QUADRINHOS

Chiclete com Banana Angeli

Piratas do Tietê Laerte


Bifaland, a cidade maldita Allan Sieber


Daiquiri Caco Galhardo


Níquel Náusea Fernando Gonsales


Mundo Monstro Adão


Macanudo Liniers

02 neurônio - Viva o Brasil!

Jô Hallack - Nina Lemos - Raq Affonso

02neuronio@uol.com.br
 
02neuronio.blog.uol.com.br


Viva o Brasil!

É muito bom viver num país que respeita as "uniões homoafetivas". O nome é bem diferente do que a gente usa do lado de fora dos tribunais, mas ficamos orgulhosas com a aprovação da lei que garante benefícios legais para casais gays, como herança por morte do parceiro, acesso a plano de saúde e pensão alimentícia.

Malefícios
Mas agora os casais gays também podem usufruir "oficialmente" de outros benefícios das uniões (a.k.a. casamento): o tédio, a preguiça e a eterna dúvida... "Estaria eu melhor solteira(o)?" Pois não importa se você é homo ou hétero, o sol nasce para todos. E se põe também!

Sempre alerta
Fogos de artifícios, mas olhos bem abertos: a vitória do STF (Supremo Tribunal Federal) não muda as pessoas, apenas modifica a lei. E o mundo se tornou um lugar bem reacionário, onde a extrema-direita encontra espaço livre em todo o mundo e neonazistas paulistas fazem "atos cívicos" para apoiar deputados homofóbicos. Então, se alguém ficar te encarando com um olhar enigmático na avenida Paulista, isso não é amor.

Caminhando e cantando
Como disse Neil Armstrong, pisando na lua: "Este é um pequeno passo para um homem, mas um grande passo para a humanidade". Porque agora começa a luta por muitas outras mudanças. Mudar faz bem para a pele, pessoas!

ENSINO SUPERIOR - Sem fronteiras

As iniciativas e os obstáculos de instituições brasileiras frente à internacionalização






ÉRICA FRAGA
SABINE RIGHETTI


DE SÃO PAULO

Internacionalizar e, ao mesmo tempo, conseguir manter e formar os melhores cérebros é o grande desafio do ensino superior atual. No mercado global é assim. No Brasil não é diferente.
Aqui, essa internacionalização -medida principalmente pelo número de alunos e professores estrangeiros e pela existência de projetos acadêmicos bi ou multinacionais- tem dado seus primeiros passos alimentada pela maior agressividade das faculdades privadas.

Entre as razões para a "caça" de acadêmicos no exterior está trazer especialistas em áreas nas quais há carência no país. E, é claro, concorrer no "mercado" de alunos, que são atraídos pelo apelo de estudar com "stars".

"Um país é "player" importante quando tem universidades influentes no mundo", explica Leandro Tessler, coordenador de relações internacionais da Unicamp.

Para ele, os estudantes têm uma melhor formação se estiverem num ambiente globalizado, ou seja, em contato com ideias e práticas vindas de outros países.

Oscar Vilhena, recém empossado diretor da faculdade de direito da FGV, destaca a demanda por profissionais mais qualificados. "O advogado deve funcionar em uma outra língua e entender a cultura jurídica de outro país."

Cerca de 15% do corpo docente do Ibmec é composto por estrangeiros, segundo Vandyck Silveira, diretor-presidente do instituto. "Perseguir excelência envolve também buscar profissionais no exterior", diz.

Segundo Rinaldo Artes, diretor do Insper, representantes do instituto participam de eventos de recrutamento no exterior na busca por potenciais contratados.

Mas há também o movimento contrário, de quem quer vir para o Brasil. Para Jorge Guimarães, presidente da Capes, as universidades americanas e europeias estão inchadas. Aqui, segundo ele, um docente vindo de fora pode conseguir boa posição até em cargos de chefia.

Guimarães é um defensores da internacionalização do ensino superior. Tanto que o tema compõe um dos capítulos do próximo PNPG (Plano Nacional de Pós-Graduação), que guiará as políticas na área até 2020.
A estratégia para melhorar a qualidade acadêmica envolve atrair de volta ao país profissionais radicados no exterior. As últimas cinco contratações de professores feitas pela EPGE (FGV/ Rio) foram no exterior -dois estrangeiros e três brasileiros.

A de maior peso foi Marcelo Moreira, então professor titular da Universidade de Columbia, nos EUA. Para ele, o desejo pessoal de voltar contribuiu para aceitar o convite. Mas o fato das faculdades estarem investindo em melhorar a pesquisa também.

BUROCRACIA
Na universidade pública, disputar um professor de alto nível no mercado, oferecendo salário e condições de trabalho específicas, é inviável.

Isso, na opinião de Marco Antônio Zago, pró-reitor de pesquisa da USP, não é necessariamente um problema. "A USP não seria uma universidade melhor se contratasse um Nobel", analisa.
Mas a importância que o tema ganhou recentemente também levou a USP a criar uma vice-reitoria de relações internacionais, com foco na internacionalização.

No final da semana passada, a Unesco realizou, em Buenos Aires, encontro entre redes universitárias da América Latina e Caribe. Estavam presentes representantes de todos os países da região, reunidos em 67 instituições públicas e privadas.

O objetivo principal do evento era iniciar o debate sobre como facilitar a internacionalização do ensino superior, afim de manter no continente os cérebros de professores e alunos.
Trazer e levar estudantes e professores para além de suas fronteiras tem uma vantagem adicional: o aumento da produção científica interpaíses e de seu consequente impacto internacional.
Ou seja: quanto mais internacionalizada, mais as universidades sobem nos rankings globais. (Colaboraram LUCAS FERRAZ e MARINA MESQUITA)

O homem que matou o facínora - Ivan Martins

A morte de Bin Laden levanta a popularidade de Obama e amplia seu favoritismo nas eleições do ano que vem

Os políticos, assim como os goleiros, precisam de sorte. Até domingo passado, dia 1º de maio, a sorte do presidente americano, Barack Obama, parecia estar em declínio. Empossado há pouco mais de dois anos, depois de uma campanha que criou enormes expectativas, ele debatia-se num oceano de crises: a maior recessão econômica em quase um século, desemprego próximo a 10%, guerras complicadas no Iraque e no Afeganistão, uma intervenção de futuro incerto na Líbia e, claro, a onda de revoltas populares nos países árabes, que lançou sobre aquela parte do mundo um véu de incerteza e instabilidade. Tudo isso fez o índice de aprovação de Obama entre o eleitorado americano cair para algo entre 46% e 48%. Pouco para quem tem de enfrentar uma eleição em novembro de 2012. Na tarde do domingo, depois de jogar uma partida de golfe, a sorte de Obama começou a mudar. Ele sentou-se na Sala de Comando da Casa Branca, um aposento repleto de equipamentos de comunicação, para acompanhar ao vivo a operação que terminou com a morte do terrorista Osama bin Laden, o inimigo público número um dos Estados Unidos. O sucesso da missão redesenhou o futuro de sua Presidência e pode alterar para melhor o lugar de Obama na história.

A rigor, nada mudou desde a morte de Bin Laden – mas tudo ficou subitamente diferente. Embora os problemas na economia e na política externa sigam do mesmo tamanho, a percepção a respeito da capacidade de Obama de lidar com eles agora é outra. Quando multidões saíram às ruas de Nova York e Washington para celebrar a morte de Bin Laden, ficou claro o tamanho da vitória simbólica atribuída a Obama. As pesquisas mostraram que seus índices de aprovação subiram entre 9% e 11%, atingindo patamares superiores a 50% pela primeira vez em meses (leia o quadro ao lado). Seus rivais do Partido Republicano foram obrigados a se curvar ao herói do momento. “Permitam-me dar ao presidente Obama o crédito tremendo que ele merece”, disse o congressista Pete King. Mesmo um dos críticos mais venenosos do presidente, o radialista de direita Glenn Beck ergueu a bandeira de paz: “Eu não achava que ele seria capaz de puxar o gatilho. Graças a Deus, ele fez isso”.

Não se sabe quanto tempo a nuvem de boa vontade resistirá, mas a história sugere que ela pode se dissipar rapidamente. George Bush, o pai, chegou a 90% de aprovação popular depois de expulsar Saddam Hussein do Kuwait, em 1992. Passados 19 meses, a erupção de uma crise econômica fez com que ele perdesse a eleição para Bill Clinton. Obama tem os mesmos 19 meses antes da próxima eleição, e a economia não está melhorando. Mas os analistas concordam que a morte de Bin Laden lhe deu novo fôlego.

A decisão de lançar o ataque no Paquistão foi, isoladamente, a aposta mais arriscada da carreira política de Obama. Em 1980, o presidente democrata Jimmy Carter enviou comandos de helicóptero para resgatar reféns aprisionados na embaixada americana em Teerã. Uma tempestade de areia levou os helicópteros a se chocar – e a missão foi abortada com baixas antes mesmo de chegar ao destino. Carter ficou desmoralizado e não se reelegeu. Esse fantasma deve ter assombrado Obama cada minuto antes da confirmação da morte de Bin Laden em Abbottabad.

Com o sucesso da missão, restou aos republicanos reivindicar sua parte do crédito pela vitória. “Tudo isso (a morte de Bin Laden) foi possível pela pressão incansável e firme sobre a Al-Qaeda que a administração Bush iniciou depois de 11 de setembro e que a administração Obama teve a sabedoria de prosseguir”, disse Donald Rumsfeld, ex-secretário de Defesa de George W. Bush. As informações divulgadas até agora sugerem que, de fato, as pistas que levaram ao esconderijo de Bin Laden começaram a ser obtidas durante o governo Bush. Mas coube ao atual presidente encerrar, com sucesso, uma caçada humana de dez anos.

