Hermano Vianna - Domínio público

 Um herdeiro decide melhor o futuro de uma obra do que a comunidade que ama essa obra?


Desde o primeiro dia de 2012, a obra de James Joyce “caiu” no domínio público europeu. Há controvérsia nos detalhes: não se sabe se escritos publicados postumamente também deixaram de ser propriedade de Stephen Joyce, seu único herdeiro. Isso é problema menor. O que importa mesmo é que não mais é necessário pedir autorização de ninguém se você quiser, por exemplo, produzir um filme baseado em “Ulisses”, tarefa até então quase impossível. Stephen Joyce chegou a proibir leituras públicas da obra de seu avô no centenário do Bloomsday em Dublin. A Biblioteca Nacional da Irlanda também teve que cancelar uma exposição de manuscritos. Era regime de terror autoral, instalado por um único herdeiro contra os milhões de admiradores daquele que provavelmente foi o maior escritor moderno, definidor de uma sensibilidade que — queiramos ou não — passou a ser a nossa.

Stephen Joyce justificava suas atitudes com vários argumentos. Um deles: se cada nova publicação dos livros não passasse por sua avaliação, muitas edições cheias de erros chegariam às livrarias. Ele tinha razão. Sem controle de qualidade, muito lixo pode ir para o comércio. Mas será que os consumidores são tão trouxas assim? A vitória do lixo é inevitável? As obras de Shakespeare são domínio público há séculos. É claro que há edições lamentáveis de “Hamlet”. Mas elas são dominantes? Um único herdeiro decide melhor o futuro de uma obra do que a grande comunidade de pessoas que ama essa obra?

A lei do direito autoral nasceu buscando equilíbrio entre os interesses legítimos dos autores e aqueles da sociedade que pode ser beneficiada pela obra desses autores (repito: essa obra sempre é criada a partir do acúmulo de experimentações artísticas feitas por toda a Humanidade). Quando um escritor é tão genial quanto James Joyce, seus escritos se misturam com nossas vidas, com as maneiras como vemos o mundo, de forma que passamos a não saber mais diferenciar o que é dele e o que é nosso. Eu não seria a pessoa que sou se não tivesse lido James Joyce. Meu mundo é o mundo de Joyce. Em outras palavras, nem um pouco exageradas: Joyce é meu também. E a culpa é do próprio Joyce: não é todo dia que surge um criador como ele no mundo. Fico pensando nos inúmeros filmes, peças, games etc. que poderiam já ter sido criados a partir de seus escritos, enriquecendo a cultura planetária.

Nada contra a pessoa de Stephen Joyce. Existe uma lei, que deve ser cumprida. Essa lei diz que os herdeiros podem decidir o que vai ser feito com as obras até (depende do país) 70 anos após a morte de seus autores. Mas podemos questionar se a lei está realmente cumprindo seus objetivos primeiros. A lei do direito autoral existe, e foi conquistada depois de muitas lutas democratizantes, para que autores possam produzir mais e melhor, aumentando em última instância a riqueza cultural da sociedade. O problema é que com aumento injustificável do prazo de proteção e com cada vez mais poderes para os detentores dos direitos (que muitas vezes não são apenas os autores, mas as empresas para as quais esses autores trabalham) o objetivo final da lei (o aumento da riqueza cultural geral) tem sido ignorado ou pervertido. Assim estamos sendo levados a uma situação na qual o próprio direito autoral está ameaçado, pois haverá cada vez menos possibilidade de criação, menos autores, e menos arte.

Que os próprios autores tenham temporário monopólio legal — e proteção social para garantir esse direito — de comercializar suas obras, isso foi uma inovação/experiência jurídica que já provou ter sido benéfica igualmente para esses autores e para suas culturas. (Porém, não aceito de maneira alguma o argumento que diz que sem incentivos econômicos as pessoas deixariam de criar. Durante a maior parte da História artistas produziram maravilhas sem leis de direito autoral. Obviamente muitos tiveram que se submeter à baixa vassalagem de mecenas poderosos e inescrupulosos. Mas as submissões recentes diante de gravadoras e estúdios de Hollywood não foram, em muitos casos conhecidos, menos aviltantes. Somos capazes de inventar soluções melhores para garantir interesses de todos).

Um dos aspectos legais que me parece difícil de compreender é a necessidade de estender esses direitos para 70 anos depois da morte dos autores. São cada vez mais raros herdeiros que entendam a importância social de sua herança, sem tratá-las apenas como produtos a serem explorados até o último centavo. Só sabem repetir o “não pode” ou o “custa tanto”, deixando advogados e contadores avaliarem os méritos culturais das propostas que recebem. Esse perrengue cultural todo não resulta em mais obras, já que os autores morreram. E tudo acaba contribuindo para um sentimento de antipatia diante de qualquer menção ao direito autoral, visto erroneamente como capricho egoísta por parcelas cada vez maiores da opinião pública. Assim os “detentores” minam a legitimidade de seus direitos.

Outro elemento que torna nossa situação atual ainda mais confusa é a proliferação de novas ferramentas tecnológicas (ou estratégias pós-arte-conceitual) que tornaram várias formas de remix (textos, imagens, sons) os procedimentos básicos de alguns dos movimentos mais criativos da cultura contemporânea, herdeiros que somos de mais de um século de ataque cerrado contra a noção mais tradicional de autor. Problema cabeludo para a próxima semana, depois do carnaval.
Boa folia para todos!

A idade da sabedoria - GILBERTO DE MELLO KUJAWSKI

 O desafio é estar de bem com a vida, mesmo quando a vida não vai bem


“Sou cartesiano, mas com pitadas de candomblé.” Nestes termos é que Fernando Henrique Cardoso se apresenta em seu livro estupendo “A soma e o resto”, acabado de sair (Civilização Brasileira, 2011), resultado de uma série de entrevistas com o diplomata Miguel Darcy de Oliveira.

Descartes é o racionalismo, ou seja, a crença de que o universo corresponde, ponto por ponto, rigorosamente, às idéias claras e distintas elaboradas pela razão. Tal como as idéias claras e distintas, a realidade cartesiana constitui-se em identidade (A=A). Hoje as idéias claras e distintas não existem mais nem na matemática, na qual se fala, por exemplo, no número irracional. O universo não consiste em identidade, algo eterno e imutável; consiste num fluxo de mudanças descontínuas, contraditórias, imprevisíveis, algo que o tranqüilo e sonolento olho cartesiano não podia perceber, e que somente o olho treinado no ritmo do candomblé descobre e vai atrás. Fernando Henrique tem a cabeça formada na Sorbonne, mas o olho e o ouvid educados no candomblé.

Em seu livro, totalmente “conversado”, sem pose de estadista nem intelectual, FHC realizou a proeza de fazer coincidir os latejos de seu cérebro com as palpitações do seu coração. Conta com o leitor e estabelece com ele uma comunidade de destino cujo denominador comum é o futuro do Brasil em dimensão global.

A impressão generalizada do brasileiro sobre o Brasil de hoje é negativa. Vê o país desorganizado, instituições em crise, representação política falha, etc. Pois o quadro descortinado por Fernando Henrique é totalmente outro: o que estamos vendo é uma nova sociedade em formação, “menos organizada e mais conectada”. O Brasil está mudando e para melhor.

O brasileiro vive hoje mais conectado do que nunca. A conectividade cria nova dinâmica social. Surgem oportunidades e ocupações inéditas enriquecendo como nunca antes o horizonte do futuro para a juventude: “novos modos de fazer, de trabalhar, de juntar competências”. As profissões do futuro estão
sendo inventadas hoje – diz FHC - pelas novas classes médias ascendentes, profissões que não se aprende em escolas ou universidades e sim no próprio trabalho, fazendo e aprendendo uns com outros.

A organização da sociedade em classes superpostas e separadas foi solapada pela interconectividade. As formas de associação mudaram. “Hoje o importante é compartilhar.”

O que move a sociedade – diz FHC – é a emergência do novo. E que é o novo? “A meu ver é o fato de que a despeito da existência de estruturas, de uma ordem estabelecida, as pessoas estão cada vez mais se conectando por sua própria iniciativa, independentemente das estruturas preestabelecidas. As pessoas vão para a internet, entram no Facebook e têm amigos. Não é preciso perguntar se estes amigos são pobres ou ricos, qual sua origem familiar, qual seu nível de escolaridade. Nada disso tem a importância que tinha antes.”

Neste mundo multipolar e pluricultural o poder se divide entre vários Estados nacionais e se difunde dos Estados para atores não estatais. Os pólos de poder são múltiplos neste mundo globalizado. Gera-se a instabilidade e a incerteza. E aqui FHC formula o tema e a missão de nosso tempo: “O desafio é constituir uma nova articulação entre o universal e o particular.” Porque a globalização econômica não levou a um mundo único, não acabou com os Estados nacionais e sua diversidade cultural. Será preciso equacionar valores universais (como os direitos humanos, o combate à droga e ao terrorismo) com as peculiaridades de cada povo. O poder tem que ser organizado em escala mundial, respeitados os direitos dos Estados, eis a questão. Sabedoria não é mero saber, conhecimento ou erudição. A sabedoria constitui o saber primordial, o sentido verdadeiro e originário do saber, que é saber a que se ater. Não deriva da ciência, nem do alto conhecimento.

