Ir para o conteúdo



Publicidade

Publicidade


 

Sites de Colunistas

BOA CHANCE

CIÊNCIA

CULTURA

ECONOMIA

EDUCAÇÃO

ELA

ESPORTES

MEGAZINE

MULHER

MUNDO

PAÍS

RIO

RIO SHOW

TECNOLOGIA

VERÃO

VIAGEM

VIVER MELHOR

Busca por
palavra-chave:
Prosa & Verso

A versão digital do suplemento literário de O Globo

prosaonline@oglobo.com.br

Enviado por Guilherme Freitas -
22.2.2014
|
7h00m

Crítico fala sobre realismo e violência nas artes brasileiras

Novo livro de ensaios do crítico Karl Erik Schøllhammer discute a tradição realista e o lugar da violência na literatura e nas artes visuais brasileiras. Nesta entrevista, ele critica o que chama de "cultura do trauma" e comenta as invenções formais e o "realismo afetivo" em obras de autores nacionais

Por Guilherme Freitas

A imagem acima é parte da série “Apagamentos”, da artista plástica mineira Rosângela Rennó. Ela foi criada a partir de fotografias feitas por peritos da polícia no local de um assassinato. O corpo da vítima anônima aparece no canto inferior esquerdo — mas também, em ângulos diferentes, na direita e no alto do quadro, em fragmentos que se misturam a detalhes aparentemente banais (uma cerca velha, um gramado, uma bicicleta largada). Embaralhando os registros da cena do crime, a obra de Rennó coloca o espectador no papel de investigador.

A série de Rennó é um dos trabalhos analisados pelo crítico Karl Erik Schøllhammer em “Cena do crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo” (Ed. Civilização Brasileira). Na coletânea de ensaios, o professor do departamento de Letras da PUC-Rio discute obras de literatura, cinema e artes plásticas produzidas no país nas últimas quatro décadas.

O fio condutor dos textos é uma investigação sobre como, ao abordar a violência das grandes cidades que viveram uma explosão urbana a partir da segunda metade do século XX, a arte nacional se depara ao mesmo tempo com “um desafio” e “um caminho de renovação”. O desafio está em como representar a violência sem apenas “divulgá-la”, escreve o crítico. A renovação vem por meio de autores que procuram evitar esse risco explorando os limites do realismo.

Nascido na Dinamarca e radicado no Rio, Schøllhammer vem acompanhando a produção contemporânea em seus cursos na PUC-Rio, em críticas na imprensa e em livros como “Ficção brasileira contemporânea” (Civilização Brasileira, 2010) e “Além do visível” (7Letras, 2007). Na nova obra, comenta o trabalho de artistas plásticos, cineastas e escritores, com mais ênfase na literatura. Aponta o realismo como “presença em contínua transformação na prosa brasileira”, do brutalismo de Rubem Fonseca a autores como João Gilberto Noll, Ricardo Lísias e André Sant’Anna, nos quais encontra o que define como “realismo afetivo”.

Em entrevista por e-mail, Schøllhammer fala sobre estes e outros autores, como Valêncio Xavier, Dalton Trevisan e Sérgio Sant’Anna. Na ficção dos três, diz, a ironia permite um tratamento radicalmente distinto da violência. O crítico analisa ainda a tradição realista nas artes nacionais e aponta problemas no que chama de “cultura do trauma”, produto da difusão de narrativas que se apoiam no discurso de vítima.

Como você avalia a presença do realismo na produção atual, em comparação a outros momentos da história da literatura brasileira? Há uma retomada do realismo?

Mais do que retomada, vejo na literatura brasileira uma insistência histórica no realismo, e uma rearticulação de suas formas. É possível distinguir a ficção urbana da década de 70, dedicada à expressão direta e oralizada da violência, da Geração 90, que retoma este projeto de denúncia, agora numa síntese do compromisso com a realidade e com um resgate do experimentalismo modernista. Mais recentemente, há uma tendência na prosa de explorar a referência testemunhal na procura de veracidade, tanto na representação crítica da realidade social quanto na retomada de uma fala confessional e autobiográfica mais íntima. O realismo é uma presença em contínua transformação na prosa brasileira, o que a distingue, por exemplo, da literatura hispano-americana, mais inventiva nas formas fabulatórias de exploração dos limites da ficcionalidade.

No livro você fala em “realismo afetivo”. Como define esse conceito? Em que ele difere do realismo “tradicional”?

Tento, com o conceito de realismo afetivo, ampliar a compreensão do realismo descolando-o de seu enraizamento tradicional no romance do século XIX, em que realismo era sinônimo de uma representação literária da realidade histórica sempre sustentada sobre outros discursos (científicos, historiográficos, jornalísticos etc). Em contraponto ao realismo representativo, que se debruça sobre o objeto para torná-lo verossímil para o leitor, o realismo afetivo procura dar conta do que a escrita faz ao encontro desse mesmo objeto. Sublinha, na ficção, os elementos afetados pelo conteúdo, analisando como, simultaneamente, afeta a realidade que absorve em sua própria expressão. Não existe uma distinção rigorosa entre uma ficção representativa e outra afetiva. Trata-se mais de um crivo crítico que nos permite ressaltar certos impactos estéticos da escrita, que obviamente também podem existir no plano da representação.

Poderia comentar exemplos de “realismo afetivo” na literatura brasileira contemporânea?

Em autores como João Gilberto Noll, André Sant’Anna e Ricardo Lísias, essa opção é acompanhada por uma certa suspensão da centralidade da representação, em favor de regras autônomas e rigorosas da realidade em construção. São autores muito diferentes, claro. Têm em comum certa capacidade de corromper ou diluir o confronto tradicional que marcou a crítica literária moderna: entre representação e expressão, imitação e imaginação, ou realismo e criatividade experimental. Os três falam claramente sobre o mundo em que vivemos, até de maneira obsessiva e abertamente neurótica. Entretanto, a realidade desse mundo se confunde não com sua verossimilhança documental, mas com a própria demanda da construção textual. Na prosa de Sant´Anna não são as referências caricatas e os personagens hiperbólicos e sim a repetição compulsiva e o rigor do clichê que, apesar de toda ironia, fazem irromper o real. Já Noll consegue, numa economia narrativa bem diferente, absorver um nível afetivo da relação entre o personagem e seu mundo que nos permite entender a realidade além da dicotomia cognitiva de um sujeito e um objeto. Nos relatos de Lísias, o narrador está sempre aprisionado numa percepção defeituosa da realidade, enquadrada por um olhar tortuoso ou delirante, que tem mais força do que o reconhecimento referencial. A escrita dos três exemplifica de maneira diferente a submissão a uma demanda fabulatória mais forte do que a da narrativa representativa e, ao mesmo tempo, se distancia das vertentes mais ortodoxas do experimentalismo modernista.