Capturar Bin Laden vivo ou morto era uma das principais promessas de campanha de Obama. “Se tivermos Osama bin Laden ao nosso alcance e o governo do Paquistão for incapaz ou não quiser agir, nós temos de agir. Vamos matar Bin Laden”, disse ele durante um debate com o candidato do Partido Republicano, John McCain. No discurso de nove minutos e 1.389 palavras em que anunciou em rede nacional de televisão a morte de Bin Laden, na noite do domingo, Obama lembrou seu compromisso com a eliminação da Al-Qaeda e sua liderança. De forma incomum para um presidente formalmente modesto, repetiu nove vezes o pronome “eu” e jactou-se de ter orientado Leon Panetta, chefe da CIA, a transformar a captura ou morte do terrorista saudita na prioridade número um da agência de inteligência americana. Não se sabe quanto disso é verdade e quanto foi manufaturado para melhorar a imagem de Obama. Mas é fato que ele tomou uma decisão, ao contrário de Bill Clinton, em cuja administração Bin Laden foi percebido como ameaça. Clinton ignorou a ameaça.

A melhor chance de Obama obter a reeleição – apesar da economia ruim – está em restaurar no país o senso de unidade e propósito que cercou George W. Bush depois do atentado de 11 de setembro. Ele fez de Bush um presidente inatacável por alguns anos. É improvável que Obama obtenha trégua tão longa. Há também o risco de a economia degringolar ou de um ataque terrorista de retaliação manchar a aura de líder vitorioso que cerca Obama. Mas isso está no futuro. Na quinta-feira passada, ao colocar flores no memorial aos mortos das Torres Gêmeas, em Nova York, Obama foi intensamente aplaudido pelos bombeiros da cidade, cuja corporação foi a mais atingida pela tragédia. Ele, sem dúvida, é o cara do momento. Como no título do faroeste, ele é o homem que matou o facínora.

O que o Brasil quer ser quando crescer? - Gustavo Ioschpe

Você sabe qual é o plano estratégico do Brasil? Quais são as nossas metas, aonde queremos chegar? Que tipo de país queremos ser no futuro? Eu confesso não saber. Os slogans e prioridades dos últimos governos não apontam para um programa positivo, sobre nossos anseios e planos, mas sim para uma agenda negativa: sabemos aquilo que não queremos ser. Não queremos ser um país excludente, mas sim “um país de todos”. Queremos a perseverança – “sou brasileiro e não desisto nunca” –, apesar de não estar claro qual o objetivo da persistência. Dilma agora fala na “erradicação da miséria” como seu grande objetivo. Ainda que nobre, tampouco aponta um rumo, apenas indica o que não queremos ser. Há inúmeras maneiras de ser um país de todos e em que não há miséria. A Suécia dos dias que correm, por exemplo. A Alemanha também seria boa candidata. Mas esses dois países são bastante diferentes, e chegaram a esse ponto por caminhos distintos. Qual será o nosso? Seremos o celeiro do mundo? Tentaremos quebrar a escrita e nos tomar a primeira nação a alcançar o patamar do Primeiro Mundo através da exportação de commodities? Seremos um centro industrial? De baixa tecnologia ou alta? E a nossa economia política? Manteremos essa pseudossocial-democracia que vem imperando por inércia? Que nível de desigualdade de renda toleraremos, que peso o estado terá? Sucumbiremos ao apelo do consumismo, à la EUA, ou privilegiaremos o tempo livre e a exploração cultural, como faz a França? As questões se acumulam e eu, pessoalmente, não conheço nenhuma liderança política ou intelectual que tenha esboçado um projeto completo de país para a geração de nossos filhos e netos. Pode ser que esse improviso dê certo. Pode ser que tropecemos no modelo ideal à medida que fizermos o caminho. Mas creio que estamos mais propensos a validar o antigo ditado chinês segundo o qual não há bons ventos para quem não sabe aonde quer chegar.

Uma das áreas que mais sofrem com essa indecisão é a educação. Há uns cinco anos, fiz uma consultoria para o Ministério da Educação em que analisei o trajeto de países que, no passado ou atualmente, tiveram grandes avanços em sua educação. Foram examinados dez países que podiam dar algumas lições ao Brasil: Alemanha, Argentina, Austrália, Coreia, Chile, China, Espanha, Irlanda, Inglaterra e Tailândia.

Uma das conclusões do estudo (disponível na íntegra em twitter.com/gioschpe) foi que, nos países em que os saltos educacionais acompanharam saltos de desenvolvimento, a modelagem do sistema educacional estava profundamente atrelada ao projeto estratégico da nação. Isso se dá de duas maneiras.

A primeira é que a visão de futuro que essas nações perseguem é o elemento primeiro e fundamental a nortear as ações de governantes e lideranças da sociedade civil da área educacional. Assim como a infraestrutura, a tributação, as relações exteriores e muitas das demais áreas que são responsabilidade de governantes, a educação não funciona autonomamente: ela se subordina a um projeto de país.

A segunda é que não apenas o objetivo educacional está atrelado ao objetivo econômico-estratégico, mas também o tipo de educação priorizada é determinado pelo caminho escolhido pelo país pára atingir seu objetivo de crescimento. Esse modelo de crescimento, por sua vez, deriva de uma série de características e vantagens comparativas específicas do país em questão. Tanto a China quanto a Irlanda buscam se desenvolver, mas optando por caminhos bastante distintos. A China, com seu enorme território e população, quer ser a fábrica do mundo, começando pelos itens de baixo valor agregado e gradualmente subindo os degraus necessários rumo às indústrias mais desenvolvidas. Seu sistema educacional acompanha e abastece a empreitada: a educação básica da província de Xangai recentemente ficou em primeiro lugar no mundo no teste Pisa, e nas universidades o governo faz um esforço concentrado para repatriar os cientistas de origem chinesa que hoje trabalham nas grandes universidades ocidentais. A China preserva sua indústria, interfere no câmbio e exporta para o mundo. A educação chinesa é rígida, tradicionalista, competitiva.

Já a Irlanda é um país pequeno demais para adotar estratégia semelhante. No fim dos anos 80, transformou-se em uma nação de grande abertura para o mundo e com baixos impostos. Valeu-se de um ativo importante - falar inglês - para atrair empresas globais. Preocupou-se em ter uma população qualificada em todos os níveis: até hoje, tanto no ensino secundário quanto no universitário, o aluno pode escolher entre uma escola acadêmica, que leva à universidade, e uma escola vocacional profissionalizante, que leva, também no ensino superior, a institutos técnicos. O jovem sai do sistema educacional com uma educação de ponta, quer ele vá ser cientista e advogado ou gerente de banco e agente de viagens. Poderá trabalhar, com competência e criatividade, nas empresas estrangeiras que adotam a Irlanda como base europeia.

No Brasil, que tem um dos piores sistemas educacionais do mundo, as coisas são ao contrário. Não temos um projeto de país e a educação é desconectada do país. Não é percebida como uma ferramenta estratégica para o desenvolvimento, mas como um fim em si mesmo, como um direito do cidadão e ponto. Quando os educadores se referem à sociedade, o objetivo mais frequente não é perscrutar-lhe os anseios, mas reclamar. Não fossem os malditos pais dos alunos (que não cooperam, são incultos, bebem, mimam seus filhos, divorciam-se deixando famílias desestruturadas...), a escola brasileira produziria os resultados de uma Finlândia. Pior ainda, o pensamento educacional brasileiro é tão original e autóctone quanto a arquitetura que recria o neoclássico parisiense no topo de espigões às margens de rios fétidos. Somos o pior tipo de colonizados: formalmente livres, mas intelectualmente amarrados às antigas metrópoles, incapazes de pensar sozinhos. Nossa teoria educacional é importada de outros países, porque o que dá gabarito é estar inserido na discussão dos temas candentes na Europa ou nos EUA, mesmo que seja a respeito dos problemas deles, que não têm nada a ver com os nossos.

A sociedade civil precisa recuperar nossa educação e subordiná-la aos interesses nacionais. Precisamos criar uma geração de pensadores que se esqueça dos simpósios em Madri e pense no que funcionará para alfabetizar as crianças de Madureira. E precisamos de um projeto de país - criado aqui, tendo em mente nossa cultura, recursos e instituições - que oriente e catalise todo esse esforço. Enquanto esse projeto não chega, nossa escola deve se mobilizar para construir o primeiro passo, comum a qualquer projeto futuro: toda criança plenamente alfabetizada ao fim da 2ª série.

P.S.: o artigo do mês passado foi para a gráfica no dia da tragédia de Realengo. Pensei em abordar o tema neste mês, mas não há nenhum aprendizado para o país: foi o ato de um doente mental. Lamento muito a trágica e estúpida perda de vida de doze crianças, mas acho que devemos nos ocupar mais dos milhões de anônimos de nossas escolas, que são diariamente massacrados e intelectualmente amputados por um sistema que, sem estardalhaço, lhes suga a possibilidade de uma vida plena e digna.

Mais um pouco, ele vira santo

Teorias conspiratórias sobre a morte de Bin Laden alimentam o antiamericanismo - e vice- versa. Já tem gente até lamentando o seu "assassinato", como se ele fosse uma vítima de práticas condenáveis

A bala ainda nem havia esfriado no miolo de Osama bin Laden e duas correntes contraditórias, mas mutuamente entrelaçadas, ganharam o mundo. A primeira dizia que "tudo" parecia muito estranho - e daí brotaram as mais bizarras teorias conspiratórias. A segunda pregava que o criminoso de guerra, responsável por tramar a morte de 3 000 pessoas inocentes (e ainda dar risada, num vídeo posteriormente capturado, fazendo um sinal com a mão para mostrar como caíram os dois prédios do World Trade Center, reduzindo a pó todos os que ainda lá estavam), havia sido "assassinado", à margem da lei, não obstante o direito dos povos à autodefesa. Ou seja: os Estados Unidos sempre estariam errados, seja por fazer (transformar o sujeito em comida de peixe no Mar da Arábia, o que não deixa de ter uma certa beleza poética), seja por não fazer (forjar a operação com os sinistros objetivos de sempre). A dancinha da vitória, sob a forma da estudantada que saiu para gritar "USA" e cantar desafinada o hino nacional (só a primeira parte, porque ele é quase tão complicado quanto o brasileiro), foi particularmente ofensiva às sensibilidades estrangeiras. Um arcebispo anglicano declarou "sentimentos muito desconfortáveis" e um colunista australiano celebrou a "aura de realismo mágico de Osama bin Laden; ele se parecia com o Cristo ressuscitado".