Na lição de Ortega (que cunhou a expressão “saber a que se ater”), o homem se perde nas coisas porque se perde a si mesmo. E se perde porque não está às claras consigo. Já não coincide consigo mesmo e ignora qual é sua sincera e autêntica atitude perante as coisas, confundido pelas opiniões alheias, na maior parte anônimas (o que “se” diz, o que “se” faz, etc.). A partir do momento em que a pessoa recupera a transparência consigo mesma, já não se perde nas coisas. Adquire uma certeza radical sobre o mundo e aprende de vez para sempre a saber a que se ater, isto é, “como nos comportar com as coisas e o que esperar delas”. E nisto não vai ciência de espécie alguma, nem pragmatismo, nem metafísica. Vai algo mais importante e decisivo, que é o esforço para eu me transformar em quem sou. O sentido da vida está em sermos efetivamente aquele que somos virtualmente. Só então ganho transparência comigo mesmo, atinjo a plenitude do meu ser e alcanço a felicidade. Esta consiste em estar de bem com a vida, mesmo quando a vida não vai bem.

O livro de Fernando Henrique Cardoso, tem a sua cara, a cara de um homem irradiante de sabedoria e de felicidade, porque em total transparência consigo mesmo. Um sábio, alguém que sabe a que se ater, que aprendeu a se comportar com as coisas e o que esperar delas. E um homem feliz porque plenamente realizado na sua vocação superior de brasileiro.

Entrevista Nicolas Cage

Por um cinema mais crítico
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Justiça de São Paulo passou 2 meses sem papel higiênico

FLÁVIO FERREIRA
DE SÃO PAULO


Os banheiros de prédios da Justiça estadual de São Paulo ficaram sem papel higiênico no início deste ano.
No Fórum João Mendes, o principal da capital, o problema só foi resolvido ontem -e os funcionários afirmaram que a falta do material durou quase dois meses.
Sem o produto até anteontem, a solução encontrada pelo setor de limpeza foi a colocação de toalhas de papel nos locais reservados aos rolos de papel higiênico.

"Houve realmente problemas" com a empresa que fornecia o produto e "nova licitação foi providenciada", segundo a assessoria de imprensa do tribunal.

A informação sobre a falta do material chegou à Folha pelo "Folhaleaks", canal criado pelo jornal para receber informações e documentos.

A direção do fórum paulistano só conseguiu comprar o produto ao usar de forma "emergencial" recursos financeiros previstos para a aquisição de materiais.

As administrações de outros instalações do Judiciário adotaram a mesma solução, segundo a assessoria do TJ.

"Ao tomar conhecimento da falta de produtos em alguns de seus prédios, o tribunal sanou a situação com o redirecionamento de estoques de outras unidades", de acordo com a assessoria.


'Folhaleaks'
Canal recebe dados para investigação
O "Folhaleaks" é um canal na Folha.com (folhaleaks.folha.com.br) criado para receber informações que possam merecer uma investigação jornalística. Podem ser enviados tex­tos e arquivos. Não serão publicados dados que não tenham sido checados e confirmados pelos repórteres do jornal.

Quase música - NELSON MOTTA

Steve Jobs criou o iPod e revolucionou nossos hábitos de ouvir música, mas em casa só ouvia discos de vinil, contou seu amigo Neil Young, lenda viva do rock. Eles não se contentavam só com música e letra, canto e instrumentos - queriam que tudo isso soasse nos ouvidos com a potência, os timbres e a integridade da sua massa sonora original.

Como Tim Maia, queriam mais grave! Mais agudo! Mais eco! Mais retorno! Mais tudo! Porque nos fabulosos iPods, iPhones e iPads de Jobs o som que se ouve está comprimido em MP3 com apenas cerca de 10% dos sons que foram gravados. Para ouvi-lo mais próximo da gravação original, só em formatos como o wav, que contém muito mais dados, em arquivos muito mais pesados. Ou em vinil.

Mais do que uma discussão idiótica de audiófilos, de loucos por som, é um debate sobre pirataria, troca de arquivos, livre circulação de músicas na internet. Como a grande maioria dos consumidores de música se contenta em ouvir uma versão "popular" em MP3, isto também sugere novas ideias sobre o assunto. Neil Young (des)considera esses MP3 vagabundos que rolam na rede e nas bancas piratas como um novo rádio da era digital, uma difusão incontrolável, quase música; quem gosta de música de verdade compra um CD de boa qualidade sonora ou paga um download pesado de alta definição. Ou um vinil.

Mas como nada se compara ao impacto e sensação de ver e ouvir música ao vivo, de perto, em ambientes com boa acústica, a consequência direta da difusão maciça de (quase) música digital é uma espetacular valorização dos shows ao vivo, por ser uma experiência sensorial única e irrepetível, como o teatro.
No tempo do cassete, copiar músicas para um amigo era visto pelas gravadoras como divulgação de seus discos, por que agora fazê-lo por e-mail, ou num site de trocas, seria um crime? A irracionalidade e a ganância são atropeladas pela realidade tecnológica, o caminho sem volta faz uma curva ascendente. Nos Estados Unidos, pela primeira vez o volume de downloads pagos superou as perdas com a comercialização de CDs, o futuro finalmente chegou para a nova indústria da música gravada.

ARTE NO TAPUME - Jefferson da Fonseca Coutinho‏

Concerto acalenta a construção

Apresentação da Orquestra de Câmara Sesiminas emociona operários de um canteiro de obras no Bairro Sion. Capacetes e uniformes se misturam a partituras e instrumentos 

Jefferson da Fonseca Coutinho


Cerca de 50 trabalhadores tiveram ontem um encontro inusitado com 18 músicos eruditos (Juliana Flister/Esp. EM/D.A Press)
Cerca de 50 trabalhadores tiveram ontem um encontro inusitado com 18 músicos eruditos

Em pleno batente, operários da construção civil deixaram de lado as ferramentas para ouvir música clássica (Juliana Flister/Esp. EM/D.A Press)
Em pleno batente, operários da construção civil deixaram de lado as ferramentas para ouvir música clássica

Pausa nos martelos e nas ferragens para os sons dos violinos e violas da Orquestra de Câmara Sesiminas, em canteiro de obras do Bairro Sion, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Na tarde de ontem, cerca de 50 operários da construtora Artecon Engenharia pararam para ver e ouvir a execução de clássicos de Mozart, Bach, Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, sob a batuta do maestro Marco Antônio Drumond, de 58 anos. “Quem diz que o operário não gosta de Mozart, ou não conhece Mozart, ou não conhece o operário”, afirma o regente, há 25 anos facilitador e entusiasta da aproximação da música com a classe operária. Marcos Vinícius Francisco da Silva, de 31, ajuda na preparação do cômodo com colunas à mostra, em cimento grosso. Ele está animado e cheio de expectativas com a apresentação da orquestra. Não é para menos. Na construção civil há quatro anos, o almoxarife tem vida dupla. Nas horas vagas, longe dos insumos de peso, é também músico, estudioso de bombardino – instrumento de sopro. “Todos os colegas daqui estão muito ansiosos. O melhor dessa iniciativa é que a apresentação é um grande incentivo para despertar novos interesses no pessoal”, considera.

O movimento no futuro pilotis e salão de festas desperta a atenção. De um lado, 18 músicos ajeitam cadeiras, estantes, partituras e afinam instrumentos. Do outro, ressabiados, uma dúzia de trabalhadores uniformizados, com capacetes e roupagem em cor de concreto, observam tudo com absoluta discrição. O servente Adilson Rodrigues Braga, de 54, não desvia o olhar do contrabaixo. “O violão grandão é bonito, né!?”, diz, com voz pequena, presa pela timidez. “Ô moço, sou ruim pra falar. É que sou muito tímido. Nem sei como é que me casei, de tão tímido que sou”, sorri. O senhor gosta de música? “Nó! Gosto muito. Muito mesmo. Dos clássicos, então: Roberto Carlos, Wanderley Cardoso, Paulo Sérgio, Jerry Adriani. Tenho muitos CDs na minha casa”, revela, mais à vontade. Pouco a pouco as cadeiras alugadas para a ocasião são ocupadas. O fosso improvisado está pronto. Luiz Maurício Garcia, da Artecon, pontua breve discurso: “A música é para todos”. O empresário deixa a cena para o regente comandar o tango Corta-jaca, de Chiquinha Gonzaga, e emendar Mozart no silêncio atento da plateia.

O maestro Marco Antônio, longe da empáfia comum de outros sujeitos de sua posição, desempenha excelente papel de mestre de cerimônia. Durante breves intervalos, entre uma música e outra, conversa com o público como se estivesse na cozinha de casa. Explica o posicionamento dos naipes da orquestra, os instrumentos, faz graça e ressalta a importância do trabalho em grupo. “Trabalhamos em equipe. Aqui, ninguém é mais importante que o outro”, afirma. O espectador, trabalhador, se identifica com a lição do líder artista. O regente, cheio de gosto e fé no que orienta, continua: “Violino, viola e violoncelo são irmãos de tamanhos diferentes. E aquele grandão é o contrabaixo”, ensina. Adilson, o servente, amplia o olhar, satisfeito com a informação. À essa altura da apresentação, a maioria dos operários já tirou o chapéu. Com os capacetes no colo, divertem-se com a bela e divertida Plink, plank, plunk, de Leroy Anderson. Os 18 músicos deixam os arcos de lado para fazer as notas com o toque direto dos dedos nas cordas. Pontuam acordes com assobios e arrebatam o riso da plateia.


"O violão grandão é bonito, né!?", admirou o servente Adilson Rodrigues Braga, de 54 anos

AMOR DECLARADO Dos assobios da orquestra em diante, as palmas ganham mais calor e a classe operária relaxa. O maestro justifica o amor declarado de sua trupe à arte: “Vivemos nela e vivemos dela”. Com O xote das meninas, de Luiz Gonzaga, a terceira fila balança a cabeça, satisfeita, como por ensaio de tão sincronizada. O moço sorridente, sujo em pó, canta baixinho para não atrapalhar os instrumentos: “Mandacaru quando fulora na seca. É o siná que a chuva chega no sertão…”, percebe que está sendo fotografado e esconde o rosto simpático. “Vai lá, Marco!”, pede em coro o público quando o maestro oferece seu lugar de comando.