Você observa que, ao abordar a violência, um artista lida com o risco de apenas “divulgar a violência”. Como autores brasileiros evitam esse risco?

Quando a violência vira objeto ou tema de um romance, filme ou imagem, a questão política e ética que sempre se impõe para o artista é: como fazê-lo sem reproduzir essa mesma violência? A representação da violência é uma forma de violência se for reduzida à mera imitação. Entretanto, existe na literatura a possibilidade de se aproximar elipticamente aos momentos que fogem da compreensão e, assim, preservar em um não dito o seu cerne enigmático. Ou pode transferir a expressão da violência para registros irônicos, gráficos e satíricos, em que a gravidade do assunto ganha leveza. Valêncio Xavier e Dalton Trevisan são os mestres brasileiros no aproveitamento da violência como matéria-prima. Valêncio tem uma obra que ilustra ironicamente a importância do tema para a história da mídia e para a memória pública brasileira. Dalton aperfeiçoou uma espécie de morfologia fundamental da narrativa em enredos sempre imersos no crime e na violência. E na obra de Sérgio Sant’Anna, a meu ver, encontramos o exemplo mais depurado de uma ficção que cruelmente se expõe aos complexos de dor e desejo.

Falando sobre literatura e política, você diz que hoje “há escritores que apostam na reformulação do compromisso social e insistem numa ficção, frequentemente herdeira do realismo, que possa ter força de intervenção na realidade”. Poderia citar exemplos? Como uma obra de ficção faz esse tipo de “intervenção”?

Acredito que a ficção literária sempre tem potência de intervir na realidade, na medida que amplie ou transforme nossa percepção. No caso da literatura brasileira contemporânea, podemos dar boas vindas a uma escrita que, de modo mais direto, cria uma referência à realidade particular de sua produção e tenta trazer para dentro da construção literária elementos circunstanciais em que uma certa interação entre o processo criativo e a realidade que o provoca ou estimula se faz presente. Esse aspecto é muito claro na chamada “literatura marginal’’, mas também em escritores que, dentro de gêneros mais convencionais, se alavancam sobre o compromisso com a experiência própria.

Outro lado do dilema de como abordar a violência por meio da arte é o que você chama de “cultura do trauma”. Quais são as principais características desse fenômeno, que você critica no livro, e como ele se manifesta na arte contemporânea?

O trauma ganhou centralidade a partir das leituras e releituras importantes de narrativas do Holocausto iniciadas na década de 80. Rapidamente se popularizou no cinema e na mídia e tornou-se, nas palavras do filósofo Jacques Rancière, a “ficção psicanalítica preferida do nosso tempo”. Também no Brasil, o trauma é central nos relatos e testemunhos de experiências sociais e pessoais extremas que ganharam espaço na literatura, tanto na ficção quanto no documentarismo, a partir da década de 90. Entretanto, hoje há uma banalização do trauma, uma “traumatofilia” — a vontade de se colocar na posição de vítima —, que se tornou a forma heurística preferida de narrar o passado. Caracteriza-se por uma procura do desastre inaugural (do qual todos de alguma maneira somos parte), que já não é o limite de toda experiência e identidade e sim seu ponto de partida. Ao construir ficcionalmente uma figura autobiográfica vítima desse trauma, a narrativa remete metonimicamente ao trauma da História. Isso acontece, por exemplo, em “Diário da queda”, de Michel Laub, que se arma em torno de um narrador cujo avô foi vítima do Holocausto e cuja história de algum modo reflete a história do personagem. Aqui, a apropriação da chave narrativa do testemunho torna-se uma encenação de autovitimização que procura dar algum sentido à existência e em relação à qual o intimismo confessional adquire uma nova autoridade. Ao mergulhar no inexpressável da pequena dor, constrói-se uma relação metonímica com a dor em sua máxima e inimaginável realidade, que sugere uma espécie de comunidade perversa autorizando a pequena voz na ausência da grande.

No livro você discute exemplos retirados da literatura, do cinema e das artes plásticas. Há pontos em comum na maneira como a violência é tratada nas diferentes artes?

O livro procura colocar na mesma perspectiva de leitura uma análise do tema da violência em diferentes expressões artísticas para compreender sua importância na cultura brasileira. As diferenças são grandes, é claro. Em comum, entretanto, vejo uma tentativa na literatura, no cinema e nas artes visuais de se expor à violência, aproximar-se dela para, de alguma maneira, conseguir lidar melhor com um fenômeno que às vezes escapa à compreensão, ao mesmo tempo que determina de modo extremo a realidade em que aparece.

Como as artes visuais contribuem para o debate sobre realismo e violência no período que você analisa?

A obra de Rosângela Rennó funcionou como exemplo emblemático e fértil para entender um movimento maior da estética contemporânea que, na década de 90, foi caracterizado pelo crítico de arte Hal Foster como “o retorno do real”, enfoque bastante repisado e do qual procuro me afastar criticamente. Foster identificou o privilégio dado à realidade expressa em seus efeitos traumáticos. Na literatura brasileira, esse tipo de abordagem ofereceu a possibilidade de entender o privilégio dado ao testemunho diante de uma realidade urbana violenta e inumana. No entanto, meu interesse foi identificar, a partir da ótica forense, um afastamento posterior desta estética do choque, numa sensibilidade que acentua o resgate dos restos e enfoca o próprio apagamento dos indícios desse encontro. Ou seja, seguir um olhar legista que já não dá tanta atenção aos testemunhos subjetivos da história mas ressalta a materialidade do que restou dela como um arquivo a ser explorado. Podemos perceber essa mudança na diferença entre duas obras de Rennó: “Atentado ao poder”, de 1992 [feita a partir de fotos de pessoas assassinadas publicadas na imprensa], e “Apagamentos”, de 2005 [com imagens produzidas pela polícia em cenas de crime]. O título do livro remete a essa vontade de entender por que, no contemporâneo, lidamos com a realidade como se fosse a cena de um crime? Que tipo de compreensão da História reflete esse interesse? O que estamos produzindo quando lidamos com os acontecimentos na insistente tentativa de resgatar sua realidade da imersão na mídia e na tecnologia representativa? A abordagem forense tem ainda a vantagem de fornecer um método que desafia a fronteira entre as artes visuais e textuais, pois, assim como o legista lê o visível na cena do crime, sua atividade também é profundamente retórica ao dar voz a objetos apresentados no fórum. Tentei transitar entre a literatura e as artes visíveis no mesmo intuito de tensionar o legível ao visível.