A operação espantosamente precisa e arriscada que colocou 25 comandos da força Seal no cafofo do Osama e saiu de lá com o próprio ensacado foi perfeita para os teóricos da conspiração. Para mantê-la parcialmente em obrigatório sigilo, o governo americano divulgou pouco e mal, variando as versões e segurando a famosa foto que ninguém viu. O impulso de ver explicações secretas em grandes acontecimentos obedece a um muito humano desejo de estar por dentro de informações que a maioria ignora. alimentando assim sentimentos de autossatísfação e superioridade. A aleatoriedade da vida também pode ser mais incômoda do que acreditar que uma conspiração entre a máfia e cubanos anticastristas matou John Kennedy, que o governo americano mantém em segredo desde 1947 o corpo de um extraterrestre que caiu em Roswell e, evidentemente, que os atentados de 11 de setembro foram tramados pela CIA (e pelo Mossad, claro). As teorias conspiracíonistas fazem a fama de diretores como Oliver Stone e Michael Moore e a infâmia de multidões anônimas que só precisam de um computador e da internet para alimentar infinitamente as maiores maluquices. Em 2006, impressionantes 26% dos americanos achavam possível que os dezenove fanáticos binladistas que sequestraram e espatifaram quatro aviões estivessem sendo manipulados por "gente de dentro" do governo.

Fora dos Estados Unidos, o conspiracionismo enrosca-se na doença infantil do antiamericanismo. Atribuir aos americanos a origem de rodos os males do mundo é um vício psíquico, fonte ao mesmo tempo de prazer e frustração. Desta última porque evidentemente continuam a ser a potência predominante, mesmo com a torcida para que a China os passe logo à frente e instaure uma benfazeja era de pax sinensis. E do primeiro porque provoca a sensação de pertencer ao "lado do bem", como crianças impotentes em eterno estado de revolta contra as autoridades. A narrativa da virimização dá sentido a trajetórias históricas erráticas e simula um combate maniqueista dos fracos contra os fortes. Reside nela a fonte mais poderosa do apelo de ultraextremistas como Bin Laden e correlatos. É comum que nos paises ocidentais, com o hábito do pensamento lógico e da autocrítica, se faça a justa distinção entre a grande religião muçulmana e os crimes praticados em seu nome por extremistas, mas o prestígio do terrorista-mor, mesmo em declinio, alcança níveis espantosas: 34% dos palestinos, 26% dos indonésios e 22% dos egípcios, pesquisados neste ano pelo Pew Research Center, consideravam-no um lider digno de confiança. Só para lembrar: Bin Laden virou a mira para os americanos depois que Saddam Hussein invadiu o Kuwait, e a Arábia Saudita, temendo ser a próxima, aceitou a intervenção militar dos Estados Unidos. Ele considerava o maior dos sacrilégios que infiéis cristãos conspurcassem o solo onde viveu o profeta Maomé e está o principal local de culto, a santa Meca.

Pois é, a história toda começou porque o sujeira do turbante achava, no sentido figurado, que não dava para entrar no mesmo elevador que os americanos, um dos motivos mais idiotas de todos -os. tempos. Não admira que eles tenham matado Bin Laden em 2001 e mantido o corpo congelado até agora só para ajudar o Obama. Ou seria o contrário?

Planejar, treinar e executar

Militares de elite como os Seals, da operação que matou Bin Laden, são especializados em missões nas quais devem atacar sem ser percebidos em qualquer tipo de terreno e cumprir o objetivo com perfeição e rapidez

As forças de operações especiais são unidades militares de elite responsáveis por missões não convencionais atrás das linhas inimigas: reconhecimento, contraterrorismo e coleta de informações. Seus integrantes são treinados para entrar em território hostil sem ser vistos. Essa tropas devem também conhecer a língua e os costumes locais para conduzir operações em conjunto com a população nativa. Foi o que aconteceu durante a Guerra do Vietnã (1959-1975), quando os Seals, da Marinha, e os BoinasVerdes, do Exérciro, treinaram os vietnamitas do sul para lutar contra os vietcongues. As forças de operações especiais americanas incluem cinco grupos. No ataque ao esconderijo de Bin Laden, os Seals foram acompanhados por pilotos da 160 Soar Airbome, da Força Aérea .. Os outros três grupos são do Exército: a Força Delta, os Rangers e os Boinas-Verdes. A Força Delta é, ao lado dos Seals, a elite da elite. Foi criada nos anos 70 pelo presidente Jimmy Carter para participar de missões antiterrorismo e de resgate. Já os Rangers e os Boinas-Verdes são tropas de choque, que abrem caminho para as forças convencionais. Cerca de 60000 do 1,5 milhão de soldados americanos estão nas forças de operações especiais.

AS LIÇÕES DO PASSADO

PREPARO
Os Seals destacados receberam treinamento para a missão
No passado: militares sem treinamento específico foram ao Panamá em 1990 para prender o traficante colombiano Pablo Escobar.
A missão fracassou devido a informações desencontradas

TEMPO A FAVOR

Os Seals treinaram meses para a operação, ensaiando a invasão em uma réplica da casa de Bin Laden construída em Cabul, no Afeganistão
No passado: em uma expedição militar na Somália, em 1993, dois helicópteros foram abatidos. A equipe de resgate não estudou a área e acabou envolvida em um confronto que matou centenas de somalis e dezoito americanos.

O mundo depois de Bin Laden

A eliminação do terrorista saudita é uma grande vitória contra os jihadistas, mas o apelo ao extremismo permanece vivo

O premiê inglês Winston Churchill (1874-1965) dizia: "Os americanos sempre farão o que é certo ... depois de terem esgotado todas as possibilidades". A tirada demonstra, por um lado, a força moral que move os Estados Unidos e, de outro, a capacidade às vezes patética de cometer equívocos amplificados pelo gigantismo militar e econômico da superpotência. E foi assim, obedecendo ao corolário de Churchill, que - depois de nove anos e oito meses de buscas, duas guerras, alguns escândalos de direitos humanos e 1,5 trilhão de dólares em gastos - um grupo de elite da Marinha americana invadiu o espaço aéreo paquistanês no meio da noite de 2 de maio e deu cabo da vida do terrorista saudita Osama biu Laden. Com ele, desaparecem os fantasmas de um período que no futuro, talvez venha a ser chamado de a Década do Erro. Na virada do milênio, o mundo preparava-se para fazer do século XXI aquele em que duas nobres questões seriam resolvidas: negociar a solução dos conflitos remanescentes, passada a fase de acomodação da ordem global que se seguiu ao fim da Guerra Fria; e garantir que a liberdade econômica pudesse beneficiar uma parcela maior da população com melhorias em suas condições de vida. As esperanças de sucesso. eram justificadas. Não havia mais uma ameaça externa real à paz mundial e, de fato, o planeta já era um lugar melhor para viver, se comparado com 100 anos antes: na passagem do século XIX para o XX, a expectativa de vida nos países pobres era de 40 anos. Em 2001, havia chegado a 60 anos. Osama bin Laden e sua trupe assassina desviaram o século XXI do rumo previsto e impuseram sua agenda de destruição e caos. Sua morte não garante o fim da ameaça terrorista, mas simboliza o término de um ciclo no qual o esforço por combatê-la ofuscou os outros desafios globais.

Bin Laden tinha uma conta alta a pagar. Meia década exercitando o assassinato em massa, principalmente na África e no Oriente Médio, culminou no sequestro de quatro aviões usados nos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que mataram 3000 pessoas de 54 nacionalidades e das principais religiões - inclusive muçulmanos, os quais sua franquia do terror, a AI Qaeda, diz representar. As vítimas em Nova York, Washington e Pensilvânia naquela manhã de outono deixaram 3000 filhos órfãos. Por que recordar esses números? Porque uma parcela espantosamente significativa da humanidade. aí incluídos muitos brasileiros sem nenhuma afinidade com o radicalismo religioso da AI Qaeda, ainda acha que os Estado Unidos por alguma razão fizeram por merecer o ataque. Essa foi, aliás, a maior vitória de Bin Laden: com seu discurso de vitimização dos árabes perante a Superpotência, fez vibrar mais forte a corda do ódio irracional aos americanos. Trata-se de uma inversão da realidade. As vítimas do 11 de Setembro não sabiam por que estavam sendo punidas. Bin Laden, quando levou um tiro no peito e um na cabeça sim. Até que isso ocorresse, no entanto, ele se empenhou em ampliar sua lista de crimes. Após assumirem o controle da casa fortificada de 1 milhão de dólares na qual Bin Laden se escondia, no Paquistão. os Seals encontraram em seu quarto cinco computadores, dez discos rígidos e centenas de pastas de documentos. Uma análise feita pela CIA revelou que pelo menos parte desse material. continha planos de novos atentados, um- deles contra trens de passageiros" nos Estados Unidos. A AI Qaeda nunca deixara de agir. Desde 2001, ocorreram 22 atentados atribuídos diretamente ao grupo de Bin Laden, dezoito deles em países islâmicos. Esse levantamento não leva em conta todos os outros ataques inspirados na AI Qaeda ou cometidos por suas filiais, como a do Iraque, especializada em massacrar outros muçulmanos.

Eis o legado que deve sobreviver ao desaparecimento de Bin Laden: a disseminação de uma ideologia que emprega a guerra santa contra a civilização ocidental como um fim em si mesmo, com uma vaga pretensão de reconstruir no Oriente Médio o califado islâmico do século VII. Por isso, ao anunciar a morte do terrorista, o presidente americano Barack Obama fez a ressalva de que a guerra ao terror não terminou. A preocupação se justifica porque há, no mundo islãmico, bolsões radicais que continuarão alimentando a AI Qaeda e similares com terroristas. Um desses lugares é o Paquistão. onde Bin Laden se escondeu durante cinco anos a poucos metros de um centro militar. Uma das mulheres do saudita foi interrogada pelas autoridades paquistanesas na semana passada e disse que ela e seu marido ficaram todo esse tempo sem sair de casa. Ainda assim, é estranho que o serviço de inteligência do país, o lSI. não soubesse que o homem mais procurado do mundo estava ali, a poucos quilômetros da capital. nas barbas e bigodes de seus agentes. O paradoxo é que, justamente pela conivência das forças paquistanesas com os extremistas, os Estados Unidos não podem interromper a ajuda que dão aos militares do país. É melhor tentar cooptá-los do que deixar que os fundamentalistas tomem conta de vez do país, cujo arsenal nuclear é o que mais cresce no mundo. Por razão semelhante. os Estados Unidos não devem sair às pressas do Afeganistão, palco de uma guerra para a qual foram arrastados pela necessidade de afastar do poder o regime fundamentalista do Talibã, que dava guarida a Bin Laden e à AI Qaeda.