Marcos Vinícius, o Marco, se arrisca auxiliado pelo chefe da orquestra. Por minutos, faz a alegria dos companheiros com Carinhoso, de Pixinguinha. Gargalhadas. Fim de apresentação e tempo para o lanche preparado especialmente para a tarde erudita. Adilson, o servente, resume sentimento: “Nó! É muita alegria por dentro”. Na escada que dá na Rua Buenos Aires, José Luiz Da Silva Júnior, de 42, completa: “Tudo na música toca o coração da gente”.

Paloma Oliveto - Rumo ao desconhecido‏

Sonda Voyager 1 está perto de cruzar a fronteira que separa o Sistema Solar do restante do espaço e, assim, ampliar o conhecimento humano sobre o funcionamento do universo 
 

Paloma Oliveto



Brasília – Na tentativa de desvendar os segredos do universo, a conquista da Lua e as viagens a Marte já não bastam à curiosidade humana. Além das recentes descobertas da missão Interstellar Boundary Explorer (Ibex), que detectou matéria “alienígena” no início deste mês, a passagem de um objeto enviado da Terra pela última borda do Sistema Solar começa a se tornar realidade.
A façanha será alcançada pela sonda Voyager 1 em questão de meses ou poucos anos, de acordo com a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa). O equipamento já se encontra em uma região nunca alcançada antes, a 119 anos astronômicos do Sol, algo entre 11 bilhões e 18 bilhões de quilômetros de distância. Ao cruzar a última fronteira entre o sistema que abriga a Terra e o restante do espaço, passará a navegar por um ambiente desconhecido.
Mal haviam se passado oito anos desde a primeira viagem do homem à Lua, duas espaçonaves deixaram o Cabo Canaveral, na Flórida, para uma missão bem mais ousada: investigar, de perto, Júpiter e Saturno. Em 20 de agosto de 1977, partia a Voyager 2. Quinze dias depois, era seguida pela Voyager 1, que, devido a uma trajetória melhor, ultrapassou a primeira. À medida que as naves cumpriam com precisão seus objetivos, a Nasa decidiu delegar a elas uma tarefa ainda mais impressionante: descobrir o que há além da área de influência do Sol.
Supertelescópios como o Hubble já fizeram imagens de galáxias longínquas – algumas até mesmo do universo ainda recém-formado, mas esses equipamentos orbitam a Terra, e não viajam pelo espaço, como algumas pessoas podem pensar. O mesmo ocorre com o Ibex, pequeno satélite no formato de um pneu de ônibus, que captura, a distância, partículas “alienígenas” espalhadas pelo vento solar. O mais longe que a sonda chegará é um pouco abaixo da órbita de Plutão. As “trintonas” Voyager 1 e 2 continuam, portanto, sendo os únicos objetos construídos pelo homem que devem sair de fato do Sistema Solar.
Graças às duas naves, muito do universo próximo foi revelado. Foram elas que fotografaram Júpiter e Saturno com uma precisão impressionante, armazenaram dados sobre tempestades em outros planetas, detectaram diversos elementos químicos em satélites, estudaram os anéis de Urano, desvendaram a atmosfera extraterrestre, investigaram movimentos de rotação e translação e conseguiram até mesmo revelar a forma achatada do Sistema Solar. 
Um grande marco na história do programa ocorreu em dezembro, quando a Nasa anunciou que a Voyager 1 entrou em uma região da heliosfera entre o Sistema Solar e o espaço interestelar. O local, chamado por astrônomos de região de estagnação, foi apelidado de “purgatório cósmico” pela agência. Ali, há uma diminuição de concentração das partículas carregadas, lançadas pelos ventos solares. 
“Esse é um território completamente novo, já proposto teoricamente. Seria a camada final entre o Sistema Solar e o restante do espaço, mas apenas recentemente tivemos a constatação de que a região de estagnação existe”, afirma o professor de física aplicada da Universidade Johns Hopkins Rob Decker. O cientista, que analisa dados enviados pela sonda, diz que lá a velocidade do vento solar é menor e incomum. Por um motivo ainda desconhecido, obedece a trajetórias aparentemente aleatórias. “Ele pode, mesmo, dar a ‘marcha a ré’, em vez de ir em frente”, afirma o pesquisador. 

Elétrons Segundo a Nasa, uma indicação de que a Voyager 1 chegou à fronteira do espaço interestelar é que a sonda detectou um aumento de 100 vezes na atividade dos elétrons, intensidade que seria impulsionada por algo que está fora do Sistema Solar. “Isso ocorre ao mesmo tempo em que a intensidade de partículas originadas no nosso Sistema Solar manteve-se estável para, depois, entrar em declínio”, relata a agência. 
“A natureza está cheia de mistérios a serem descobertos. São programas como o Voyager e o Ibex, além de vários outros, incluindo telescópios, satélites e outras sondas, que estão nos ajudando a revelar alguns desses segredos”, reflete Pammela Frish, pesquisadora de astronomia e astrofísica da Universidade de Chicago. “A análise dos elementos que estão na fronteira do Sistema Solar e no espaço interestelar é o que pode revelar a nossa própria origem, por isso missões assim são tão importantes”, avalia.
O Ibex, que já foi tema de um artigo publicado por Frish na revista Science, começa a trazer dados empolgantes para os astrônomos. Recentemente, em uma coletiva de imprensa, cientistas da Nasa anunciaram que a sonda detectou partículas do espaço interestelar, mostrando que a composição do Sistema Solar é bastante diferente de tudo aquilo que o rodeia. Ao que tudo indica, por aqui há mais oxigênio – na matéria alienígena, o Ibex encontrou 74 átomos do elemento para cada 20 átomos de neônio. No sistema onde está a Terra, a quantidade de O2 é maior: 111 para cada 20. 
“Isso é importantíssimo porque nos revela muito sobre o big bang”, diz Frish. “A história da formação da matéria não está fechada. Sabe-se que, no início, os primeiros elementos foram hélio e hidrogênio. O oxigênio, um elemento muito mais pesado, surgiu muito tempo depois. A resposta sobre a formação e a evolução da Via Láctea está lá fora, além da heliosfera”, garante a astrofísica. “Antes que as Voyager se tornem obsoletas, o que deve ocorrer em 2020, nós certamente vamos ter as melhores pistas já reveladas da cosmologia.”

ARNALDO VIANA - Tempo para chorar‏

Manhã de domingo em um bairro qualquer da Região Nordeste de BH. Da janela do barraco, Adelina e a filha Lea observavam Luiz descendo a ladeira com a mesa da sala nas costas. O rapaz entrou no beco e desapareceu. Luiz, o filho único de Adelina. A cena não era surpresa. Nos últimos meses, elas saíam para trabalhar e, quando voltavam, achavam um canto da casa vazio. Em um mês, ele levou para o beco as cadeiras, a geladeira, a televisão, as camas, o tanquinho, o ferro de passar, as panelas, o som e coisas pequenas, como o relógio da irmã e bijuterias. Ironia, a televisão. Foi presente dele à mãe uns dois anos atrás, quando foi demitido. Comprou com o dinheiro do acerto com a empresa de ônibus. Luiz trabalhou como cobrador. Adelina, diarista, e Lea, caixa de supermercado, não trocaram uma palavra sequer naquela manhã.

Na cozinha, sobre o fogão, numa das poucas panelas velhas que restaram, Adelina cozinhava costela de boi com mandioca, prato favorito de Luiz. Mas sabia que ele não comeria. Em seis meses, o filho, que está para completar 21 anos, mudou muito. Como aquela coisa estranha que ele já não fumava escondido o transformou tanto? Virou um palito, o olhar perdeu o sentido, ficou bruto, não toma banho e as melhores roupas e o tênis se perderam no beco, nas trocas insaciáveis. Adelina já não rezava por ele. Nunca havia imaginado algo no mundo mais poderoso que as orações. Ela não entendia bem aquilo, mas sabia que a cachaça do falecido marido não era pior.

Depois de uma olhada na panela de carne, Adelina foi ao quarto e recolheu os colchonetes e as cobertas, os enrolou e amarrou. Pensou no Luiz, no menino carinhoso que sonhava ser policial. Completou o ensino fundamental, mas, com a morte do pai, teve que arranjar serviço e não voltou à sala de aula. Mas era o homem da casa. Fazia questão de assumir as compras de supermercado e levar o que mais gosta: costela de boi, maçã de peito, feijão preto e potes de requeijão para comer com biscoito de água e sal. Hoje, não faz mais questão de nada disso. Também, nem pode.

O maior susto de Adelina foi no dia em que surpreendeu Luiz remexendo a sua bolsa. Teve que lutar com ele para não deixá-lo levar o dinheirinho das compras. Não escondeu o pavor quando aquele rapaz tatuado, de voz autoritária e arma na cintura, entrou no barraco para cobrar R$ 150. “Se não pagar, tia, vou apagar o Luiz, depois sua filha e você.” Ele voltou umas duas, três vezes. Houve dias em que ela e Lea ficaram sem comer. Só não foi pior porque, no começo daquele tormento, os vizinhos ajudavam. Depois daquela visita armada, eles deixaram até de cumprimentá-las. As contas de luz e de água estavam vencidas e não havia como pagá-las. Ainda bem que não precisavam se preocupar com aluguel. O barracão foi herança do falecido.

Luiz chegou dois dias depois. Adelina e Lea não estavam e não apareceram no dia seguinte nem no outro. Não havia panela no fogo. Menos mal para Luiz. Ele pegou o fogão, pôs nas costas e desceu a ladeira. Os vizinhos olhavam das janelas. Eles sabiam que Adelina não abandonaria o filho assim. Ela ia voltar. Só precisava de um tempo para chorar.