Enviado por O Globo -
22.2.2014
|
6h55m

Entre o Rio e Niterói, a ponte-sonho de Samuel Rawet



Escritor e engenheiro idealizou, em 1963, um projeto mais humanizado de ligação entre Rio e Niterói, com mirantes e via para pedestres

Por Graça Ramos*

Imagine, leitor, uma ponte entre Rio e Niterói com quiosques envidraçados, caminho para pedestres cruzarem o oceano, pistas para carros e outra para trem de passageiros, tipo monoway. A estrutura foi idealizada, em 1963, pelo escritor e engenheiro calculista Samuel Rawet (1929-1984) e se torna oportuno revisitá-la quando a Rio-Niterói completa 40 anos. Quase desconhecido, o projeto desenha uma paisagem imaginária mais conectada com a contemporaneidade urbana do que a obra construída no início dos anos 1970 para interligar as duas cidades.

Judeu polonês que desembarcou criança no Brasil, Rawet se tornou conhecido como inovador do conto brasileiro e ensaísta. Dono de dicção seca, com uma prosa de cortes rápidos e centrada em temas como imigração, identidade e homossexualidade, somente aos poucos começa a ser reconhecido como personagem importante para a história da moderna arquitetura brasileira. Ao lado de Joaquim Cardozo, engenheiro calculista e também poeta, ele ajudou a concretizar os traços flutuantes de Oscar Niemeyer para Brasília em período áureo de nossa democracia.

A ponte de Rawet, da qual até agora só conhecemos os croquis e o texto de apresentação, possibilita refletir sobre as limitações da ponte erguida durante a ditadura militar, que hoje enfrenta sérios problemas de tráfego. Embora não detalhado, o projeto do engenheiro-ficcionista se ancora no ideário modernista com o uso do concreto armado e do vidro. Também se faz pós-moderno, pois, preocupado em atender a diferentes públicos, leva em conta a integração de variados sistemas de transporte cotidiano.

Naqueles anos iniciais de Brasília, quando Rawet comentava com companheiros engenheiros e arquitetos sobre a “ponte de vidro” — era assim que os colegas se referiam ao projeto —, ele levantava descrenças. Desconfianças que aumentaram quando desordens psíquicas do engenheiro tornaram-se flagrantes. Mas ele, homem que passava até 18 horas calculando, entretido com catenárias, elipses e tangentes, e nunca teve nenhuma de suas obras erguidas questionada, assegurava que o projeto era viável.

A ponte seria construída em dois níveis com estrutura tubular, vazada. No andar superior, teria quatro pistas para automóveis e caminhões, “e possivelmente algum sistema de transporte que venha a ser introduzido com o tempo, entre nós, monoway”, conforme escreveu. A plataforma inferior seria destinada a pedestres ou para veículo especial, tipo carro-turismo. Ao longo dela, haveria, de 500 em 500 metros, áreas destinadas a cafés. Esses “cafés-mirantes” seriam instalados com vista tanto para o alto mar, como para o interior da Baía de Guanabara.

Ao pensar a mobilidade urbana incluindo nela o deslocamento feito com os recursos do corpo — poderíamos pensar também na pedalada, afinal ciclovias são cada vez mais atuais —, Rawet propõe indiretamente nova política para a subjetividade e, por consequência, para a paisagem das cidades. A preocupação com os pedestres explica-se em parte por ser ele, à maneira de Baudelaire (1821-1867), grande adepto das caminhadas. Nos anos 50/60, o escritor-engenheiro domina a paisagem carioca, andando obsessivamente, cruzando-a a pé. Depois, se muda para Brasília, onde também será andarilho, mas continua a se deslocar para o Rio com frequência.

Em um desses passeios, começa a desenhar a ponte. “A ideia definitiva da ponte nos surgiu durante uma caminhada pela Praia do Flamengo, Morro da Viúva e Enseada de Botafogo”, conta ele no texto de apresentação, publicado na revista “Módulo”, em junho de 1963. Sua ideia leva em conta o resultado visual da interferência do concreto na paisagem. Segundo ele, a ponte não deveria alterar o contorno interno, “nem ferir com a rigidez das estruturas habituais a linha do horizonte”.

A ponte seria construída na entrada da Baía de Guanabara, que é o local da menor distância a ser vencida. Basicamente, sairia da Fortaleza de São João, na Urca, passaria pela Ilha das Lajes e terminaria na Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói. Estaria equilibrada por apenas três grandes estruturas de sustentação, cada uma delas formada por oito pilares. Apoiada nelas, a uma altura de 150 metros sobre a linha d’água, se montaria a estrutura tubular de dois andares.

A altura permitiria a passagem sob ela de qualquer tipo de embarcação. Mas, oriundo de um mundo em conflito bélico, a Europa dos anos 30, Rawet chegou ao requinte de refletir no texto sobre a necessidade de, em caso de um ataque à ponte, as suas várias partes poderem ser autodestruídas, de maneira a não inviabilizar a passagem dos navios da Marinha.

Homem criado entre culturas, a ideia de pontes lhe era cara. Tanto que, anos depois, desenhou outra estrutura dessas para interligar a Asa Norte ao Lago Norte, sobre o Lago Paranoá, em Brasília. Projeto sem a mesma força poética daquele imaginado para a paisagem carioca, a obra não foi até agora construída. Essa ligação é reivindicada por parcela dos habitantes que circulam entre as duas regiões (em Brasília, não se fala em bairros).