Se a ideia do terrorismo islâmico não foi sepultada para sempre no fundo do Mar da Arábia junto com o corpo do seu mentor, como é possível afirmar que um ciclo se fecha e já se pode pensar em pôr o século XXI de volta ao seu eixo? Porque a morte de Bin La Den ocorreu justamente no momento em que sua ideologia vem perdendo apelo junto às massas islâmicas, como comprovam os protestos que derrubaram ou tentam derrubar ditaduras no Oriente Médio, nos últimos quatro meses. Esses movimentos árabes podem até levar à criação de estados islãmicos, como é a esperança de grupos como a Irmandade Muçulmana, no Egito, mas não ocorrem sob a ideologia do binladismo nem se valem das mesmas táticas violentas: O mundo, sem dúvida, é um lugar melhor sem Osama bio Laden.

Ele rompeu com o terrorista

Nos anos 80, o líbio Noman Benotman lutou ao lado do Talibã contra as tropas da extinta União Soviética, no Afeganistão, pois o ateísmo comunista era uma ameaça ao islamismo. Depois da derrocada dos soviéticos, ajudou a fundar o Grupo Islâmico de Combate Líbio. com o objetivo de derrubar Muamar Kadafi e criar no país um estado regido pela lei islâmica. Em 1994, viajou para o Sudão e fez contatos com a AI Qaeda, associada ao seu grupo. Lá conheceu o saudita Osama bin Laden e o egípcio Ayman al-Zawahiri, o número 2 da organização. No ano seguinte, desistiu do jihadismo, exilou-se na Inglaterra e tornou-se analista na Fundação Quilliam, instituição em Londres que ensina agentes do governo a identificar extremistas. Benotman, de 44 anos, falou ao repórter Duda Teixeira.

Como fica a AI Qaeda sem Bin Laden?

Ele era a face mais conhecida, sempre presente na televisão, e líder ideológico do grupo. Ninguém pode substituí-lo nesse papel, pois era uma figura carismática para os radicais. No nível operacional, contudo, Bin Laden já não era tão significante. Sem ele, a organização continuará capaz de promover atentados.

Por que Bin Laden tinha carisma?

Tem a ver com a aparência, com o jeito de ele se comportar. Bin Laden era calmo, sorridente e aparentemente humilde. Era muito difícil contestá-lo em uma discussão. Seu apelo não tinha a ver com inteligência, e sim com a naturalidade no trato com as pessoas. Esse comportamento escondia seu verdadeiro intuito: provocar dor nos outros. Em sua teoria simplista, acreditava que árabes e muçulmanos estavam sofrendo e que os ocidentais deviam dividir essa dor conosco. Foi com esse objetivo que planejou os atentados de 2001, dos quais tinha muito orgulho.

o que faz alguém entrar para a AI Qaeda?

Esse grupo de fanáticos não espera receber alguma recompensa em vida. Eles atuam acreditando que servem a uma ordem divina. Ao cumprirem uma obrigação religiosa, esperam ir para o paraíso depois da morte. Esse é o prêmio que buscam. Muitos seguiam Bin Laden por impulso, sem sequer compreender os argumentos de sua ideologia.

A AI Qaeda foi bem-sucedida em seus objetivos?

No plano das ideias, sim. Seus terroristas foram em grande parte os responsáveis por criar um ódio entre os muçulmanos e o Ocidente. Foi nisso que eles investiram ao longo de mais de quinze anos, e conseguiram. Até hoje, são capazes de mobilizar radicais para atacar alvos distantes, onde eles nunca estiveram, contra pessoas desconhecidas.

Bin Laden: O pior inimigo do Islã - John L. Espósito

“A maioria dos muçulmanos compartilha com os não muçulmanos a preocupação com a ameaça do extremismo religioso e o medo do terrorismo”

Osama bin Laden não foi o pior inimigo apenas do Ocidente, mas também do Islã e do mundo islâmico. Ele e seus seguidores mataram muçulmanos e não muçulmanos nos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, e de 7 de julho de 2005, no metrô de Londres. Em diversas outras ocasiões, eles explodiram suas bombas em países de maioria islâmica. Sua declaração de guerra aos Estados Unidos e à Europa, aos judeus e cristãos e seu apoio aos atos de terrorismo no mundo agrediram a fé da vasta maioria de muçulmanos. Ao fazer isso, Bin Laden alterou profundamente a maneira como as pessoas de outras religiões enxergam o islamismo. Muitas dessas pessoas passaram a associar o Islã à legitimação da violência e ao terrorismo. Como resultado, fortaleceu-se a ideia de que o Islã e o Ocidente são incompatíveis, um conceito que vem sendo usado por demagogos e fundamentalistas de outras religiões como evidência irrefutável de que estamos diante de um “choque de civilizações”. Aumentaram, então, as demonstrações de preconceito contra o Islã e os muçulmanos, que incluem a discriminação nos locais de trabalho, a restrição de liberdades civis de muçulmanos no Ocidente e até crimes motivados pelo ódio.

Por serem úteis na guerra contra Bin Laden e a Al Qaeda, muitos regimes autoritários do mundo islâmico ganharam uma sobrevida e viram ser justificadas suas ações de limitação dos direitos civis e de repressão violenta a opositores desarmados. Muitos desses governos usaram a existência do fundamentalismo islâmico como desculpa para revogar impunemente princípios caros ao mundo democrático. Opositores extremistas e moderados (vistos como lobos em pele de cordeiro) foram igualados sob o rótulo de “ameaças”. Isso é um erro. A teoria política derivada da lei islâmica, em especial sob os sunitas, valoriza a estabilidade ao mesmo tempo que abomina o caos e a anarquia. É total o contraste com a pregação e a ação da Al Qaeda de Osama bin Laden e de outros grupos extremistas. Esses seguem por uma trilha de morte, destruição e caos. Os terroristas retratam a si mesmos como os únicos verdadeiros crentes. Quem discorda deles vira inimigo: pessoas integrantes de regimes repressores sustentados por sociedades pagãs e sem fé. Os extremistas tentam impor sua versão ideológica da religião. Ao agirem assim, eles se tornam sequestradores da fé islâmica de centenas de milhões de pessoas pacíficas, roubando delas conceitos doutrinários como a jibad (luta) (veja o glossário na página 110), passando a usa-los para legitimar seus atos de terrorismo.

Com o argumento de que o Islã e os muçulmanos estão sob o cerco global de regimes não islâmicos aliados a governos ocidentais expansionistas e hostis, os extremistas decidiram que eles têm o direito de passar por cima de restrições expressas tradicionalmente na lei islâmica e de desprezar as leis internacionais de convivência. Para essa gente, assassinar muçulmanos que discordam deles é tão justificável quanto eliminar cristãos e judeus. A mesma lógica distorcida justifica, na concepção deles, os massacres de civis, os assassinatos de autoridades, a morte de turistas e os ataques a bomba contra igrejas e mesquitas. Ao se apossarem do Islã e distorcê-lo, Osama bin Laden e outros como ele sentiram-se com autoridade suficiente para emitir suas próprias farwas (decisões, decretos) (veja o glossário na página 110) e com elas dar ares de guerra santa a ações terroristas e ao assassinato de inocentes.

Pm mais que se digam identificados com os textos sagrados do Islã, Bin Laden e outros terroristas não são adequadamente muçulmanos. Não são devotos. Nada têm de ortodoxos. Para lançarem-se em suas guerras profanas, eles ignoraram ou violaram leis e doutrinas básicas da religião que dizem defender. Eles desrespeitaram os requisitos clássicos do Islã para uma jihad justa e não reconhecem limites além daqueles estabelecidos por eles próprios. Rejeitaram os regulamentos da lei islâmica sobre os objetivos e meios da jihad: a violência só pode ser proporcional à agressão sofrida; o invasor deve ser repelido com o uso da menor força suficiente para isso; é vedado o ataque a não combatente; a jihad só pode ser declarada por um governante ou chefe de estado.

A maioria dos muçulmanos enxerga Bin Laden como o pior inimigo do Islã. Compartilha com os não muçulmanos a preocupação com a ameaça do extremismo religioso e o medo do terrorismo dirigido a suas famílias e sociedades. Grupos terroristas conseguem recrutar e vender sua mensagem a pequenos bolsões muçulmanos, mas fracassaram em inspirar um movimento de massa. A maioria dos muçulmanos rejeita a ideia de Islã propagandeada por Bin Laden e percebe seu fracasso e o de outros terroristas. Eles não ajudaram em nada na luta por mudanças políticas. Só contribuíram para que o ódio ao Islã se aprofundasse no Ocidente. Novos partidos anti-imigrantes e principalmente anti-islâmicos se saíram bem nas últimas eleições europeias. A tentativa de erguer um centro islâmico perto do Marco Zero em Nova York provocou um tsunami de discursos de ódio e atos de violência nos Estados Unidos. No Centro Islâmico Madera, em Central Valley, na Califórnia, vândalos estilhaçaram janelas de uma mesquita e deixaram cartazes dizendo “Acorde, América, o inimigo está aqui” e “Nenhum templo para o deus do terrorismo”. Pesquisas de opinião detectaram uma tendência real e persistente de os americanos enxergarem o Islã e os muçulmanos através das lentes do extremismo. O instituto Gallup mostrou em 2010 que 53% dos americanos veem o Islã de forma negativa. As revoltas na Tunísia, no Egito, na Líbia, no Barein e no Iêmen e a luta por reformas democráticas no Marrocos, na Argélia, na Jordânia, na Arábia Saudita e em Omã demonstraram mais uma vez que o terrorismo proposto por Bin Laden não funciona. Naqueles países, a oposição não violenta com base ampla foi a que mostrou efetiva força de mudança.