DAVID COIMBRA - O que querem os que vão morrer

Os Cinco Maiores Arrependimentos à Beira da Morte é o título do livro escrito por uma enfermeira australiana que trata de pacientes em estado terminal. Li uma reportagem a respeito na Folha de S. Paulo. O título diz tudo: o livro relaciona os cinco maiores... enfim. A pergunta que a enfermeira fez aos seus pacientes foi: o que eles queriam ter feito na vida e não fizeram? As cinco respostas que mais apareceram foram as seguintes, pela ordem:

1. Ter vivido a vida que eu desejava, não a que os outros esperavam de mim.

2. Não ter trabalhado tanto.

3. Ter tido mais coragem de expressar meus sentimentos.

4. Ter estado mais perto dos meus amigos.

5. Ter me feito mais feliz.

Os desejos 1, 2 e 5 são da mesma natureza, assim como os 3 e 4. Poderiam ser acoplados. Restam, portanto, duas vontades básicas, duas ânsias que, por si, resumem tudo o que é importante para um ser humano: usufruir a vida e estar em harmonia com as outras pessoas.

O triste é que essas pessoas só perceberam o que era importante para elas quando estavam penduradas nas franjas da morte. Algo que faz lembrar os que iam morrer no 11 de Setembro. Refiro-me aos que, de um momento para outro, descobriram que lhes restava muito pouco tempo de existência – porque ficaram presos, sem perspectiva de saída, em um dos prédios em chamas, ou eram passageiros de um dos aviões sequestrados, prestes a se espatifar no solo ou na parede de uma torre.

Essas pessoas sabiam que iam morrer em questão de minutos. O que elas fizeram então? Tomaram do telefone celular, que todas tinham telefone celular, e ligaram para a pessoa que mais amavam. Não fizeram disposições testamentárias nem confissões. Disseram, quase todas, a mesma frase:

“Eu te amo”.

Dá a impressão de se tratar de uma formidável vitória do amor. Não é bem assim. Na verdade, o que as pessoas pretendiam com o gesto derradeiro das suas vidas era realizar o anseio que aflige todos os seres humanos desde que aprendem a pensar: alcançar a imortalidade. Ao gritar “eu te amo” para alguém, os que iam morrer queriam ficar imortalizados no coração e na memória dessa pessoa. Não se esqueça de que aquele que está morrendo agora sente tanto amor por você que lhe dedicou o último ato da sua vida.

Bem. Agora dá a impressão de que se trata de puro egoísmo. Também não é bem assim. Aqueles que buscaram a imortalidade gritando “eu te amo” ao morrer e os que se arrependeram de não ter dito mais “eu te amo” enquanto viviam compreenderam, no último instante, que qualquer coisa que se vá realizar, durante a vida, só pode ser realizada com as outras pessoas.

Seja por egoísmo vão, seja por amor abnegado, seja por prazer vulgar, seja pelo que for, as pessoas só se realizam com as outras pessoas. Pena que, muitas vezes, essa verdade só apareça quando é tarde demais.

PAULO SANT’ANA - Pífia reforma política

Qualquer criança de colégio sabe que, se na reforma política for implantado o financiamento público de campanha, mediante o qual as campanhas dos candidatos nas eleições serão custeadas pelos cofres públicos, grande parte dos candidatos vai continuar a “morder” a iniciativa privada.

O que se quer é, portanto, aumentar as despesas dos cofres públicos, em última análise, dos cidadãos.

No sistema atual brasileiro de relação entre o poder público e as empresas privadas que lhe prestam serviços, é usual que os que obtêm concessões do serviço público, os que constroem obras para os serviços públicos, os que por qualquer forma contratam com o serviço público, até por uma questão de agilidade e competência, destinam verbas vultosas para agentes públicos embolsarem, é não só uma forma para manterem seus privilégios como também para implantarem entre si e os governos uma relação que eu chamaria de cordialidade negocial.

Há empresários e empreiteiras que dão um doce para subornar, sabendo que quanto mais mais o fizerem mais lucrarão com os cofres públicos.

Não há reforma política que consiga impedir, portanto, que os candidatos nas eleições sejam subsidiados pelas empresas privadas. E gastam esse dinheiro tanto para realizar suas campanhas eleitorais quanto para embolsar grandes fortunas por esse expediente.

A solução é o financiamento das campanhas pelos próprios candidatos, com normas rígidas no sentido de se impedir que essas campanhas se tornem milionárias e com severidade nos gastos excessivos, eliminando os candidatos que incorrerem nisso.

Cá para nós, quando uma obra pública é orçada em R$ 50 bilhões, vai alguém acreditar que no serviço público ninguém embolsou uma comissão polpuda para a realização desse negócio, mesmo que ele tenha sido feito de acordo com as regras de licitação exigidas?

Eu gostaria de saber como se procedem essas relações na Europa e nos EUA, mas tenho certeza de que lá eles também têm esses problemas, é claro que punindo com cadeia os subornados que são flagrados.

Além da recompensa, por fora, das empresas privadas aos agentes públicos gratificados, há também o tráfico de influência, que custa muitas vezes mais do que as comissões.

O fato é amedrontador. Porque se tem a certeza de que essa corrupção atinge por vezes cerca de 50% do custo total das obras ou serviços.

Agora mesmo estourou uma manchete: “Obras da Copa do Mundo já estão custando mais 21%”.

Mas não é uma vergonheira? Por isso é que gritei contra Copa do Mundo no Brasil.

O mais desolador e triste é que com essas comissões que são pagas aos agentes políticos que de alguma forma detêm cargos nos governos, poderíamos solucionar todos os problemas brasileiros, inclusive a saúde e a educação, e dotar os funcionários públicos escorchados em salários de ganhos muito mais dignos.

O certo é a criação de mecanismos que fiscalizem rigorosamente esse tipo de desvio de dinheiro.

E também que os eleitores observem cuidadosamente as siglas e candidatos e votem nos mais austeros, nas figuras menos manjadas da “mordeção” e do fisiologismo.

O preço de Kassab - Maria Cristina Fernandes

São Paulo elegeu sete prefeitos desde a redemocratização. Destes, quatro conquistaram o posto com alianças encabeçadas pela direita (Jânio, Maluf, Pitta e Kassab), dois o fizeram pela esquerda (Erundina e Marta) e apenas um pelo centro (Serra).

Preferências mudam, mas o eleitorado de São Paulo tem se mostrado razoavelmente estável ao longo das últimas duas décadas. Essa estabilidade se reproduz geográfica e socialmente com considerável coerência.

A direita, quando capaz de montar alianças capazes de abocanhar um naco das áreas e dos eleitores de centro e esquerda, tem sido a força eleitoral mais competitiva da maior cidade do país.

Some-se à força da história eleitoral a taxa de sucesso de prefeitos que buscam fazer seus sucessores. Em São Paulo, desde 88, apenas dois o fizeram - Maluf e Serra -, elegendo sucessores oriundos da direita partidária, Pitta e Kassab.

Foge, portanto, do campo da elocubração ou torcida a constatação da força eleitoral do prefeito Gilberto Kassab. Ainda que a fotografia do momento revele uma administração mal avaliada, o histórico do comportamento eleitoral paulistano, somado à boa saúde financeira do município neste último ano de mandato, dá ao prefeito capital suficiente para lhe assegurar a condição de pivô de sua sucessão.

Ao criar o PSD Kassab montou a estratégia com a qual pretende ampliar a abrangência desse capital político da esfera municipal para a nacional. Aliando-se a um partido com nítidas ambições de chegar ao Palácio do Planalto, o PSB, Kassab deixou claro que entrou no jogo para ir além do espaço de fiel da balança entre petistas e tucanos hoje ocupado pelo PMDB.

Foi em busca desse capital ampliado que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez a minuta de aproximação entre o PT e Kassab, que culminou com a ida do prefeito ao palanque do aniversário petista.

Valeu-se dos mapas eleitorais das duas vitórias petistas na cidade. Luiza Erundina foi beneficiária de um voto útil de última hora numa campanha em que o esvaziamento do centro resultou na sua polarização com os malufistas. Tivesse havido segundo turno, o centro e a direita somados teriam votos de sobra para derrotar Erundina.

Doze anos depois, Mario Covas mostrou como a força de alguns personagens pode mudar cartas marcadas. Governador do Estado quando seu candidato a prefeito da capital, Geraldo Alckmin, perdeu a vaga no segundo turno de 2000 para Paulo Maluf por oito mil votos, Covas subiu no palanque petista arrastando o centro para eleger Marta Suplicy.

O mapa daquela votação mostrou que Marta ganhara na cidade inteira, à exceção das seções eleitorais com maior perfil de renda, lideradas pelo candidato do PSDB.

Enquanto Maluf foi forte, os tucanos não encontraram seu lugar na cidade. Foi preciso uma hecatombe das proporções da administração Celso Pitta para desgastar o capital político do malufismo e dar lugar, em 2004, à primeira vitória do PSDB no seu berço político com a eleição de José Serra.

A sobrevivência do malufismo na capital explica em grande parte por que o PSDB, governando o Estado de São Paulo desde 1994, só ganharia a eleição paulistana dez anos depois.

No Estado o PSDB ocupou os espaços do PMDB de Orestes Quércia, cuja força eleitoral declinou enquanto a do malufismo ascendia. Quando Paulo Maluf elegeu-se prefeito da capital (1992), Luiz Antônio Fleury Filho já se preparava para encerrar em desgraça a derradeira gestão pemedebista no Estado.

A ascensão de Serra à prefeitura em 2004 e a eleição de Kassab quatro anos depois se dariam com a herança de zonas eleitorais do centro expandido de tradição malufista e marcadamente antipetista. As franjas da cidade continuariam com o PT mas, na sua derradeira tentativa de voltar, Marta mostrou não ser capaz de ultrapassá-las.