Recuperado do esquecimento, o projeto carioca de Rawet nos leva a perguntar qual paisagem afetiva teria sido desenhada por aqueles que habitam e visitam Rio de Janeiro e Niterói se tivesse sido erguida a ponte-sonho do homem que, em linguagem marítima, proclamava que o humano se define no que “tem de mais alto e belo quando levanta a âncora e iça as velas do sonho”. E quem foi que disse que um dia não haverá uma ponte-mirante a unir as duas cidades?

*Graça Ramos é doutora em História da Arte pela Universidade de Barcelona e autora de “Samuel Rawet: soledad sobre soledad”, em “Los Malditos”, organizado por Leila Guerreiro (Ediciones Universidad Diego Portales, 2011).


Enviado por O Globo -
22.2.2014
|
6h50m

Stuart Hall: a favor da diferença



Sociólogo e um dos principais teóricos do multiculturalismo, morto este mês, refletiu sobre a diáspora negra sem se prender a correntes teóricas

Por Liv Sovik

Talvez Stuart Hall gostasse de saber que falar dele logo depois de sua morte é participar de uma polifonia bakhtiniana, um conjunto de vozes diferentes que falam sobre ele, o que ele fez e disse, o impacto que teve. Minha homenagem favorita, no momento, é um trecho da nota de óbito de David Morley e Bill Schwarz, seus amigos e ex-alunos. Publicada no site do “The Guardian”, a nota foi a matéria mais lida do jornal no dia da morte do professor, teórico e ativista, do mestre e maître-à-penser. O texto termina assim:

“Quando apareceu no programa de rádio Desert Island Discs, Hall falou de sua paixão duradoura por Miles Davis. Explicou que a música representou para ele o som do que não pode ser, ‘the sound of what cannot be’. O que era sua vida intelectual, senão o esforço, contra todos os obstáculos, para fazer ‘o que não pode ser’, viver na imaginação?”

Em “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, Hall escreveu que “o povo da diáspora negra tem, em oposição a tudo isso [a cultura logocêntrica, da escrita], encontrado a forma profunda, a estrutura profunda de sua vida cultural na música”. Hall era duplamente diaspórico, descendente de povos deslocados pela história da colonização e da escravidão e migrante da Jamaica à Inglaterra. Ele se pronunciou em textos, como se fosse um Miles Davis: tocava e colaborava com seus parceiros, livremente solando em sintonia e contradição com seu contexto, em um som complexo, difícil de ouvir na primeira vez, mas de uma liberdade admirável a cada nova audição.

No Brasil, em 2000, um discurso de impacto

Hall elaborava suas ideias através da construção de tensões — já descrevi esse processo na apresentação da coletânea de seu trabalho, “Da diáspora: identidades e mediações culturais” (Ed. UFMG, 2003). Em “Que ‘negro’...?”, disse: “a pergunta sobre identidade negra a que se refere o título do artigo reverte para a consideração crítica da etnicidade dominante; a identidade negra é atravessada por outras identidades, inclusive de gênero e orientação sexual. A política identitária essencialista aponta para algo pelo qual vale lutar, mas não resulta simplesmente em libertação da dominação. Nesse contexto complexo, as políticas culturais e a luta que incorporam se trava em muitas frentes e em todos os níveis da cultura, inclusive a vida cotidiana, a cultura popular e a cultura de massa. Hall ainda acrescenta um complicador, no final do texto: o meio mercantilizado e estereotipado da cultura de massa se constitui de representações e figuras de um grande drama mítico com o qual as audiências se identificam, é mais uma experiência de fantasia do que de autorreconhecimento”.

Difícil seria reduzir o caminho desse pensamento à dialética. Ao invés, podemos pensar que a maneira de Hall elaborar ideias tem uma estrutura musical, em que tema e variação podem ser interrompidos por improvisações, onde o solo se destaca de um coro de vozes trazidas de uma bibliografia entendida como fonte de forças a serem chamadas para entender os objetos — ao contrário do hábito acadêmico de criticar negativamente os antecessores sob pena de parecer submisso a eles. Talvez seja por sua maneira de sentir e elaborar ideias a partir de uma estrutura profunda musical, que também diz respeito à vida cultural brasileira, que Stuart Hall teve tanta ressonância aqui.

A vinda a Salvador em julho de 2000, a convite da diretoria da Associação Brasileira de Literatura Comparada, teve por trás uma preocupação em destacá-lo como intelectual negro de impacto internacional na cidade negra, de cultura negra, marcada pela opressão racista, em um momento em que havia certa romantização da Bahia como berço da cultura negra brasileira. Hall não deixou por menos: fez uma conferência em que concebeu a colonização não como um efeito da hegemonia europeia, mas como acontecimento histórico mundial, envolvendo “expansão, exploração, conquista, colonização, escravidão, exploração econômica e hegemonia imperial”, através do qual a Europa “se refez” a partir de 1492. Essa concepção tem os efeitos de deslocar o foco histórico da Europa moderna para as periferias globais; deixar de celebrar a diversidade cultural da periferia como fruto profícuo da globalização e entendê-la como produto da recusa e persistência de povos distantes da metrópole; e identificar a modernidade ocidental não com o “Reino Universal da Razão”, mas com a dimensão vinculante de seu poder e capacidade, em consequência, de gerar diferenças. Em segundo lugar, identificou no racismo (e nos discursos sobre gênero e sexualidade) a exceção à regra pela qual a diversidade é entendida como uma criação cultural: esses discursos conseguem naturalizar mais as diferenças. Assim, nessa nova dança de tese e contratese, variação e invenção, a conferência de Hall trazia o tema de volta às responsabilidades políticas que, para ele, eram primordiais.