Entrevista DENIS LERRER ROSENFIELD

Uma das vozes mais potentes em defesa da liberdade individual, o filósofo diz que a intromissão do governo na vida privada é uma afronta aos brasileiros e uma ameaça à democracia


Poucos intelectuais brasileiros se dedicam com tanto afinco à defesa da liberdade individual quanto o filósofo gaúcho Denis Izrrer Rosentield. de 60 anos. Também se contam nos dedos os que conseguem reverberar suas ideias de forma tão contundente. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado pela Universidade de Paris, e autor de quinze livros, Rosenfield alcançou o grande público com suas colunas quinzenais nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, nas quais mantém feroz vigilância sobre os impulsos autoritários do governo. Nos últimos tempos, o filósofo direcionou sua verve ácida contra a interferência cada vez mais frequente do estado na vida pessoal dos cidadãos por meio de decisões de órgãos governamentais como a recente tentativa da Anvisa de proibir a venda de remédios para emagrecer. "Essas medidas arbitrárias mostram como o PT, apesar de estar amadurecendo como partido, ainda atrai esquizofrênicos com mentalidade retrógrada e perigosa para a sociedade" diz. De Porto Alegre, ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Nenhuma pessoa pode ser forçada a ser rica ou saudável contra a própria vontade. Se alguém decide fumar ou beber, isso é um problema dessa pessoa, não do estado Por que o senhor considera o excesso de atos regulatórios por parte do governo uma afronta ao cidadão e ao país?

Por duas razões. Primeiro, porque atos desse tipo maculam a essência do indivíduo. Considero uma agressão abster uma pessoa de seu livre-arbítrio, de sua capacidade de decisão, de sua individualidade, seja no que diz respeito ao uso de medicamentos, ao fumo ou ao consumo de comidas gordurosas. Essa decisão pertence à subjetividade, à alma de cada um. O filósofo inglês John Locke, no século XVII, já dizia que nenhuma pessoa pode ser forçada a ser rica ou saudável contra a sua vontade. Os homens devem ser entregues à própria consciência. Segundo, porque, ao tentar disciplinar a vida dos cidadãos, o governo começa a impor a sua noção de bem. Se alguém decide fumar ou beber, isso é um problema exclusivamente dessa pessoa, não é um problema do estado. Quando o estado se apodera do monopólio da virtude, inicia um flerte inadmissível com.o autoritarismo, danoso para qualquer sociedade .


"Há dezenas de resoluções da Anvisa do tipo faça isso, não faça aquilo. O órgão se autoconsagrou o grande tutor do brasileiro, aquele que sabe tudo e ao qual devemos obediência cega"


Muitos brasileiros aprovam medidas governamentais como a restrição ao fumo em locais fechados. A que se deve isso?

Acredito que os brasileiros têm muito pouca consciência sobre o que está acontecendo. Vistos de forma isolada, os atos regulatórios parecem inofensivos. Quem não fuma agradece a resolução que proíbe totalmente o cigarro em locais fechados, pois se livra da fumaça incomoda da mesa vizinha num restaurante. O problema é que, por trás dessa onda politicamente correta, há uma intenção velada de impor um padrão de conduta às pessoas. No ano passado houve dezenas de resoluções da Anvisa com o espírito de faça isso, não faça aquilo. Esse órgão se tornou o caso exemplar nesse aspecto. Ele se autoconsagrou grande tutor do cidadão brasileiro, aquele que sabe tudo e a quem devemos obediência cega. A intromissão da Anvisa na vida dos brasileiros é coisa de esquizofrênicos.

O que o senhor quer dizer com esquizofrênicos?

Boa parte da administração petista está impregnada de ranço ideológico ultrapassado, mas nenhum órgão do governo se iguala àAnvisa. Posso dizer com quase absoluta certeza que seus funcionários vão muito além do que o partido e o governo querem no que diz respeito às liberdades individuais. Na verdade, a Anvisa é o exemplo máximo do que o PT atrai de pior: gente com mentalidade do século passado. O PT caminha para se firmar como um partido social-democrata. Aos poucos está abandonando as ideias de revolução. Arrisco dizer que o PT está amadurecendo, mas tem vergonha de virar gente grande e abandonar os rompantes adolescentes. Isso causa a esquizofrenia que há no partido e nos órgãos estatais.

A intromissão do estado se dá apenas na área da saúde?

De jeito nenhum. Nos últimos anos, o governo se intrometeu em quase tudo. Recentemente, quis policiar um pretenso consumismo infantil e chegou ao cúmulo de discutir a tal Lei da Palmada. que pretende disciplinar a relação entre pais e filhos. Trata-se de uma intromissão descarada na vida familiar É o que chamo de sequestro das liberdades. Quem ainda não condena o governo por todo esse excesso de regulamentações, decretos, normas e leis que dizem respeito à vida de cada um não percebeu que sua liberdade de escolha está ameaçada.

Como se identifica essa ameaça?

Um critério para medir o grau de liberdade de uma sociedade é o exercício da liberdade de escolha pelos seus cidadãos. Nas sociedades desenvolvidas economicamente e onde existe justiça social, há o que chamo de consolidação das liberdades: liberdade de ir e vir, de pensamento e expressão, de imprensa e religiosa. Essas sociedades foram erguidas e mantidas a partir dos direitos de propriedade, dos direitos individuais e do livre-arbítrio. Todas as sociedades que desrespeitaram as liberdades resultaram nas democracias totalitárias, nas quais as leis aprovadas pelos representantes do povo pesam menos do que as decisões do Executivo. Na Venezuela, Hugo Chávez só legisla por decretos. Ali é uma democracia? A única liberdade que o povo tem é o direito ao voto. Mas só o voto não garante uma democracia.

Ainda estamos longe de virar uma, Venezuela...

Sim, o Brasil ainda está longe de ser uma Venezuela ou uma Bolívia. Há muita arbitrariedade por trás desse manto de moralização, mas o Legislativo e o Judiciário continuam a exercer suas funções. E preciso, no entanto, perceber que o processo regulatório em curso no Brasil já atinge vários setores da administração. Na imensa maioria dos casos, a legislaç80 que cerceia a liberdade de escolha do cidadão não passa pelo legislador eleito pelo povo. Nossos deputados e senadores estão sendo, aos poucos, usurpados de sua função de legislar. Eles estão se tornando servos de uma legislação administrativa, criada por órgãos estatais e não via projeto de lei. Também 0 preciso prestar atenção às afrontas cada vez mais recorrentes à liberdade de imprensa. A Anvisa tentou proibir a publicidade de cigarro, de bebida e de alimentos. Parece inofensivo, mas sem publicidade a imprensa se torna dependente do governo, o que compromete a liberdade de expressão. Isso sem falar no direito de propriedade, cada vez mais fragilizado.

O senhor está se referindo às desapropriações relacionadas com os sem-terra?

A esse e a outros disparates. No Brasil existe uma violação sistemática ao direito de propriedade. O direito de propriedade é o fundamento de toda sociedade civilizada, a garantia dos contatos sociais e a base da liberdade individual. Mas no Brasil o direito à propriedade é relativizado pela função social, pela função indígena, pela função racial e pela função ambiental da terra. O que acontece é um descalabro. Um exemplo trágico é a proliferação dos tais quilombolas pelo país. Isso não tem mais limite. Por um decreto de 2003, basta uma pessoa se declarar negra e se autoatribuir uma terra para conseguir a desapropriação da área. Até uma escola de samba pode se denominar quilombola e a ganhar o direito sobre uma propriedade, não importa se ela está localizada no interior da Bahia ou na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. A palavra quilombo ganhou outro significado com o único intuito de tirar a terra de seu dono para atender aos interesses de movimentos sociais esquerdistas. Houve o uso político da palavra.


"A tentativa de proibir a publicidade de cigarro, de bebida e de alimentos parece inofensiva, mas sem publicidade a imprensa se toma dependente do governo, o que compromete a liberdade de expressão"


Existe um ponto de equilíbrio, uma medida para delimitar a intervenção do estado na vida do cidadão?

Imagine que estamos dentro de um jogo. Cabe ao governo respeitar as regras, sem inventar novas condições à medida que o jogo avança. O estado deve preservar as regras e deixar as pessoas jogarem. Deve agir como um juiz. Não cabe ao estado tirar de uns para dar aos outros, por exemplo. A desigualdade faz parte do processo de organização social. O estado deve dar as mesmas condições para todos sobressaírem e, assim, conquistarem o seu espaço.

Qual o limite de estado no que diz respeito às leis?

O estado deve zelar para que as leis obedeçam a critérios de universalidade e não desrespeitem os direitos individuais. Leis justas são as que não estão restritas a costumes locais nem privilegiam determinados grupos. Há uma diferença entre eticidade e moralidade que deve ser levada em conta em toda essa discussão. A moralidade é do domínio da liberdade subjetiva, da consciência do indivíduo. Do ponto de vista moral, é quase impossível duas pessoas dividirem a mesma opinião sobre o que consideram "bem" ou "mal" para si mesmas. O fator ótico é a liberdade dos indivíduos concretizada por meio das instituições. A legislação deve se embasar no conceito de ético, no que é universalmente aceito como bem ou mal.

Em seu último livro, o senhor escreve que a crise econômica dos últimos anos teve repercussões ideológicas. Quais são elas?

Alguns setores atrasados da sociedade brasileira interpretaram a crise econômica como o fim do capitalismo. Trata-se de uma conclusão equivocada. As crises do capitalismo fazem parte de seu processo de renovação, são periódicas. Essa interpretação abriu espaço para vozes discordantes de uma economia de mercado e do direito de propriedade. Chegamos ao cúmulo de escutar críticas que propunham uma separação entre capitalismo e democracia. Para quem não sabe, a democracia moderna é um regime político que envolve relações sociais e econômicas baseadas no direito de propriedade. A liberdade de escolha não se resume ao processo de eleger um presidente. Também se refere à escolha de bens materiais, de consumo, de compra e venda de um imóvel, incluindo o livre exercício de pensamento. Não se podem dissociar o capitalismo, a propriedade, a livre escolha e o estado democrático. É impossível achar na história uma sociedade livre que tenha sobrevivido à abolição do direito de propriedade. O direito de propriedade 6 um poderoso estímulo à coesão social e não pode ser relativizado.

Como o direito de propriedade estimula a coesão social?