Nem o perfil classe média de Dilma foi capaz de romper a muralha erguida em São Paulo contra o PT. Nas cinco eleições presidenciais - e outras cinco estaduais - que disputou o partido, só venceu uma única vez na capital paulista, quando Luiz Inácio Lula da Silva derrotou Serra em 2002, numa contenda marcada pelo desemprego crescente do final do governo Fernando Henrique Cardoso.

As dificuldades eleitorais petistas no mais importante centro urbano do país desmontam uma tese em voga nas esquerdas durante muito tempo, de que os eleitores inclinam-se por candidatos conservadores por falta de esclarecimento.

O microcomerciante de Santana, tradicional reduto malufista da zona norte da cidade, apesar de ter prosperado nos governos Lula/Dilma, só enxerga taxas municipais quando pensa que o PT voltaria à prefeitura. Foi a perspectiva de conquistar esse eleitor que fundamentou os argumentos pró-aliança com o PSD.

Kassab já estava precificado no PT quando a candidatura Serra tomou forma. Os petistas avaliam que Kassab lhes ajudaria a vencer em São Paulo e minar as chances de o PSD vir a se aliar aos tucanos em 2014. Os tucanos também estão chegando à conclusão não podem prescindir dele na disputa paulistana, além de temerem o isolamento a que podem vir a ser submetidos pela aliança PT-PSD.

Petistas, pelo poder de contemplar o PSD nacionalmente, parecem ter mais poder de barganha, mas pesa a favor do PSDB maior afinidade das bases eleitorais de ambos os partidos. O que está em jogo é mais do que um ministério ali ou uma candidatura acolá. É a máquina de fazer política em que se transformou o PSD. Com o aumento da procura, o preço do prefeito subiu. E o pregão mal começou.

Crédito pós-crise foi para consumo - CLAUDIA SAFATLE

Entre dezembro de 2008 - auge da crise financeira internacional - e dezembro de 2011 - auge da crise de dívida soberana nas economias desenvolvidas - o crédito no Brasil cresceu 10,7 pontos percentuais, passando de 38,4% do Produto Interno Bruto (PIB) para 49,1% do PIB. Cerca de 77% dessa expansão foi produto da ação dos bancos públicos.

Do aumento, apenas 3,4 pontos percentuais do PIB foram destinados às empresas e desses, 3,3 pontos do produto foram de responsabilidade do BNDES. Ou seja: sem o BNDES, o crédito bancário para a realização de negócios no país estaria hoje onde estava há pouco mais de três anos. O que cresceu foi o crédito para consumo.

O processo pós-crise de 2008, portanto, representou uma inversão radical em relação ao que vinha ocorrendo três anos antes. De 2005 a 2008 a expansão do crédito no país foi de 12,2 pontos percentuais do PIB, dos quais 7 pontos do produto destinaram-se às empresas e desses, apenas 1,1 ponto percentual foi da alçada do BNDES.

O crescimento da oferta de empréstimos e financiamentos incentivou pouco os investimentos. Em 2011 a formação bruta de capital fixo correspondeu a cerca de 19,5% do PIB, uma performance parecida com a de 2008.

A engenharia montada para transferir recursos públicos ao BNDES e desse para o Banco do Brasil, para a Petrobras e para o setor financeiro e real da economia, gerou uma rede de complexas interconexões, com um resultado líquido e certo: o aumento do endividamento público.

Para liderar a expansão do crédito, as instituições públicas tiveram que captar recursos no Tesouro Nacional. Para prover seus bancos, o Tesouro emitiu dívida, cujos títulos foram absorvidos pelo mercado financeiro. E esse preferiu concentrar suas aplicações no curtíssimo prazo, por meio das operações compromissadas do Banco Central.

Para destrinchar essa teia o economista José Roberto Afonso, especialista em finanças públicas, fez um extenso estudo que será publicado na revista da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), do governo de São Paulo.

Pela óptica fiscal, a oferta de crédito do governo aumentou de 8,5% do PIB para 14,5% do PIB entre 2008 e 2011. O impacto dessa elevação sobre o endividamento é identificável no conceito clássico de dívida bruta, que considera toda a carteira de títulos do Banco Central. Por esse conceito a dívida era de 59,6% do PIB em agosto de 2008 (véspera da quebra da Lehman Brothers), subiu para 66,6% em 2009 e caiu para 64,2% do PIB no ano passado.

"O ativismo creditício estatal, na prática, se confundiu com uma expansão fiscal", constata José Roberto. No caso do BNDES, o total de crédito saltou de 6,1% do PIB em 2008 para 10,2% do PIB em 2011.

A dependência do BNDES aos empréstimos do Tesouro Nacional se tornou de tal forma elevada que o saldo desses recursos na instituição representa o dobro do saldo acumulado no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), de cerca de R$ 150 bilhões, antes a principal fonte de funding do banco estatal.

Uma das particularidades da reação à crise foi a acentuada exposição do BNDES na Petrobras, que passou a representar 82% do patrimônio de referência do banco, segundo o estudo. Para tanto, foi preciso que o Banco Central autorizasse que a exposição de crédito na empresa de petróleo fosse contada não para o grupo empresarial, mas para cada uma das suas empresas.

Assim, a participação do BNDES na reestruturação patrimonial das empresas logo após o "crash" de 2008 não se limitou a dar saída à crise dos derivativos cambiais que abalou cerca de 200 companhias brasileiras, mas se estendeu para uma relação quase umbilical com bancos e empresas públicas.

"O BNDES foi um Fed (banco central americano). O que o Fed fez nos Estados Unidos o banco fez aqui", comenta o economista. Só que parte dos recursos do banco voltou para o próprio Tesouro Nacional. O BNDES comprou do Tesouro ações da Petrobras e pagou dividendos.

No fim das contas, foi a atuação dos bancos públicos na expansão do crédito que permitiu uma saída rápida da recessão em 2009, mais do que os estímulos fiscais concedidos à época, diz José Roberto.

Segundo ele, por trás do manejo da carteira de títulos do BC escondem-se duas formas de endividamento: o recolhimento compulsório dos bancos, em grande parte remunerado pela Selic, e as operações compromissadas. No caso dos compulsórios, é curioso observar o forte aumento que houve de 2008 para cá. Esses depósitos representavam 4% do PIB em agosto de 2008 (antes da crise) e saltaram para 8,9% do PIB em dezembro de 2011. As operações compromissadas do BC também cresceram muito por causa da esterilização das reservas cambiais.

Com todos esses arranjos, a dívida bruta no cálculo mais restrito, usado pelo BC, chegou em dezembro de 2011 equivalente a 54,3% do PIB, mais elevada do que a média de 37% do PIB nos países emergentes do G-20. Já as projeções de crescimento econômico do país mostram um dinamismo aquém da média dos emergentes. A expectativa é de que o Brasil acumule uma expansão de 18,1% até 2013, ante 30,5% das economias emergentes (considerando a média de 2005/2008 e dados da Unctad).

A partir da visão do que ocorreu no passado recente, o economista aponta para a necessidade de se buscar um novo padrão de financiamentos no país com a criação de um mercado de dívida privada, uso de parte dos compulsórios para viabilizar projetos de longo prazo e a atuação dos bancos oficiais mais como seguradoras desses projetos.

Petrobras: fantasia e realidade - ROGÉRIO FURQUIM WERNECK

No artigo aqui publicado em 3/2, tratei das dificuldades que a Petrobras vem enfrentando, para cumprir a parte que lhe cabe no problemático modelo de exploração do pré-sal. Embora o artigo defendesse os melhores interesses da empresa, a Petrobras queixou-se, em carta ao jornal, de que a argumentação continha equívocos e fatos distorcidos, além de "viés negativo". Como de hábito, o artigo foi também publicado no "Estadão". Mas, curiosamente, a carta, publicada em 7/2, só foi enviada ao GLOBO.

O que dizia o artigo? Que a Petrobras está sobrecarregada pela tríplice exigência que lhe foi imposta no modelo: (a) manter o monopólio da operação dos campos do pré-sal; (b) ter participação de pelo menos 30% em cada consórcio que vier a explorar tais campos; e (c) levar adiante a "missão" de desenvolver a indústria de equipamentos para o setor petrolífero no país. E que essa última "missão", em particular, vem impondo enorme e indefensável ônus à empresa.

Na carta, a Petrobras passa ao largo do ponto principal do artigo e faz três alegações. A primeira é que o artigo "estabelecia confusão", ao relacionar a "política industrial de desenvolvimento da cadeia fornecedora do segmento de petróleo", mera "prerrogativa do governo", com a "oportunidade", concedida à empresa, de desempenhar papel tão proeminente no pré-sal. Não há confusão alguma. Quem melhor vinculou uma coisa à outra foi a própria Petrobras. Basta consultar, por exemplo, a imperdível entrevista publicada no "Estadão" de 9/9/2009, na qual o então diretor de Exploração e Produção da empresa explicava a lógica do modelo que ajudara a conceber (disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,fornecedor-dita-ritmo-de-exploracao-do-pre-sal,431581,0.htm). A intenção, com todas as letras, era assegurar escala suficientemente grande à operação da Petrobras no pré-sal, para que ela pudesse levar adiante a "missão" de desenvolver a produção nacional de equipamentos. "Se uma empresa tiver de colocar duas, três plataformas, é uma coisa. Se tiver de pôr 20, é outra."