A coletânea de textos de autoria de Hall, “Da diáspora”, foi um desdobramento do congresso e desde que saiu, em 2003, se tornou um best-seller acadêmico. Retomo a afirmação anterior como refrão: talvez seja porque as temáticas que trabalhava a partir de meados dos anos 80 dizem respeito à vida cultural brasileira que Stuart Hall teve tanta ressonância aqui, pois a partir dessa época ele se preocupou explicitamente com questões identitárias negras. Para ele, afirmar o valor de uma “África” diaspórica, a identidade negra diaspórica, resumida na palavra “África”, foi importante como fator de “descolonização” das “mentes de Brixton e Kingston”, tanto para jovens negros ingleses como jamaicanos. Essa “África” tornou pronunciável o “segredo culposo da raça [...] o trauma indizível do Caribe”, e marcou todos os movimentos sociais e ações criativas do século XX no Caribe. Ao mesmo tempo, Hall era um crítico implacável do fundo supostamente biológico das diferenças de — citou W.E.B. DuBois — “cor, cabelo e osso”. Para ele, o corpo é lido como se fosse um texto, e sua “racialidade” pode significar coisas diferentes dependendo das circunstâncias igualmente diferentes.

Um igualitarismo utópico marcava a a relação com seus próprios outros: pessoas de outras identidades raciais, mulheres, homossexuais, estudantes, jovens colaboradores nas instituições que dirigia, organizadoras de livros. Nunca deixou de lembrar as analogias entre a ideia que a identidade racial se baseia em diferenças genéticas e a de que os papéis sociais subalternos das mulheres são determinados biologicamente. Estava sempre aberto a questões que não lhe afetavam diretamente. Uma vez me perguntaram se Hall era gay: no Brasil, onde a crítica à discriminação tantas vezes se faz somente por suas vítimas, era impossível imaginar um apreciador sem rodeios da perspectiva queer, como ele demonstrou ser em diversos textos, a começar por “The Spectacle of the ‘Other’”, que não fosse gay.

Para Hall, que não queria discípulos, a vida intelectual se vivia pelo combate “mano a mano” com os textos e figuras, não pelo pertencimento aos cortes de um teórico ou outro. Conversar com ele era entrar em um mundo em que fazer reflexões que tivessem alguma repercussão política era o objeto, o problema, o jogo a ser jogado. Acolhia todos dispostos a entrar nesse jogo, a pensar, a tentar entender, projetar algo. O bom humor e o afeto — e também o tom combativo de um discurso da tradição oral, em que o interlocutor está sempre presente, mesmo que implicitamente —, transparecem nos seus textos e talvez isso diga respeito à vida cultural brasileira e seja mais um motivo pelo qual Stuart Hall teve tanta ressonância no Brasil.

Valorização do outro

Em meio a tantas homenagens a Hall, é possível que a melhor seja não entrar em consensos apressados a respeito de seu pensamento — por exemplo, entendendo de forma banal, como convivência pacífica, o multiculturalismo do qual, se diz, ele é pai. Quando alguém lhe perguntou, em um simpósio sobre cultura, globalização e o sistema-mundo, realizado no estado de Nova York em 1989, se existia algo que pudesse ser chamado de “humanidade”, ele respondeu que não. Quando se fala em humanidade ou no ser humano que “todo mundo é, no fundo”, o que está acontecendo na prática, disse, é um apagamento das diferenças em nome de uma inclusão hierárquica, que interessa a alguns. A esperança, disse, é que nesse momento, de naturalização da hierarquia social feita em nome da humanidade universal, algo escape.

A esperança de Hall que o Outro escape de sua redução ao Mesmo e ao nome que o sistema de poder lhe dá, assim como a tradução dessa esperança em um respeito pelas pessoas, diferentes entre si: tudo isso fez parte de seu carisma, de sua capacidade de gerar sentimentos de amizade e, certamente, de sua contribuição com imagens do que (não) pode ser. Arauto da possibilidade em aberto — sempre insistia que os resultados de processos históricos não eram determinados de antemão —, seu pensamento era tão complexo quanto o som de Miles Davis. Esse pensamento, motivado pela vontade de um futuro menos cruel, justo, diz respeito à vida social e cultural brasileira: talvez por isso também Stuart Hall teve tanta ressonância aqui.

*Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de “Aqui ninguém é branco”


Enviado por Guilherme Freitas -
15.2.2014
|
6h55m

Elio Gaspari: nova edição de obras sobre ditadura tem material inédito

Dez anos depois de lançados, quatro livros do jornalista Elio Gaspari sobre o regime militar ganham edições atualizadas e versões digitais com áudios, vídeos e novos documentos, que lançam luz sobre arquivos de Golbery e Geisel

Por Guilherme Freitas

Lançados entre 2002 e 2004, os quatro livros do jornalista Elio Gaspari que retratavam a ditadura “envergonhada”, “escancarada”, “derrotada” e “encurralada” surgiram de uma pergunta que o perseguia pelo menos desde os anos 1980: por que os generais Ernesto Geisel, chefe do Gabinete Militar de Castello Branco entre 1964 e 1967 e presidente de 1974 a 1979, e Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) em 1964 e mais tarde chefe do Gabinete Civil de Geisel, tendo ajudado a erguer o regime, decidiram desmontá-lo, ainda que de forma “lenta, gradativa e segura”?

Nas duas décadas em que se dedicou a responder a essa pergunta, Gaspari apoiou-se num amplo e valioso conjunto de fontes. Além de um acervo pessoal de entrevistas e documentos, recebeu de Golbery, em 1985, 25 caixas com mais de 5 mil papéis que estavam mofando na garagem do oficial reformado. Colheu dezenas de depoimentos de Geisel, em conversas semanais de 90 minutos, gravadas entre 1994 e 1996. E teve acesso aos diários de seu amigo Heitor Aquino Ferreira, secretário de Golbery entre 1964 e 1967, e de Geisel entre 1971 e 1979. A partir desse material que descortinava os bastidores do poder, compilou uma base de pesquisa de 15 mil itens, e com eles construiu a mais minuciosa crônica do regime militar.

Leia mais: Edições atualizadas trazem menções a Dilma e Comissão da Verdade

Leia mais: Veja novos documentos dos livros de Gaspari sobre a ditadura

Colunista do GLOBO e da “Folha de S.Paulo”, Gaspari lança agora uma nova edição, pela Intrínseca, dessa série de livros. Ela será concluída pelo quinto volume anunciado há tempos, e previsto para ficar pronto em dois anos, sobre a reta final do governo Geisel e as “três explosões” do mandato de João Baptista Figueiredo, “a da economia, a do Riocentro e da campanha das Diretas Já”, anuncia o autor na introdução. Os quatro primeiros títulos chegam às livrarias dia 19, em versões atualizadas com dados e imagens garimpados nos últimos dez anos. O lançamento será marcado por um debate às 19h30m, na Travessa do Leblon, com os historiadores Daniel Aarão Reis e Marly Vianna e mediação de Livia de Almeida, editora da coleção.