Se mais de 60% de uma população é dona de seus imóveis, essas pessoas podem se unir com força contra qualquer ameaça à propriedade. Se menos de 30% forem proprietários, abre-se espaço para a aplicação de ideologias que comprometem esse direito.

O excesso regulatório no Brasil é resultante de um processo histórico e cultural ou está relacionado ao governo petista?

O lado cultural é muito forte. No Brasil, sempre houve uma pressão da população para que o governo equacione problemas que não são estatais. Muitas medidas do governo Lula já eram adotadas pelo seu antecessor. O que Lula fez foi radicalizar processos já existentes no governo de Fernando Henrique Cardoso, que também era simpático aos movimentos sociais. Em seu segundo mandato, Lula se excedeu. O presidente deu muito poder a esses movimentos e limitou cada vez mais os direitos de propriedade. Foi exorbitante. Lula abriu a porteira. O mesmo aconteceu com relação à imprensa. No governo anterior, as tentativas de cercear a liberdade de expressão ultrapassaram o limite do aceitável.

O senhor diz que a situação é preocupante, mas dificilmente o Brasil vai se tornar uma Venezuela. Por quê?

No Brasil, o processo notório de enfraquecimento do direito de propriedade por meio da desapropriação de terras está sendo combatido por uma reação da sociedade contra os movimentos de orientação esquerdista, como o MST e a Comissão Pastoral da Terra. A sociedade brasileira é muito complexa, e parte dela, uma minoria, ainda, está se insurgindo contra isso. O Judiciário tem sido acionado e os meios de comunicação vem se manifestando com veemência contra muitas arbitrariedades. Esse é o primeiro motivo. O segundo diz respeito ao estágio de desenvolvimento do país.

O senhor foi de esquerda e trabalhou para o PT. Como se define hoje politicamente?

Sou liberal, mas aceito práticas da social-democracia em situações de miséria extrema. Tanto é que sou a favor do programa Bolsa Família, desde que se crie igualdade de oportunidades para que todos os brasileiros possam prover seu próprio sustento. Não vejo problema nenhum em ser chamado de direitista. Se direita no Brasil significa a defesa da liberdade pessoal, do estado e do direito de propriedade, sou de direita, sim, com muito orgulho.

AMOR E TRÁFICO - Larissa Leite

TRÁFICO NAS CADEIAS É ABASTECIDO POR MULHERES

Cresce o número de mulheres que abastecem o mercado de drogas nas cadeias brasileiras. Os entorpecentes entram nas penitenciárias graças a um golpe cada vez mais frequente: as esposas ou namoradas de presos se aproveitam das visitas para transportar as substâncias ilegais. Jani Fernandes passou cinco anos levando maconha para o marido na Papuda. Na Colmeia, no DF, há 136 casos. “Elas se deixam levar por um amor doentio”, explica a diretora da penitenciária, Deuselita Martins.


Aumenta o número de companheiras e familiares de presidiários que acabam detidas por levar entorpecentes durante as visitas

O arrependimento já veio há algum tempo, em forma de tristeza, mágoa, revolta e saudade dos quatro filhos que deixou do lado de fora da Penitenciária Feminina do Distrito Federal, conhecida como Colmeia. Entretanto, durante cinco anos, Jani Fernandes de Jesus, 28, “achava muito fácil entrar com a droga” no Complexo Penitenciário da Papuda, onde levava entorpecentes para o marido, detido por assalto à mão armada. A sensação de impunidade, aliada à oportunidade do lucro e ao que ela defendia ser “fidelidade amorosa”, alimentou o tráfico. Mas o resultado foi desastroso. Após ser denunciada pela própria sogra, em 2009, Jani foi presa e condenada a seis anos de cadeia.

Casos como o de Jani, segundo as autoridades, são recorrentes. Apenas na Colmeia, existem outras 136 mulheres detidas sob a mesma acusação — 27% das atuais 524 internas foram autuadas por levarem drogas aos companheiros ou parentes presos em outras instituições. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, esse percentual está em ascensão. Em maio de 2009, a proporção era de 22%. Só no mês passado, segundo a Subsecretaria do Sistema Penitenciário, 63% das mulheres presas no DF foram autuadas por tráfico.

No restante do país, o retrato é parecido. O último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça (MJ), aponta que 42% das 34.807 mulheres detidas em dezembro de 2010 respondiam por tráfico de drogas. De acordo com o MJ, a proporção de presas no país por envolvimento na venda de entorpecentes é maior do que o percerntual de homens (19%). Os números mostram que a tendência é que a quantidade de mulheres detidas por esse tipo de crime cresça cada vez mais.

Apesar do ato da revista, inspeção obrigatória para o ingresso e a saída de estabelecimentos penais, parte dos flagrantes ocorre não apenas por evidências materiais, mas pelo nervosismo ou até a “inexperiência” das visitantes, relata Jani. “Só fui presa porque minha própria sogra me denunciou. Mas a maioria das mulheres que levam drogas sabe do risco que correm. Mesmo que não tenham conhecimento no início, elas vão aprendendo na convivência com o companheiro”, afirma.

Jani levava maconha para o marido “por necessidade”, e a droga acabava sendo vendida para outros internos. Com o dinheiro que recebia nas visitas, ela pagava o aluguel, as contas e as compras de casa. “Ele estava preso e eu estava sozinha com os filhos. Como a droga é valorizada dentro da cadeia, o tráfico representava um jeito de ganhar dinheiro”, conta.

Segundo a delegada Deuselita Martins, diretora da Colmeia, muitas mulheres se envolvem com a venda de entorpecentes e especialmente no tráfico em área de segurança a partir do relacionamento com um parceiro já vinculado ao crime. “Elas se deixam levar por um amor doentio e correm o risco por eles. Agora, estão mais espertas, mas muitas que vêm para a penitenciária em função deles continuam se relacionando, mesmo que eles estejam presos também”, diz.

Quando a mulher é presa, mas o companheiro está solto, elas costumam ser abandonadas. “Na penitenciária feminina, a grande maioria das visitas são de mulheres. Os homens arranjam outras parceiras e acabam deixando as que perderam a liberdade”, conta Deuselita. O marido de Jani Fernandes, por exemplo, que já foi solto, nunca a visitou na Colmeia.

Obrigação
Antes de ser presa, Jani trabalhava como cabeleireira — atividade que também exerce na Colmeia. Ela conta que chegou a conseguir sustentar a família legalmente, mas se via obrigada a continuar traficando. “Meu marido virou um viciado. Não comia sem a droga e teve dois princípios de convulsão no presídio. Tinha medo que ele morresse. Eu era pressionada”, desabafa. “Não me vejo como criminosa. Na verdade, acho que não sou nem traficante. Sou uma mula, fui usada.”

Outro fator que agrava o problema ocorre sob a vigilância das próprias autoridades: o aliciamento de mulas. Uma visitante que não quis se identificar, abordada pela reportagem do Correio em dia de visita na Papuda, revela que a prática é recorrente: “Já me ofereceram R$ 1 mil para eu entrar com drogas dentro do presídio. As traficantes de verdade não entram, pagam as mulas para correrem o risco por elas”. Segundo a visitante, “é mais fácil encontrar entorpecentes dentro do presídio do que fora”.

Apoio ao crime
O sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), lembra que, historicamente, as mulheres são usadas para fazer o transporte de drogas. “Em geral, a mulher no tráfico tem um papel de complementação, de apoio. A prisão de mulheres no tráfico internacional, por exemplo, é comum porque elas são menos suspeitas e mais recorridas.” De acordo com o sociólogo, as polícias vêm fazendo um esforço de processar as mulheres dos traficantes, ainda que por outros crimes que estejam vinculados à prática. Em relação ao tráfico de substâncias e objetos ilícitos para dentro das penitenciárias, Cano lembra que, mais nociva do que a entrada das drogas é o ingresso de armas e de celulares.

Evitar Fukushima - André Lazaroni

Estupefatos, assistimos há pouco tempo a cenas de destruição que parecem copiadas de alguns desses filmes famosos pela qualidade dos efeitos especiais. Mas aquele vagalhão de consistência quase pastosa, escuro, que trazia em seu bojo prédios, embarcações, escombros, que cobria tudo, que fazia casas de tijolos e cimento ruírem como se de brinquedo fossem, existiu. Era vida real o que vimos pela televisão. Vida real que se tornou ainda mais implausível quando a usina nuclear de Fukushima não resistiu à intensidade do terremoto eda tsunami. Um a um, seus reatores foram afetados, em uma espécie de bola de neve ladeira abaixo. Ladeira que, até agora, ainda não chegou ao final. A radiação vazou, uma área extensa teve que ser evacuada, populações fogem em pânico. O fantasma nuclear volta a assombrar ahumanidade. E as informações, passados dois meses, continuam escassas, ralas, inconvincentes mesmo.
Faço aqui uma analogia entre o que acontece desde março no civilizadíssimo Japão coma situação do Estado do Rio de Janeiro, o único do Brasil onde há usinas nucleares, duas de uma vez só—e no caminho, ao que parece sem volta, de ter uma terceira nos próximos anos. Nossas usinas estão à beira-mar , como a japonesa. Dirão os especialistas: “Aqui não temos nem terremotos nem tsunamis nem maremotos.” Éverdade, nunca registramos em terras brasileiras cataclismos dessa ordemde grandeza, com essa força destrutiva impressionante. Mas não podemos nos furtar à indagação premente: “Até quando?” Pois, com as alterações climáticas em escala mundial, está tudo mudando, como cantou ainda nos anos 60 do século passado o visionário americano Bob Dylan.
Naquele mesmo mês de março foi noticiada com um certo destaque a formação de um furacão no Oceano Atlântico, bem perto da costa fluminense. Nada de grave aconteceu dessa vez, e esperamos que jamais venha a acontecer . A prevenção, no entanto, é indispensável. Nossas usinas ficamentre os municípios de Angra dos Reis e Paraty, área historicamente suscetível a deslizamentos de encostas, vide o que aconteceu a poucos quilômetros dali na passagem de ano de 2009 para 2010. Morreram mais de 50 pessoas nos desmoronamentos de parte das montanhas que caracterizam aquele acidentado relevo. Para não falarmos na ainda recente tragédia emnossa Região Serrana, a maior ocorrida no Brasil em todos os tempos. A catástrofe japonesa obriganos, brasileiros de responsabilidade, a refletir acerca do que podemos fazer para evitar que algo similar ao episódio japonês venha a acontecer por aqui. O ensinamento básico de tudo o que está ocorrendo do outro lado do planeta é: planejamento minucioso, rigidez no cumpri-mento do que for traçado por quem entende do assunto, treinamento exaustivo do corpo funcional, dos agentes públicos eda população do entorno, delimitação de rotas de escape, recuperação emanutenção de estradas, atenção absoluta às encostas. O ensinamento, digamos estrutural, é outro: beira demar não é lugar de usina nuclear . Em um litoral como o de nossa Costa Verde, repleto de praias, enseadas, ilhas —onde há até mesmo um fiorde tropical, o Saco de Mamanguá, formação única no Brasil —, a usina assemelha-se a um rosto de miss rasgado por medonha cicatriz.