A segunda alegação é que não teria fundamento a ideia de que o governo estaria postergando licitações, tendo em vista que leilões para contratos de partilha só poderão ser feitos após decisão do Congresso sobre a questão dos royalties. Na verdade, tal indefinição não passa de desculpa momentaneamente conveniente. Nada permite supor que, uma vez definida a questão no Congresso, o governo estará pronto a deflagrar a licitação do pré-sal. É bom ter em conta que, no caso das concessões do pós-sal, que em nada dependem da decisão do Congresso, a última rodada de licitação foi feita em 2008. Como já deixou mais do que claro a atual presidente da Petrobras, a empresa, por enquanto, não tem interesse em que o governo promova novas licitações, por já dispor de "um cardápio espetacular" de áreas a explorar.

A terceira alegação da carta é preocupante. Refere-se à menção, no artigo, ao fato de ter sido a empresa capitalizada, em 2010, com R$ 75 bilhões de preciosos recursos do Tesouro. A Petrobras viu nessa afirmação um "erro" a ser corrigido. "A verdade dos fatos: na capitalização da Petrobras, a União aportou títulos da dívida pública. Em sequência, recebeu esses mesmos títulos como pagamento, pela Petrobras, do Contrato de Cessão Onerosa. Portanto, para a União, não houve saída de caixa."

O argumento é de um primitivismo estarrecedor. Pouco importa se houve ou não saída de caixa. A União dispunha de reservas de petróleo que, se tivessem sido licitadas, teriam gerado R$ 75 bilhões ao Tesouro, mais de 2,5 vezes o total de gastos do PAC em 2011. Recursos públicos que, num país de tantas carências, poderiam ter tido destino incomparavelmente mais nobre. Basta olhar em volta. É lamentável que a Petrobras não consiga entender quão preciosos, de fato, eram os recursos com que foi aquinhoada na capitalização de 2010. Uma noção clara do uso alternativo que poderiam ter tido ajudaria a Petrobras a ver com outros olhos, por exemplo, os custos do programa de favorecimento à produção local de equipamentos.

Discretas esperanças nas eleições - FERNANDO GABEIRA

O que têm que ver as eleições com segurança nas metrópoles brasileiras? Prefeitos e vereadores que delas emergem não têm como função específica garantir a segurança pública. Mas não podem dar as costas ao tema.

A experiência mais discutida na eleição presidencial foram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criadas no Rio. Sucesso entre os moradores, a imprensa e até no comércio imobiliário, que delas se beneficiou, essas unidades são, no conjunto, um cinturão no setor da cidade que abrigará a Copa do Mundo. Além dos benefícios para os moradores, o governo consegue demonstrar o domínio sobre o território, apoiado por quedas no índice de criminalidade.

Mas vistas de bairros mais remotos, áreas metropolitanas e cidades médias, as UPPs significaram mais perigo no cotidiano, porque os ocupantes dos morros foram dispersados. O índice de assassinatos na Baixada Fluminense é o dobro do registrado na capital. Essa diferença não nasceu agora, apenas revela onde é mais perigoso viver. É o tipo de realidade que o planejamento de eventos internacionais não pode encobrir. Seu objetivo é garantir os jogos, e não necessariamente a segurança conjunta.

Eleições municipais não mudam tal realidade, mas poderiam atenuar seu impacto. Prefeituras têm algo essencial: informação sobre inúmeras variáveis. Respeitada a privacidade, combinados e analisados, esses dados seriam uma ferramenta complementar para uma política de segurança. Uma rede de guardas municipais conectados pode dizer muito, a todo instante, do que se passa nas ruas. O risco continuará a existir, mas a informação pode trazer mais clareza sobre como é administrado e empurrado para a periferia. São os bairros mais distantes, de modo geral, que recebem outros riscos decorrentes dessa administração. Para lá vão os presídios, manicômios, aterros sanitários, traficantes e milícias.

Em muitas áreas da metrópole a insegurança está na própria moradia. O Brasil desenvolveu um modelo original. O capitalismo no seu curso espontâneo tende a empurrar as pessoas para áreas de risco. E os socialistas lutam ardentemente para que elas continuem lá, no perigo extremo.

A energia central está na construção de novas moradias. As cidades esperam muito de programas ambiciosos como o Minha Casa, Minha Vida. E às vezes não percebem a energia da própria comunidade, como a de Vieira, distrito de Teresópolis, que construiu dez casas, a R$ 10mil cada, por conta própria. Foi preciso que um grupo se cotizasse e buscasse mais recursos entre pessoas simpáticas à reconstrução. A única demanda ao governo foi que emprestasse uma de suas máquinas, locadas na região, para algumas horas de trabalho.

A possibilidade de renovação nas cidades não se limita ao uso de recursos inteligentes. Elas têm algo que governos estaduais e Brasília não conseguem com a mesma intensidade: o potencial de mobilização. Os dois fatores permitiram que algumas cidades obtivessem, na luta contra a corrupção, melhores resultados que o obtido no plano nacional.

Os candidatos poderão ser ultrapassados pela demanda que começa em reuniões de pequenos grupos em casas de família e se estende pela rede social. Muito possivelmente, ao lado de projetos mais amplos os moradores vão querer saber o que está previsto para sua área, que tipo de crescimento o bairro vai experimentar. Isso estimula, em certos casos, a dividir a cidade por áreas com projetos específicos de crescimento, respeitada sua vocação. Um plano desse tipo foi discutido no Rio em 2008. Adotado parcialmente pelo prefeito eleito, estimulou o crescimento de um polo de produtores de plantas ornamentais e flores em Barra de Guaratiba, que cresceu em torno do sítio de Burle Marx e agora se consolida.

Um projeto para a cidade não se faz só em ano de eleições. Até porque os candidatos, em níveis diferentes, têm conhecimentos limitados da cidade que vão governar. Embora dependa muito da discussão, depende também da existência de grupos que estudem o problema e, como urbanistas ou acadêmicos, já tenham formulado o esqueleto do plano.

Campanhas, sozinhas, não pensam a cidade adequadamente. Com alguma ajuda externa, um dos seus objetivos seria discernir em 2012 os interesses da Copa do Mundo e os da metrópole, no conjunto. Em muitas cidades as obras da Copa estarão em pleno curso, aumentando a sensação de desconforto. Apenas 17% da frota de ônibus do Rio, por exemplo, tem ar-condicionado. A Copa é no inverno, porém vivemos nas quatro estações e até hoje não surgiu uma lei obrigando o ar-condicionado em todos os ônibus. No caso do Rio essa inibição dos políticos tem suas raízes no jabaculê. Por meio de revoltas sucessivas e explosões de violência, os passageiros mostram descontentamento.

Embora o quadro não esteja definido, a eleição em São Paulo tende a ser uma grande atração nacional. As ideias, todavia, ainda não foram postas na mesa. Se depender do potencial do impulso externo às campanhas, a cidade pode oferecer inúmeros debates, entre eles o da sustentabilidade urbana. Como as duas forças em presença já governaram a cidade, parte da discussão entre elas será sobre quem fez melhor. Certamente a demanda vai transcender esse tópico, deslocando-se para o futuro imediato.

No carnaval sonha-se muito, para tudo acabar na quarta-feira. Em eleições, de certa forma, tudo pode começar na quarta-feira.

A fase até agora vivida foi a de discussão interna dos partidos e movimentos de coligações. Logo, decerto, começará outra, ressaltando alguns pecados dos candidatos e estimulando a declaração de seus princípios morais. Se tudo correr bem, no meio do ano a cidade estará no centro da cena, com o potencial de inspirar debates de interesse internacional: para onde vai a principal metrópole da sexta economia do mundo?

Mesmo quem não gosta de ler programas será tentado a dar uma olhada. Um bom debate nesse campo fortalece o trabalho do vencedor, não importa quem seja. Otimismo? Esperar o melhor pode ajudá-lo a acontecer.

Por um punhado de ICMS - ROBERTO GIANETTI DA FONSECA

Parafraseando o título do memorável longa-metragem dirigido na década de 1960 pelo cineasta italiano Sérgio Leone e estrelado por Clint Eastwood, "Por um punhado de dólares", assim denomino a atitude antipatriótica, quando não inconstitucional, de certos governadores estaduais, que continuam oferecendo ostensivamente incentivos fiscais para produtos importados que sejam internalizados no território nacional através de seus portos. Trata-se de flagrante desrespeito desses governadores a recente decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal, como também ao Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária).

Alguns alegam que os incentivos existem em alguns Estados há mais de 40 anos, e indagam por que somente agora surge tal crítica a uma prática tão duradoura? De fato é verdadeira a afirmação que o mais antigo destes perversos incentivos, o denominado Fundap, teve origem no Estado do Espírito Santo em 1972, e era justificado como compensação econômica temporária pela erradicação do café levada a efeito naquele Estado, quando havia naquele ano-safra uma superprodução dessa commodity, e o governo federal da época assim decidiu. Imaginaram um criativo sistema de financiamento de longo prazo com juros fixos reduzidos, em valor proporcional ao valor do ICMS recolhido sobre os produtos importados através do Porto de Vitória, de forma que o valor presente líquido do ICMS para o importador ficaria reduzido em cerca de 70%.

Em resposta a esses incentivos, muitos importadores de insumos industriais desviaram suas importações do porto de Santos e do Rio de Janeiro para o Porto de Vitória. Acontece que naquela época, e até o fim da década de 1990, somente o Espírito Santo praticava essa modalidade de incentivo fiscal para produtos importados, os quais eram quase exclusivamente sem similar nacional, uma vez que a então toda-poderosa Cacex não liberava licenças de importação para qualquer mercadoria estrangeira que desejasse entrar no país. Apesar da contestação de alguns outros Estados desde os anos 1980, o Fundap não representava até então uma grave ameaça à indústria nacional, e sobrevivia ano após ano, governo após governo, os quais algumas décadas depois já nem mesmo se lembravam de sua longínqua origem derivada da erradicação dos cafezais em 1972.