No mesmo dia serão lançadas as versões em e-book das obras, que tornam ainda mais abrangente a narrativa de Gaspari. Enriquecidas por centenas de documentos, áudios e vídeos, as edições digitais permitem que o leitor vasculhe parte dos arquivos do autor. Explorando novas tecnologias, oferecem uma experiência de leitura inédita no Brasil — complementada pelo site www.arquivosdaditadura.com.br, que vem sendo alimentado com material de Gaspari desde o início do ano e receberá 50 novos documentos na próxima semana.

Os e-books trazem itens que não estavam nas edições originais. Os dois primeiros volumes, que cobrem o período que vai do golpe de 1964 até o fim da Guerrilha do Araguaia, em 1974, reúnem papéis que ilustram o recrudescimento da repressão e das torturas, o mergulho de parte da esquerda na luta armada, as intrigas palacianas requentadas a cada sucessão presidencial.

A edição digital de “A ditadura envergonhada”, por exemplo, traz um manuscrito em que Geisel comenta uma inspeção feita em quartéis do Rio, São Paulo e Nordeste em setembro de 1964, a mando de Castello Branco. Dizia ter encontrado indícios de “maus-tratos, sevícias e torturas” cometidos na “fase inicial da Revolução”, mas que “tinham cessado aquelas anormalidades de caráter arbitrário e desumano”. No mesmo e-book, o capítulo sobre a reunião convocada pelo presidente Costa e Silva em dezembro de 1968 para definir o AI-5, chamada de “missa negra” por Gaspari, ganha áudios com intervenções de autoridades presentes. A conhecida frase do então ministro do Trabalho Jarbas Passarinho — “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência” — está na versão impressa, mas torna-se mais emblemática ouvindo-se o tom decidido com que foi pronunciada.

Já na versão digital de “A ditadura escancarada” é possível consultar as 14 folhas datilografadas do documento conhecido como “Quedograma”, no qual militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) buscavam, em 1973, reconstituir as prisões e mortes de seus integrantes (que se referiam a elas como “quedas”). Nela estão também 19 páginas de um estudo de 1975 do Centro de Informações do Exército (CIE) sobre os rumos da “Revolução de 1964”. De forma elíptica, refere-se às torturas e demais abusos cometidos pelo regime como “ações que qualquer justiça do mundo qualificaria de crime”.

O terceiro e o quarto livros focam no governo Geisel, acompanhando a escolha de seu nome por Médici, a sucessão em meio à crise internacional do petróleo e à instabilidade do “milagre” econômico, e seu comportamento diante da escalada de truculência nos “porões”. “A ditadura derrotada” revelou o diálogo de 1974 em que Geisel, informado por seu futuro ministro do Exército Dale Coutinho (que morreu pouco depois de assumir o cargo) sobre torturas a presos políticos, disse que “esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”. “A ditadura encurralada” reconstituiu a demissão, em 1977, do substituto de Dale no cargo, Sylvio Frota, representante da “linha dura” e adversário da “distensão” promovida pelo governo.

Centrados nas trajetórias de Golbery e Geisel, esses dois volumes fazem mais uso dos arquivos do fundador do SNI e das entrevistas com o ex-presidente. Golbery aparece como conspirador inveterado e autor de discursos e manifestos empolados, conhecido por mil apelidos entre amigos e detratores (Feiticeiro, Bruxo, Satã, Satânico Dr. Go, Corcunda, Corca, Hiena Caolha). Sua “medonha caligrafia” está estampada em vários manuscritos nos e-books. Geisel é retratado como militar de mentalidade autoritária, que desdenhava “esse negócio de povo”, mas rejeitava ainda mais a anarquia nas Forças Armadas. Nas edições digitais, sua voz surge várias vezes, como numa declaração sobre o caráter “secundário” do “espírito democrático”.

As novas edições — disponíveis para iPad, Kindle, Kindle Fire, Kobo e tablets com sistema Android — mobilizaram uma equipe de 20 pessoas, da pesquisa à digitalização e desenvolvimento de ferramentas que facilitam a navegação pelo texto. As mais de 2 mil notas de rodapé foram transformadas em janelas que abrem e fecham com um toque. Links permitem que se retorne ao ponto de leitura depois de acessar documentos, áudios e vídeos.

Tudo ao gosto de Gaspari, fã de primeira hora dos e-books. Recentemente, doou grande parte da “Biblioteca Malan”, coleção de 6 mil volumes que mantinha em um apartamento em São Paulo (o nome era homenagem irônica ao ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso que, sustentando a paridade entre real e dólar, permitiu que o autor montasse o acervo). Guardou apenas os 500 títulos sobre a ditadura que consultou para suas obras. Novas aquisições vão direto para leitores eletrônicos, que, em coluna de 2009 no GLOBO, ele já saudava como um tipo de “engenhoca que fará a alegria de quem quer atravessar a fronteira dos meios de comunicação impressos”.


Enviado por Guilherme Freitas -
15.2.2014
|
6h50m

Elio Gaspari atualiza obras sobre ditadura com menções a Dilma e CNV

Por Guilherme Freitas

Além dos avanços tecnológicos, as novas edições do ciclo de Elio Gaspari sobre a ditadura, publicadas pela Intrínseca, foram atualizadas com o que o autor considerou as descobertas mais relevantes sobre o tema nos últimos dez anos. Há apenas uma menção direta à Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012. É uma frase do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI em São Paulo de 1970 a 1974, em depoimento de maio de 2013: “Quem devia estar sentado aqui é o Exército brasileiro, não eu”. A declaração aparece em “A ditadura escancarada” como exemplo do rancor da “linha dura” contra oficiais que, depois do regime, fingiram não saber das torturas nos “porões”.