Prazo de validade - TONICO PEREIRA

O ensino no Brasil, há muito tempo, não sobrevive em excelência, apesar da boa vontade de alguns (Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro). A má vontade de muitos, que não gerenciam bem a matéria, às vezes por falta de recursos, outras por falta de vontade política ou por desonestidade mesmo, impede a excelência de sobreviver na nossa rede de ensino. A partir dessa constatação, resumida e verdadeira, resolvi sonhar com um ensino autossustentável financeiramente e que se fizesse interessante o suficiente para a vontade política torná-lo prioridade e includente de todas as classes sociais, sem lançar mão de um raciocínio cotista e simplista onde habita o berço/raiz da discriminação. Ao combater uma discriminação não devemos usar outra como linha de pensamento contrário, mas sim lançar mão de horizontes mais largos, como um verdadeiro Mandela, líder sim de um povo e não de uma raça — se é que existem raças onde sobrevive o homem.

Vou tentar agora materializar meu sonho com o meu parco conhecimento matemático, mas tendo a imaginação que Deus me deu como aliada. Salve a imaginação!

Seria mais ou menos assim: todos os formados em universidades federais, estaduais e municipais passariam a contribuir através de um carnê, de valor insignificante e apenas simbólico para quem contribui, mas de altíssima significância para o ensino brasileiro, e que não excederia a 1% de um salário mínimo por mês durante todo o tempo de vida profissional útil do exuniversitário (desde que empregado). Recursos estes que deveriam ser gerenciados por uma fundação de abrangência nacional e revertidos sistematicamente em caráter exclusivo ao ensino fundamental, médio e superior. Transformando em cidadãos a nossa juventude e funcionando como contrapartida automática e justa sem lançar mão de recursos discriminatórios (cotas) que nos levam — aí sim — ao conceito e aceitação de cidadãos de segunda classe, que nós brasileiros temos de recusar peremptoriamente, pois o que queremos é sonhar e realizar a integração maior do nosso povo, não só no carnaval e no futebol, mas, principalmente, nas salas de aula, essência maior do cidadão.

Eu reconheço no ser humano a capacidade de ser fundamentalmente e prioritariamente uno e só por isso me encorajo a ponto de externar a minha posição sincera e sem subterfúgios, mas é claro que existem urgências que necessitam ser sanadas imediatamente. Que não poderiam esperar o tempo necessário para implantação desta proposta, portanto, até lá, poderíamos conviver com o sistema de cotas, desde que tenha um prazo de validade de alguns anos proposto por alguém de direito e conhecimento.

O resto é anomalia e ignorância. E, mais uma vez, se me permitem brancos, negros, índios, imigrantes em geral, pobres e ricos: viva Mandela!

TONICO PEREIRA é ator

No limite da sorte - Raul Velloso

O relevante choque externo que vem bafejando o Brasil desde o início da última década é responsável por vários efeitos favoráveis sobre nossa economia, a menos da breve interrupção associada à crise do subprime americano. Para começar, o comum era se ter um choque ruim, não um bom. Outro ponto é que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Ou seja, alguns sairiam perdendo.


O Brasil estava preparado para responder numa certa medida, mas o grande negócio foi a forte subida da demanda externa, notadamente da China, pelas commodities que produzimos com larga vantagem. Tanto assim que o valor de nossas exportações explodiu nos últimos anos, puxadas basicamente pela subida de preços.

Enquanto o preço médio das importações subia 48% entre janeiro de 2006 e agosto de 2008, o das exportações subia bem mais: 69%. O ganho dos preços tem sido ainda maior após a crise. Os de exportação já estão acima do pico prévio no deslanche da crise.

Subindo os preços, aumentaram fortemente os lucros e o valor das ações das empresas na área de commodities de exportação. Aumenta, assim, a renda e a riqueza de agentes econômicos localizados no país, estimulando consumo e investimento. Em seguida, atrai-se mais investimento estrangeiro direcionado principalmente para o setor de commodities, o que reforça a capacidade futura de produzir sem pressões adicionais sobre preços e as contas externas. Maior ingresso de dólares tem levado ao aumento das reservas internacionais (a ponto de o governo brasileiro ter virado credor em relação ao setor externo), e, portanto, à redução do Risco-Brasil.

Outro efeito relevante foi o aumento das receitas públicas, mesmo com o fim da CPMF, não apenas pelo maior crescimento da economia, como pelo surgimento de novas bases de incidência de impostos. Num primeiro momento, isso permitiu maiores gastos sem pressões inflacionárias e redução da razão dívida pública/PIB. Posteriormente, passaram a ocorrer excessos na área de gastos, pois, na crise, as receitas caíram significativamente, e o governo, pelo menos até o final do ano passado, vinha mantendo a mesma política expansionista do auge da crise.

Paralelamente, o menor crescimento relativo dos preços das importações induziu forte crescimento destas, ampliando a oferta interna de bens de consumo e de investimento, colaborando no combate à inflação e na ampliação da capacidade de produção da economia.

Por todos esses efeitos, e vencida a fase aguda da crise, a demanda agregada tem crescido muito expressivamente, a ponto de o PIB "teimar"em crescer perto do limite de rompimento da meta inflacionária. Mesmo aumentando o peso dos investimentos nos gastos, a pressão sobre a demanda tende, no curto prazo, a ser maior do que os ganhos do lado da oferta de bens e serviços. As pressões inflacionárias ocorrem principalmente no setor de serviços, sem concorrentes externos, pois nos demais existe forte competição do exterior, e mesmo na área de commodities a apreciação cambial amortece os choques externos de preços.

Nesse contexto, a apreciação real (isto é, descontada a inflação) da taxa de câmbio e a subida da taxa de juros Selic se tornam inevitáveis. Na falta de ajuste fiscal (que poderia reduzir as fortes pressões inflacionárias), ao final, quer se queira ou não, a taxa de juros terá de subir para trazer a inflação de volta à meta, e isso atrai mais capitais de fora, agravando os desequilíbrios. Enquanto a demanda externa continuar como está, e permanecermos minimamente organizados, a apreciação cambial terá vindo para ficar. É o reflexo natural de um grande ganho que o Brasil teve, e um desafio para nos reestruturarmos internamente. Nisso, o papel do governo não deve ser pequeno. Reduzamos os gastos ineficientes, reformemos o sistema tributário em busca de maior competitividade, e reduzamos o Custo-Brasil em geral, para minimizar os custos para os setores perdedores.


Mesmo tendo anunciado um corte orçamentário abaixo do necessário, o governo vem fazendo um genuíno esforço de ajuste fiscal "na boca do caixa" nestes primeiros meses. No primeiro trimestre, os dois itens de maior peso no gasto federal (previdência e pessoal) cresceram a taxas reais bem abaixo de toda a fase Lula. Só que sem ter por trás qualquer reforma estrutural para sustentação do ajuste, e com a vantagem de o salário mínimo ter subido apenas pela inflação (enquanto no ano que vem terá forte aumento real, pela regra em vigor). No caso da previdência, por exemplo, houve claro represamento de gastos com "sentenças judiciais", gasto esse que tem crescido sistematicamente desde muito, e alcança valores anuais um pouco acima de R$7 bilhões. No primeiro trimestre, quando esse tipo de despesa se concentra, o gasto foi de R$4 bilhões em 2010. Já neste ano, foi de apenas R$700 milhões.


Uma reflexão, baseada nas avaliações acima, indica que é arriscado manter-se deitado no berço esplêndido do cenário favorável. A sorte que tem nos ajudado até aqui já anda no limite e a qualquer hora pode mudar.

PAULO GUEDES - O senso de um dever cumprido

Tenho enorme simpatia por Obama. Uma belíssima campanha presidencial, que culminou em uma celebração quase universal da democracia. Mas meu sentimento carregava também uma boa dose de compaixão por sua figura humana, pois eu sempre soube de suas poucas chances de sobreviver politicamente ao abismo em que mergulharia a economia americana durante seu mandato.

Esperança e mudança? Sim, podemos? Não no front econômico interno. Como promover mudanças se Obama foi imediatamente capturado pelos mesmos financistas e autoridades do Federal Reserve que ampliam as dimensões dessa crise há uma década? E como ter esperança quando expectativas de uma inflação ascendente ameaçam derrubar o poder de compra dos salários e permanece extraordinariamente elevada a taxa de desemprego? A verdade é que o desempenho da economia americana era praticamente uma condenação a Obama, tornando bastante improvável sua reeleição em 2012.

E tudo parecia ir também de mal a pior no front político externo. As perspectivas de desordem política e distúrbios sociais do Norte da África ao Oriente Médio são um desdobramento inevitável da explosão dos preços da comida e dos combustíveis. As novas tecnologias e a mobilização popular derrubam ditadores em série. Kadafi está em queda livre na Líbia, enquanto Assad reprime as manifestações populares na Síria. Mas aqui nem tudo está perdido. Ante a ameaça de ascensão política do fundamentalismo islâmico, há uma oportunidade de avanço do mundo árabe rumo ao regime democrático.

São tempos revolucionários, que vieram para ficar. E a liderança de Obama em assuntos internacionais será continuamente testada. Durante recente visita ao Brasil, autorizou a intervenção militar na Líbia para impedir uma carnificina anunciada. E agora comandou pessoalmente os passos finais da caçada por Bin Laden. Age com determinação, como um comandante em chefe das Forças Armadas em mais um capítulo de uma guerra aberta e declarada contra o terrorismo.