Nos últimos 15 anos, as importações brasileiras se multiplicaram, e muitos outros Estados brasileiros introduziram regimes de incentivos fiscais para produtos importados que hoje em dia movimentam dezenas de bilhões de dólares de importações incentivadas, as quais competem diretamente e de forma desleal com a produção nacional, destruindo renda, emprego, e investimentos produtivos em nosso país. Por um punhado de ICMS, equivalente a cerca de apenas 3%, ao invés dos 12% (interestadual) ou 18% (estadual), esses governos estaduais vendem sua "alma ao diabo", ou melhor, aos produtores estrangeiros, que se aproveitam dos incentivos tributários para vender volumes crescentes de seus produtos no mercado interno brasileiro.

As importações obrigam a indústria nacional a se tornar a cada dia mais moderna e mais competitiva. O que estamos aqui contestando é algo bem diverso, ou seja, contestamos veementemente as espúrias vantagens fiscais atualmente oferecidas a produtos estrangeiros importados que concorrem de forma desleal com a produção nacional.

Para encerrar definitivamente esta nefasta distorção tributária que ainda prevalece na economia brasileira, está em tramitação final no Senado Federal uma resolução, a de número 72/2010, que poderá vir a reduzir o ICMS interestadual sobre produtos importados sem transformação no Estado de origem, para meros 4%, ou seja, sem espaço para manobras fiscais que justifiquem a continuidade desta denominada "Guerra Fiscal dos Portos". Espera-se que os senadores da República, no cumprimento de seus deveres constitucionais, determinem imediatamente o regime de urgência para a votação da resolução, e assim, votando em maioria simples pela sua aprovação, ponham fim a esse crime de lesa-pátria que tanto tem prejudicado a indústria nacional nos últimos anos.

CHARGE - Benett

Editorial - Folha de São Paulo


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Dilema na Petrobras


Graça Foster, ao assumir direção da empresa, promete fidelidade incondicional a Dilma Rousseff; preços de derivados são primeiro teste 


Na cerimônia de sua posse, a nova presidente da Petrobras prometeu "fidelidade incondicional" à presidente Dilma Rousseff.

A expressão é cabível numa conversa privada entre amigas de longa data; empregada em público, suscita preocupação quanto ao rigor que Graça Foster imprimirá à necessária distinção entre Dilma, seu partido (PT) e seu governo, de um lado, e de outro a União, acionista majoritária da Petrobras.

A executiva fez mais uma promessa, dirigida a outro público: a de buscar para a companhia um lucro maior que o de 2011. Foi um aceno aos numerosos acionistas minoritários, prejudicados pela evolução decepcionante que o preço das ações da Petrobras tem apresentado desde meados de 2010.

Dentre os fatores que explicam esse desempenho, claramente inferior à média dos demais papéis que compõem o índice da Bolsa de Valores de São Paulo, está a diminuição do lucro da empresa, de R$ 35 bilhões para R$ 33 bilhões, entre 2010 e 2011. E tal redução está associada, em grande parte, à política de preços da estatal.

Vários produtos têm gerado prejuízo para a Petrobras, sobretudo porque o custo de importá-los supera o preço de venda no mercado brasileiro. É o caso da gasolina e, de forma mais marcante, do diesel. Analistas estimam que em 2011 a companhia tenha sofrido prejuízo de quase R$ 2 bilhões nas operações de importação e venda de diesel -e de mais cerca de R$ 500 milhões com a gasolina.

Aumentar os preços cobrados por esses produtos nas refinarias melhoraria a rentabilidade da empresa e poderia reforçar sua capacidade de investir. Diante de outras limitações, como os prazos longos pedidos por fornecedores, já há algum tempo a Petrobras vem descumprindo suas metas de aumento da produção. Por outro lado, reajustes de combustíveis poderiam aumentar a inflação.

No que toca à gasolina, se a Petrobras determinar altas de preço nas refinarias, o governo pode mitigar o impacto sobre a inflação por meio de redução do valor de um tributo (a Cide) cobrado sobre cada litro vendido ao consumidor.

Esse expediente, no caso do diesel, teria efeito pequeno, porém, pois a parcela da Cide embutida no preço final é bem menor. Logo, seria mais substancial o impacto sobre a inflação de um realinhamento do preço do diesel.

Fica evidente que a política de preços da Petrobras envolve um conflito de interesses, entre os objetivos políticos do Planalto e a saúde da maior empresa do Brasil. Uma solução equilibrada parece incompatível com a atitude de alinhamento automático de Graça Foster com o governo de turno.

Editorial - Folha de São Paulo


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Hora da Justiça


É provável que em qualquer parte do mundo fosse capaz de despertar interesse geral um julgamento como o de Lindemberg Fernandes Alves, que confessou durante o júri ter matado sua namorada de 15 anos, Eloá Pimentel, depois de tê-la mantido por cerca de cem horas em cativeiro, em 2008, num apartamento de Santo André (região metropolitana de São Paulo).

O fato de a vítima ser tão jovem, além de terem sido passionais os motivos do crime, também conta. O mais importante, talvez, resida na ideia de que, estendendo-se por tão longo e tenso período, a situação poderia ter-se resolvido sem que prevalecesse o desfecho fatal.

Seria evitável o crime, escreve na Folha a juíza Rosana Navega Chaves, que julgou outro caso dramático, o do sequestro de um ônibus no Rio de Janeiro, em 2007. Na ocasião, a polícia recusou a proposta de que um líder religioso participasse de negociações com o criminoso. Intervenção semelhante, diz a juíza, poderia ter sido tentada no caso agora em pauta.

Difícil saber, claro, o que teria acontecido. Assassinada Eloá, quem quer que tenha acompanhado o drama não deseja, no momento, senão que se faça justiça.

Nesse sentido, ao que há de universal no interesse pelo julgamento se somam outras razões, típicas da conjuntura brasileira, para explicar o destaque dado ao episódio.

Uma notável carência de justiça percorre o cotidiano do cidadão; a convivência com a impunidade, que praticamente se ostenta, entre sorrisos, no ambiente político, é sua face mais visível. Num plano mais profundo, é uma sensação de desamparo geral que parece pulsar, de forma indignada ou vingativa, quando, por fim, algum criminoso se vê levado a responder pelo que fez.

O aparato de um tribunal do júri produz, assim, efeito ambíguo. De um lado, o cidadão encontra meios de se familiarizar com uma estrutura institucional capaz de transcender, pelo argumento e pela praxe jurídica, o que há de instintivo no puro ato de retaliação.

Todavia o que certamente existe de teatral no sistema torna-o permeável a um emocionalismo que nada contribui para a equilibrada administração da Justiça; ainda mais quando, em casos de alto impacto popular, a solidariedade com as vítimas se intensifica.

Falhas evidentes já se verificaram em julgamentos desse tipo; se a confissão de Lindemberg afasta tal risco, é crônica a incerteza a derivar dos tribunais do júri num país onde a sede de justiça tão raras vezes se aplaca e as penas em aparência rigorosas nunca se cumprem.

Hélio Schwartsman - O júri na berlinda

SÃO PAULO - Chegou ao fim o julgamento de Lindemberg Alves Fernandes pelo tribunal do júri. Será que não é a hora de pôr um fim ao próprio tribunal do júri, isto é, à ideia de que certos crimes devem ser julgados por um grupo de cidadãos sem treinamento jurídico?

Numa visão romantizada, o júri representaria um controle democrático sobre o Estado. O simples fato de o veredicto estar a cargo de populares e não de magistrados já representaria um obstáculo às tendências despóticas do Judiciário, como observa Alexander Hamilton nos papéis federalistas. Os jurados também detêm o poder de não aplicar leis que considerem injustas, exercendo assim uma regulação sobre o Legislativo.

No mundo real, porém, notadamente em países como o Brasil, onde o júri é um resquício fóssil, esse controle é menos do que teórico. Pior, cientistas reuniram nas últimas décadas um corpo notável de evidências de que o ser humano é muito mais facilmente manipulável do que imaginávamos. Ideologia, emoções e até detalhes como o nível de açúcar no sangue do julgador influenciam suas decisões.
Os vieses cognitivos afetam tanto jurados como juízes profissionais, mas estes, por acumularem mais experiência e terem de justificar racionalmente suas decisões, estariam, em tese, mais preparados para resistir aos truques usados por promotores e defensores.

O instituto do júri ganhou força na Europa no século 13, depois que a Igreja Católica decidiu pôr um fim aos ordálios, nos quais se estabelecia a culpa do acusado submetendo-o a provas como segurar um ferro em brasa. Se, três dias depois, não houvesse cicatrizes, ele estava livre.
O pressuposto era o de que Deus protegia os inocentes.

Eu me pergunto se nossos netos não olharão para o júri com o mesmo sorriso irônico que hoje esboçamos ao ler sobre o ordálio.

helio@uol.com.br

Eliane Cantanhêde - Ficha Limpa e voto limpo

BRASÍLIA - Demorou, mas o processo de votação da Ficha Limpa pelo Supremo foi não só uma vitória da cidadania como uma lição de maturidade democrática do país.

A primeira vitória foi a derrota da aplicabilidade da lei na eleição de 2010. Parece incongruência, mas, pela Constituição, mudanças nas regras só valem se definidas mais de um ano antes das eleições. A lei foi sancionada em junho, o pleito seria em outubro. Logo, a história vai registrar que o Supremo optou pela legalidade, não pelo aplauso fácil.

Já a decisão de ontem vem na hora certa, com a argumentação certa e dá a chance ao país de cortar pela raiz uma das árvores da corrupção, responsável, por exemplo, pela queda de sete ministros em meses.
Se a ficha de vereadores, deputados, senadores, prefeitos e governadores é limpa, os presidentes, a imprensa e as instituições vão precisar fazer menos "faxinas". A não ser que as candidaturas sejam limpas e os mandatos se tornem sujos -algo, aliás, muito comum.