Leia mais: Novas edições têm áudios, vídeos e documentos inéditos

Leia mais: Veja novos documentos dos livros de Gaspari sobre a ditadura

Uma explicação possível para a referência solitária está numa coluna de Gaspari publicada no GLOBO em dezembro. Ele escreveu que as Comissões da Verdade, ao considerarem hipóteses como a de que os ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek teriam sido mortos, “flertam perigosamente com a síndrome de Virgínia Lane” (a Vedete do Brasil, que morreu essa semana, dizia ter testemunhado o assassinato de Getúlio Vargas porque estava na cama com ele).

No mesmo texto, porém, Gaspari disse que a CNV produziu ao menos uma “revelação espetacular”: a prova de que o deputado Rubens Paiva, “desaparecido” depois de ser preso em casa, em 1971, esteve no DOI do Rio em janeiro daquele ano. “Enquanto os comandantes militares não reconhecerem que se praticaram torturas nas suas masmorras, essas comissões podem fazer bem”, escreveu.

“A ditadura envergonhada” e “A ditadura escancarada” ganharam menções à presidente Dilma Rousseff, que, na época das primeiras edições, era a pouco conhecida ministra de Minas e Energia de Lula com um passado na luta armada. A edição digital do segundo título traz um documento de 1969 que prova que o Exército sabia o codinome usado por ela (Wanda) quando militava no Comando de Libertação Nacional (Colina). Gaspari espalhou pelos dois primeiros livros outras referências à militância de Dilma no Colina e na VAR-Palmares. Narrou também a história de uma militante com trajetória parecida com a da presidente, mas que terminou assassinada.

JFK cogitou intervenção no Brasil

O primeiro volume ganhou ainda informações da ata de uma reunião do Conselho de Segurança Nacional em 11 de julho de 1968, divulgada em 2009. O documento mostra o presidente Costa e Silva comandando uma “sessão consultiva e vaga”, na qual por um lado tateava-se decretar estado de sítio ou um novo Ato para conter a “contrarrevolução”, e por outro pregava-se respeito ao “livrinho, (...) a Constituição”. Em dezembro foi editado o AI-5.

“A ditadura encurralada” teve o capítulo sobre o diálogo entre o presidente Geisel e o ministro do Exército Sylvio Frota, em 1975, depois da morte do jornalista Vladimir Herzog no DOI-CODI, modificado desde o título, que passou a ser “Merda! Merda!”. Em seu livro de memórias lançado em 2006, “Ideais traídos”, Frota diz que Geisel o recebeu em seu gabinete batendo na mesa e vociferando essa expressão. Gaspari incluiu em seu relato sobre o encontro a versão do general demitido em 1977.

O jornalista fez menções a mais livros lançados desde 2004, como, entre outros, “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mário Magalhães, e “Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia”, de Leonencio Nossa, lançados pela Companhia das Letras.

Alguns documentos já haviam sido adiantados no site <www.arquivosdaditadura.com.br>. O primeiro foi o áudio de uma reunião do presidente americano John Kennedy com a cúpula de seu governo, em 7 e 8 de outubro de 1963, na qual se discutiu a possibilidade de depor João Goulart. Na presença do embaixador dos EUA no Brasil Lincoln Gordon, Kennedy pergunta se em alguma situação seria “aconselhável que façamos uma intervenção militar” no país. Gaspari pretende alimentar o site com ao menos um documento novo por semana.


Enviado por O Globo -
15.2.2014
|
6h45m

Veja novos documentos dos livros de Elio Gaspari sobre a ditadura

Os quatro livros do ciclo de Elio Gaspari sobre o regime militar - "A ditadura envergonhada", "A ditadura escancarada", "A ditadura derrotada" e "A ditadura encurralada" - voltam às livrarias dia 19, pela Intrínseca, em novas edições atualizadas com dados e imagens garimpados nos últimos dez anos. No mesmo dia serão lançadas as versões em e-book das obras, enriquecidas por centenas de documentos, áudios e vídeos, que permitem ao leitor vasculhar parte dos arquivos que serviram de base para o trabalho do jornalista.

Leia mais: Novas edições têm áudios, vídeos e documentos inéditos

Leia mais: Edições atualizadas trazem menções a Dilma e Comissão da Verdade

Veja abaixo alguns dos documentos e vídeos incluídos nas novas edições:

- Informe do Centro de Informações do Exército de 16 de junho de 1975

O documento de 19 páginas, incluído no e-book de "A ditadura encurralada", é um estudo do CIE sobre os rumos da "Revolução de 1964". O trecho destacado refere-se às torturas e demais abusos cometidos pelo regime como “ações que qualquer justiça do mundo qualificaria de crime”. E pergunta se a "abertura" pretendida pelo presidente Geisel não "viria a desmoralizar chefes revolucionários" e "provar ao menos o patrocínio efetivo das Forças Armadas e governos" a essas práticas.

- Manuscrito de Ernesto Geisel sobre sua viagem para averiguação de denúncias de tortura em quartéis em 1964

Chefe do Gabinete Militar do presidente Castello Branco, Geisel foi enviado em outubro de 1964 para investigar a prática de tortura em unidades militares de Rio, São Paulo e Nordeste. Três anos depois, redigiu um texto, incluído no e-book de "A ditadura envergonhada", em que afirma ter encontrado indícios de “maus-tratos, sevícias e torturas” cometidos na “fase inicial da Revolução”. Mas diz que na época de suas visitas “tinham cessado aquelas anormalidades de caráter arbitrário e desumano”.


- Relação feita em 1969 pelo Exército com codinomes de integrantes das organizações Colina, VPR e VAR-Palmares

O e-book de "A ditadura escancarada" traz um documento de 1969 que prova que o Exército sabia o codinome usado por Dilma Rousseff (Wanda) quando militava no Comando de Libertação Nacional (Colina). Na época das primeiras edições, Dilma era a pouco conhecida ministra de Minas e Energia de Lula com um passado na luta armada. Nas versões atualizadas dos dois primeiros livros da série, Gaspari incluiu referências à militância da presidente no Colina e na VAR-Palmares.


- Documento do Gabinete Militar sobre discurso de Geisel em 30 de dezembro de 1974, com comentários do presidente

O e-book de "A ditadura derrotada" traz trechos de uma análise crítica produzida pelo Gabinete Militar de Geisel sobre um discurso do presidente. As folhas abaixo trazem comentários anotados por Geisel nas margens. A observação de que ele "não sensibilizou positivamente a massa popular" é cortada secamente : "Não era esse o objetivo (...) Não sou Getúlio, nem Médici". E a crítica à sua "falta de comunicação popular", que teria provocado "desinteresse" pelo discurso, é rebatida com ironia: "Vamos contratar Lacerda!"