A popularidade de Obama deu um salto de 10% nas pesquisas de opinião americanas. A guerra ao terrorismo reelegeu Bush, como promete agora reeleger Obama. A economia sempre jogou um papel importante nos resultados eleitorais. Mas, quando as condições materiais não ajudam, é sempre possível recorrer a emoções como o medo, a insegurança, o patriotismo e a sede de justiça. Com o senso de um dever cumprido.

Direto e secreto - Francisco Dornelles

Considero o sistema de eleição proporcional para deputado o grande responsável pela desorganização do sistema político do país.

O sistema proporcional leva o eleitor a votar em um candidato, vê-lo derrotado e, com o voto a ele dado, eleger outro. Permite que candidato sem voto seja eleito e que candidato com grande votação seja derrotado.

O sistema proporcional encarece enormemente a eleição, pois cada partido é obrigado a apresentar um grande número de candidatos, sendo a maioria deles sem possibilidade de sucesso, mas apenas para somar legenda. Essa situação encarece as despesas do partido com os programas de televisão, rádio, papel, gráfica e transporte, sem falar em outros custos administrativos.

Defendo a adoção do sistema majoritário para as eleições de deputados.

Tenho preferência pelo Sistema Distrital Puro. Cada estado seria dividido em distritos e cada um elegeria o seu representante. Considero, entretanto, totalmente impossível, na prática, a divisão em distritos. Os conflitos regionais tornam impossível o entendimento sobre os critérios a serem adotados para essa divisão.

Na impossibilidade da adoção do distrital puro, defendo a adoção de um sistema majoritário chamado Distritão. Cada estado seria considerado um distrito e os candidatos com maior votação seriam eleitos deputados.

No Distritão é eleito quem tem voto. Muitos dos candidatos sem voto, que hoje participam das eleições com expectativa de serem eleitos com o voto de outros, nem seriam candidatos, pois sem o voto de legenda, os partidos políticos não teriam nenhum interesse nessas candidaturas. Essa situação iria reduzir, em aproximadamente 90%, o número de candidatos a deputado, o que, como disse anteriormente, reduziria enormemente o seu custo.

Não existe, no voto majoritário chamado Distritão, a mais remota possibilidade de ser eleito o sem voto e ser derrotado o bem votado.

Nas eleições para deputados seriam eleitos, pelo voto direto e secreto, os candidatos mais votados. No Rio de Janeiro, por exemplo, seriam eleitos os 46 candidatos a deputado mais votados.

Existem contra o voto majoritário duras objeções que a meu ver não procedem.

A primeira delas é a de que no Distritão aumenta a possibilidade de eleição de candidatos com maior poder econômico.

O "endinheirado" pode ser eleito pelo sistema proporcional vigente e o voto por ele recebido pode eleger ele e outros candidatos de sua legenda. O "endinheirado" pode comprar um lugar na lista proporcional fechada conseguindo até mesmo uma boa colocação na lista. No voto majoritário, chamado Distritão, o "endinheirado" pode se eleger, mas os seus votos não elegem outros.

A outra crítica de que o voto majoritário, chamado Distritão, enfraquece o partido não prevalece também. No voto proporcional, hoje vigente no Brasil, o eleitor vota sobretudo na pessoa, sabendo que ela pertence a um partido, e que, em decorrência do princípio da fidelidade partidária, não poderá mudar sua filiação. No Distritão nada muda na relação do candidato com o partido.

Resumindo, o voto proporcional para deputado leva à eleição de candidato sem voto, à derrota do candidato com voto, permite que o voto dado a um determinado candidato eleja outro, encarece enormemente o custo da eleição. No caso do voto proporcional com lista fechada, ele retira ainda do eleitor e transfere a prioridade para eleger os deputados às cúpulas partidárias.

O voto majoritário corrige essas distorções e se baseia em princípio simples do regime democrático: é eleito quem recebe o voto direto e secreto do eleitor, ou seja, é eleito quem tem voto. 


Francisco Dornelles é senador (PP-RJ)

Gente de Ipanema – I :: Joaquim Ferreira dos Santos

Não está acontecendo nada, é apenas Ipanema indo de um lado para o outro com seus anônimos e celebridades,e na frente da lanchonete Chaika, sempre por volta das 16h, aparece um sujeito de roupas discretas, ao estilo Richards, que se põe parado em meio ao fluxo e tem como tarefa tentar colocar na mão de quem passa o folheto milagroso de Mãe Valéria, a curandeira do bairro. O texto promete trazer o amor de volta em três dias, acabar com problemas financeiros, sexuais e também os relativos à queda de lavoura. Tudo em frases curtas, de uma eficiência comunicativa admirada por pelo menos um dos redatores da agência de publicidade no prédio do Fórum Ipanema. Ele chegou a fazer uma campanha de cosméticos inspirada nos folhetos, mas, mais por superstição do que por pruridos profissionais, mantém isso em segredo.
 
Ipanema é essa esquina da propaganda mítica dos poderes do novo xampu com o anúncio dos eternos poderes do extraordinário. Já foi uma garota no doce balanço a caminho o mar, agora tem tanta pressa na direção de uma das bocas do metrô da Praça General Osório que seus turistas e moradores, com os ouvidos trancados no iPod, passam batidos pelo empregado de Mãe Valéria. Dependendo do humor das pessoas para esticar a mão e pegar o folheto, o rapaz pode levar de uma a duas horas para descarregar seus 200 folhetos diários na imaginação de Ipanema. Algumas velhinhas, que logo em seguida vão entrar na Igreja de Nossa Senhora da Paz, pegam o folheto para abreviar a tarefa do rapaz e também não deixar que aquele culto de religião exótica se espalhe. Mecanicamente, sem ler, três passos depois, elas jogam a propaganda na lixeira abóbora da esquina com a Rua Joana Angélica. 
 
Ipanema já foi a passarela de Duda Cavalcanti e outras dezenas de capas da “Manchete”, hoje é o bairro em que as pessoas se viram como podem para levar a vida, e, na areia da praia, em frente à Rua Farme de Amoedo, bate ponto todo os dias, a partir das oito horas, o faz-tudo esportivo que atende pelo nome de Mangueira. Ele é negro bem escuro, em parte pela origem étnica e em outra pelo acúmulo de sol durante todos esses anos, mas é mais facilmente reconhecido porque delimita sua área com uma dezena de raquetes fincadas em círculo na areia, como se fosse uma instalação de artes plásticas. Mangueira aluga raquetes. Aluga também sua perícia na prática do frescobol e fica batendo bola, ao preço de R$ 10 por hora, com quem estiver sozinho e quiser se exercitar no esporte. Cada vez que o parceiro bate bem na bola, Mangueira, com a elegância e o estilo generoso de quem faz de escritório a mesma areia onde Leila Diniz inventou um novo jogo de vida para a mulher — nesses momentos Mangueira solta exclamações do tipo “Beleza!” ou “Boa, garoto!”. 
 
Ipanema é cheia de frases, milhares foram ditas nas reuniões aos sábados na casa aberta de Aníbal Machado, na Praça Nossa Senhora da Paz, outras tantas continuam sendo inventadas, e uma delas martela diariamente o crânio de Pelé, o funcionário que na Livraria da Travessa cuida do departamento de DVDs e CDs. Ele é o responsável pelo jazz tocando ao fundo na sobreloja, mas curte mesmo no íntimo a vontade de um dia escrever um livro para ser vendido nas prateleiras do primeiro andar. Pelé, que se assina Delson Poeta 86, espera apenas um intervalo de paz no espírito agitado das vendas para relaxar, colocar uma balada do John Coltrane no iPod e começar a escrever o livro de inspiração romântica baseadona própria vida, a busca nem sempre feliz da pessoa amada. O título, ele já tem pronto, seria “Alquimia da paixão”. A frase que o persegue há anos, sacada logo em seguida ao fim de uma relação de início muito feliz, é “Por um milésimo de um segundo, pensei que fosse amor”. Falta o resto, mas, enquanto isso não vem, ele troca informações com os escritores que entram na loja, vende para um o DVD de “Farrapo humano”, de Billy Wilder, para outro pergunta sobre o sentido do amor, e vai preparando num canto do cérebro,aos poucos, sem pressa, como na música lenta do Chet Baker que coloca na trilha da loja, as frases que faltam para encerrar sua “Alquimia”. Pelé parodia o Drummond de Andrade de “O amor chega tarde”. Ele garante que “O amor espera”. 
 
Ipanema é um comprido corredor de academias de ginástica, o novo laboratório de onde saem suas musas antes formatadas apenas pela generosidade de Deus, mas a mulher mais reconhecida nas ruas do bairro não chama a atenção por glúteos esculpidos como se fossem arrebóis sublimes. Ana Maria Carvalho é uma senhora que fica postada à curiosidade pública todos os dias na esquina das ruas Vinicius de Moraes com Barão da Torre. Ela caminha cinco metros para a esquerda, volta outros tantos para a direita, não mais que isso, o que lhe confere quase a discrição de uma estátua. Ana foi a cantora do “Sérgio Mendes e o Brasil 66”, um minuto antes de o grupo vender tanto quanto os Beatles. Hoje passa o tempo falando sobre o choque dos planetas, o seu nascimento em uma estrela da Via Láctea e a velocidade da luz, tudo transmitido para sabe-se lá quem, num celular imaginário que ela equilibra na orelha enquanto os ombros seguram sacolas de plástico e outros parangolés. Parece que foi droga, parece que foi um trauma familiar, Ipanema ainda não chegou a um parecer definitivo. Ana é conhecida como a “Mulher de branco”, porque só vestiu essa cor durante duas décadas, mas agora usa azul, e é dessa cor o edifício onde mora com seus fantasmas na Rua Alberto de Campos. Nos próximos meses, será lançado um documentário sobre sua vida, nada que as ruas de Ipanema não saibam, mas na última cena Ana relembra os tempos de artista e canta sua música favorita, “Hi-Lili, hi-lo”, aquela que diz “Eu levo a vida cantando”, e ainda “O mundo gira depressa”, e também “Por isso é que sempre contente estou”.