundo tão generosa e pró-paz? Uma questão é fundamental: um país democrático ocidental como nós tem que ser um país que tenha perfeita consciência da questão dos direitos humanos. E isso vale para todos.

Valor: Para o Irã e para os EUA?
Dilma: Se não concordo com o apedrejamento de mulheres, eu também não posso concordar com gente presa a vida inteira sem julgamento (na base de Guantânamo). Isso vale para o Irã, vale para os Estados Unidos e vale para o Brasil. Também não posso dar uma de bacana e achar que o Brasil pode ficar dando cartas e não olhar para suas próprias mazelas, para o seu sistema carcerário, por exemplo, sua política com relação aos presos. E isso chega ao direito de uma criança comer, das pessoas estudarem. Isso é direito humano. Mas é também, no sentido amplo da palavra, o respeito à liberdade, a capacidade de conviver com as diferenças, a tolerância. Um país com as raízes culturais que nós temos, que tem uma cultura tão múltipla, e que tem esse gosto pelo consenso, pela conversa, tudo isso caracteriza uma contribuição que o Brasil pode dar para a construção da paz no mundo. Acho que o mundo nos vê como um país amigável.

Valor: A sra. disse recentemente que não fará reforma da previdência social. Mas a regulamentação da reforma da previdência do setor público que está parada no Congresso, será feita?
Dilma: Isso é outra coisa. Já está no Congresso e vamos tentar ver se ele vota. Mas não vamos tirar direitos do trabalhador, não. Nem vem que não tem!.

Valor: A regulamentação da previdência pública, com a criação dos fundos de previdência complementar, não seria apenas para os novos funcionários?
Dilma: É. Mas aí temos que ver como será feito. Não estamos ainda discutindo isso.

Valor: E a reforma tributária? Há informações que a sra. enviará quatro projetos distintos, mudando determinados tributos. É isso mesmo?
Dilma: Estão entrando no Brasil produtos importados com o ICMS lá embaixo. É uma guerra fiscal que detona toda a cadeia produtiva daquele setor. Mas não vou adiantar o que vamos enviar ao Congresso porque não está maduro ainda. Vamos mandar medidas tributárias e não uma reforma. Vamos mandar várias para ter pelo menos uma parte aprovada. Mandaremos também o Programa Nacional de Ensino Técnico (Pronatec) e o programa de Erradicação da Pobreza.

Valor: Como serão esses dois?
Dilma: Não posso lhe adiantar porque também não estão fechados. O Pronatec vai garantir que o ensino médio tenha um componente complementar profissional, de um lado, e, de outro lado, garantir que tenha uma formação para os trabalhadores brasileiros de forma que não sobre trabalhador numa área e falte em uma outra. Isso é um pouco mais complicado e não posso dar todas as medidas por que elas interferem em outros setores. Já a questão do ICMS é uma regulamentação que já está no Senado.

Valor: E a desoneração de folha salarial sai?
Dilma: Não posso lhe falar sobre as medidas tributárias.

Valor: São para este ano?
Dilma: Na nossa agenda é para este semestre.

Valor: Qual a proposta para a erradicação da pobreza?
Dilma: É chegar ao fim de quatro anos mais próximo de retirar da pobreza os 19 milhões de brasileiros que ainda faltam.

Valor: O instrumental é o Bolsa Família?
Dilma: Nos já começamos a mexer no Bolsa Família, aumentando a parte de crianças. É com isso, com uma parte do Pronatec, que vai ajudar, é com microcrédito, incentivo à agricultura familiar de uma outra forma. Estamos passando as tropas em revista e mudando muita coisa. E tem que ter sintonia fina. Há profissionais dedicados ao estudo da pobreza que diz que se você não focar, olhando a cara dela, você não consegue tirar as pessoas. E nós queremos, desta vez, estruturar portas de saída.

Valor: Para todos e não só para os 19 milhões a que a sra se referiu?
Dilma: Para todo mundo.

Valor: Uma porta de saída será o Pronatec?
Dilma: Também. As saídas estão aí e estão em manter a economia crescendo.

Valor: A reunião anual da Assembleia de Acionistas da Vale será dia 19 de abril. Nessa reunião deve se decidir sobre a permanência ou não do presidente Roger Agnelli, cujo contrato de trabalho termina dia 30 de abril. Ele será substituído ou pode ser reconduzido?
Dilma: Não sei.
 
Valor: A sra. não sabe?
Dilma: Você vai ficar estarrecida, mas não sei.