Um dos principais debates entre os ministros nos dois últimos dias foi o confronto entre a exigência de moralidade -cerne da Lei da Ficha Limpa- e a presunção de inocência -um pilar da democracia.
A novata Rosa Weber ensinou: inelegibilidade (de político condenado por um colegiado ou que renunciou para fugir da cassação) não é pena. É instrumento para subordinar o político "à moralidade, à probidade, à honestidade e à boa-fé", sem ferir a presunção de inocência (antes do julgamento definitivo).
Apesar de ter votado tecnicamente contra a Ficha Limpa, Gilmar Mendes induziu a uma reflexão: os partidos e os eleitores é que devem exercer o "controle dos candidatos".

As duas coisas, porém, não se anulam; se somam. A Lei da Ficha Limpa é um avanço, mas há muito ainda a ser feito e depende também de você, eleitor e cidadão. O próximo passo é a eleição municipal. Vote limpo!
elianec@uol.com.br

Ruy Castro - 300 nanicos em cena

RIO DE JANEIRO - Às vezes, tem-se a impressão de que os americanos levam a democracia longe demais. Embora os jornais só falem de Mitt Romney, Newt Gingrich e um ou dois coadjuvantes como candidatos à Presidência dos EUA, saiba que, neste momento, há cerca de outros 300 aspirantes ao trono, todos registrados e tão aptos a suceder Barack Obama quanto Romney e Gingrich.

Sim, qualquer um pode candidatar-se a presidente nos EUA. Basta ser americano nato, maior de 35 anos e preencher um formulário oficial solicitando inscrição na cédula. É tão simples quanto tirar carteira de motorista, entrar para um grupo de autoajuda para dependentes de sexo ou tornar-se membro do Vigilantes do Peso. Talvez até mais simples. O difícil é ver o seu nome chegar à dita cédula.

Para tanto, o candidato a candidato precisará levantar um mínimo de US$ 5 mil em doações, nada impedindo que o dinheiro saia do seu próprio bolso e desde que ninguém esteja olhando. Supõe-se que, com menos do que isso para bancar a campanha, o pretendente só teria a reunião de condomínio do seu prédio para divulgar sua plataforma.

E não se pense que todos esses pré-candidatos sejam republicanos. A provar que a aversão a Obama não tem cor política, há muitos que querem suceder ao presidente na própria cédula dos democratas -nem os seus correligionários o aliviam.

É possível que vários desses aspirantes nanicos à Casa Branca sejam, de fato, melhores que Obama, muito melhores que Romney e Gingrich, e Bush, Clinton e Reagan, nem se fala. Mas, para chegar à disputa, teriam de vencer as primárias de seus partidos. Como isso não acontecerá e eles continuarão fora da cédula, conclui-se que, mesmo nos EUA, a democracia é relativa, e os americanos terão de virar-se com Obama contra Romney ou Gingrich, e lamber os beiços.

Marina Silva - Depois do Carnaval

Chegamos, finalmente, a mais um feriadão de Carnaval, para depois, segundo dizem, tudo começar a acontecer no Brasil.


Geralmente, em nossa viciada cultura da procrastinação, do "deixa para depois", aproveitamos as datas festivas e comemorativas como desculpa para continuarmos protelando tudo aquilo que nos incomoda, ou que é mais difícil de fazermos acontecer.

Esperamos passar a Semana Santa, o Natal, o Ano-Novo e as férias de verão até chegarmos na convincente constatação de que, em nosso país, as coisas só começam a acontecer depois do Carnaval.
O drama desse "avestruzamento" coletivo é que a realidade dos problemas que precisam ser enfrentados -e que, a cada ano, acabam sendo deixados para depois do Carnaval- não pode ser indefinidamente armazenada como se fosse uma fantasia de um desfile malsucedido, que nunca mais queremos ver repetir-se.

Esses problemas aparecem e reaparecem nos salões e nas avenidas do cotidiano de nossa realidade política e social na forma de muitas faltas -por exemplo, uma adequada reforma da segurança pública que dê dignidade e segurança não apenas para quem precisa da polícia mas também para quem faz a polícia.
Manifesta-se ainda no ensaio do terceiro round do Código Florestal na Câmara dos Deputados, onde já se anuncia uma espécie de "telecatch" entre o projeto aprovado no Senado e o projeto "fake" radical ruralista, com o intuito de aparentar divergências entre os ruralistas e a base governista.

São muitos os que esperam esse "para depois" passar para serem vistos e respeitados: os atingidos pelos desastres ambientais, os banidos do Pinheirinho (em São José dos Campos, cidade no interior do Estado de São Paulo), que reclamam em nós, e não de nós, uma solução para o vergonhoso êxodo a que são submetidos, as vidas assoladas compulsoriamente pelo crack a reclamarem do Estado mais ação preventiva do que repressão.

Todos precisamos de descanso, de refrigério, de tempo para encerrar ciclos. Mas o Estado, os governantes, as autoridades políticas que recebem da sociedade o nobre mandato de zelar por seu bem-estar, pelo desenvolvimento do país, não têm direito ao descanso do "deixa para depois".
O país, em muitos aspectos, vive um momento excepcional de crescimento, de expansão. Entretanto nós não podemos nos enganar. Não queremos ser como um vagão puxado pelas locomotivas de outras nações.

O Brasil que ainda patina com graves problemas estruturais, que precisa melhorar tanto, por exemplo, na educação, não pode perder tempo.

Insensatez no Pinheirinho - Eduardo Matarazzo Suplicy e Ivan Valente

Os juízes conheciam o despacho que suspendia a reintegração; é importante que acompanhem as arbitrariedades e vejam as consequências de suas decisões


Testemunhas da reintegração de posse do Pinheirinho e participantes das negociações que a antecederam, vimos relatar a marcha da insensatez das autoridades, responsáveis pela violação dos direitos daquela comunidade.

Em 18 de janeiro, com os deputados Adriano Diogo e Carlos Gianazzi, recorremos ao presidente do Tribunal de Justiça, Ivan Sartori, que nos aconselhou a procurar o juiz de falências Luiz Beethoven Ferreira.

Depois de negociação com o síndico da massa falida, Jorge Uwada, e com os seus advogados, foi feito um requerimento de acordo, no qual o próprio juiz lavrou um despacho suspendendo a reintegração de posse por 15 dias.

A juíza Marcia Loureiro foi informada na hora. Ainda no TJ, o juiz Rodrigo Capez, auxiliar direto do presidente do tribunal -o mesmo que, quatro dias depois, acompanhou a ação da PM no Pinheirinho- comprometeu-se a auxiliar na solução negociada.

Suplicy conversou com a secretária nacional de Habitação, Inez Magalhães, sobre o prazo aberto para a negociação. Ela se prontificou a receber o prefeito Eduardo Cury, de São José dos Campos, para acelerar os planos sobre o possível aproveitamento da área.

O senador também falou com o governador Alckmin, que informou que, se o governo federal e a prefeitura chegassem a um entendimento, o governo estadual providenciaria a infraestrutura necessária.
No dia 19, o prefeito Cury foi à Brasília, falou sobre ciência e tecnologia, mas adiou a reunião que teria sobre o Pinheirinho com a secretária nacional de Habitação. No dia 20, visitou Suplicy para falar sobre os entendimentos.

No domingo, 22, às 6 horas da manhã, em uma operação militar preparada, cerca de 2.000 policiais, junto com a guarda municipal, invadiram a área com armas de fogo, gás lacrimogêneo, helicópteros, tratores e viaturas da Rota.

Retiraram os moradores de suas casas, forçando-os a abandonar o local. A operação da PM se expandiu para as áreas vizinhas. Avisados logo cedo, Suplicy se dirigiu ao Palácio dos Bandeirantes, onde dialogou com o governador, e Ivan Valente foi ao Pinheirinho tentar evitar as arbitrariedades que acabou presenciando.

Inúmeras pessoas foram feridas. Uma mulher levou doze pontos na boca; um homem de 70 anos foi agredido em sua cabeça e está até hoje na UTI; outro, conforme imagem de TV, foi brutalmente agredido por golpes de cassetetes; e centenas de pessoas não conseguiram se organizar para retirar os seus bens, em função da truculência da ação policial.

Por exemplo: foi completamente destruída a casa de uma cozinheira e de seu marido, um motorista de ônibus. Eles mantinham, junto à residência, um restaurante informal, com possuía geladeira, fogão, TV, computador e tudo que o casal tinha comprado ao longo de oito anos, por meio de prestações. Não restou nada.

Às 23 horas daquele mesmo dia, uma família moradora do Campo dos Alemães, contíguo ao Pinheirinho, foi vítima de abusos e violências sexuais, cuja denúncia o senador Suplicy levou ao conhecimento do governador Geraldo Alckmin, que nos garantiu apuração isenta e rigorosa de todos os fatos.

É muito importante, também, que os juízes citados acompanhem a apuração desses episódios para que conheçam melhor as consequências de suas decisões.

É fundamental que os três níveis de governo retomem os entendimentos para resolver as carências de moradia e de direitos sociais daquela comunidade. Esse assunto será objeto de audiência pública no dia 23 de fevereiro na Comissão de Direitos Humanos do Senado.

Uma sociedade democrática não pode tolerar ações como as que aconteceram no Pinheirinho. Lá, para devolver a propriedade de quem ignorava a sua função social, a dignidade de milhares foi ofendida. A solidariedade e as respostas ao que foi feito com essas famílias precisam ser exemplares.
 
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY, 70, professor da FGV, é senador pelo PT-SP e copresidente de honra da Rede Mundial da Renda Básica
 
IVAN VALENTE, 65, engenheiro mecânico, é deputado federal pelo PSOL-SP