 

- Posse de Ernesto Geisel, em 1974

 

 


 

- Visita de Médici aos EUA, em 1971

 

 

 

 


Enviado por Leonardo Cazes -
15.2.2014
|
6h40m

Daniel Aarão Reis: As conexões civis da ditadura brasileira



Em nova obra, professor da UFF analisa a participação da sociedade durante a ditadura e defende a discussão sobre a tradição autoritária brasileira


Por Leonardo Cazes

No ano em que se completa o cinquentenário do golpe que derrubou o presidente João Goulart da presidência e deu início à ditadura, Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende que é preciso aprofundar o debate sobre as conexões civis do regime militar. Em seu novo livro, “Ditadura e democracia no Brasil” (Zahar), ele avalia algumas das relações entre a sociedade e as Forças Armadas, além de propor uma diferenciação entre ditadura e estado de direito autoritário. Em entrevista ao GLOBO, Aarão Reis diz que, sem o conhecimento e a discussão sobre os fundamentos sociais e históricos da ditadura, não será possível avançar.

Quais as principais mudanças e descobertas, nos últimos dez anos, no campo dos estudos sobre a ditadura militar brasileira?

A grande novidade nessa última década é que se fortaleceu uma corrente crítica à principal tendência da historiografia sobre o período. A história da ditadura que ainda permanece hegemônica no Brasil, encarnada em grande parte pelo Arquivo Nacional e em certa medida pela Comissão Nacional da Verdade, se recusa a considerar a ditadura nas suas complexas relações com a sociedade brasileira. Imagina que a ditadura foi imposta de cima para baixo e enfatiza, quase que exclusivamente, a resistência à ditadura. Ulysses Guimarães, por exemplo, é uma grande figura da resistência democrática, foi chamado de “Senhor Diretas” e presidiu a Constituinte. Mas pouca gente sabe que ele foi um dos líderes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade e apoiou o golpe de 1964. Ele fez parte da comissão do Congresso que tentou elaborar o primeiro Ato Institucional, mas os militares não gostaram e assumiram a responsabilidade. A própria CNBB, que exerceu um papel importante na divulgação de violações contra os direitos humanos durante a ditadura, apoiou o golpe. D. Paulo Evaristo Arns era bispo de Petrópolis e foi apoiar as tropas do General Olímpio Mourão Filho que desciam de Minas para o Rio. É preciso estudar as complexas relações que se estabeleceram. Houve muita colaboração, cumplicidade, zigue-zagues. Juscelino Kubitscheck, sobre quem até hoje há suspeitas de que foi assassinado pelos órgãos de segurança, apoiou o golpe, mesmo que com reservas. Ele cabalouo voto para a eleição de Castello Branco no Congresso. Tudo isso é silenciado. Quem sabe, não fala no assunto.

É por isso que no seu livro recém-lançado, “Ditadura e democracia no Brasil”, o senhor enfatiza a participação civil tanto no golpe quanto no regime?

Não é à toa que cada vez mais gente fala em uma ditadura civil-militar, não apenas uma ditadura militar. A noção de uma ditadura militar foi criada logo depois do golpe pelas esquerdas derrotadas. Era um recurso político legítimo na época, porque a gente queria isolar a ditadura. Fingíamos ignorar os apoios que ela tinha no mundo civil e a designávamos de militar. Essa ideia inicial, politicamente legítima, vai sendo incorporada por todos que migram de uma posição de tolerância ou cumplicidade ativa com a ditadura para as oposições. Vai haver uma migração maciça, principalmente a partir de 1973, 74, de líderes do regime e de segmentos sociais que encontraram na expressão “ditadura militar” um verdadeiro bálsamo para absolver e esconder as suas relações. A apoteose desse tipo de perspectiva foi a colocação do marco cronológico do fim da ditadura, que é construído em função de premissas e perspectivas teóricas e políticas. Fixou-se o marco em 1985, na posse de José Sarney. Ora, o Sarney foi homem da ditadura desde o início e uma de suas lideranças, mas essa cronologia ganha coerência porque a ditadura era militar e ele foi o primeiro presidente civil. Se a ditadura fosse entendida como um complexo civil e militar, seria mais problemático colocar esse marco. Creio que, passados tantos anos, embora a resistência à ditadura mereça e continuará merecendo atenção nos nossos debates, essa tendência de rever a história vai crescer. Se você assume esse ponto de vista, apontando os fundamentos sociais e históricos, há áreas incríveis que merecem estudo, como os sindicatos, que tiveram um crescimento gigantesco durante a ditadura.

A ditadura sempre esteve muito preocupada em manter uma aparência de legalidade e com a sua legitimidade. Manteve o Congresso Nacional aberto e criou uma nova Constituição em 1967. Por quê?

A ditadura se instaurou em nome da democracia. Essa é uma diferença importante a se fazer entre as ditaduras anteriores e posteriores à Segunda Guerra Mundial. No Estado Novo, o Getúlio não tinha nenhum problema em dizer que aquele regime era autoritário porque a democracia estava muito desprestigiada à época. A União Soviética se desenvolvia a passos gigantescos e não era uma democracia, o nazifascismo aparecia como uma alternativa universal e recusava a democracia. Muitos regimes na Ásia, África e América Latina adotaram formas corporativistas autoritárias, como o Brasil. Já depois da Segunda Guerra, feita em nome da democracia e contra o nazifascismo, era muito mais difícil legitimar um regime contra a democracia. O movimento de 1964 foi feito em defesa da democracia e contra a corrupção. Muitas lideranças políticas que apoiaram o golpe acharam que os militares iam fazer uma intervenção rápida. Cassariam os comunistas, os trabalhistas e as esquerdas mais radicais e abririam caminho para as eleições presidenciais de 1965. O apoio de JK a Castello Branco se insere aí, porque Juscelino era um dos fortes candidatos, assim como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. Esses líderes civis que participam do golpe eram liberais autoritários. Tinham medo de que uma democracia ampla no Brasil incitasse as massas à luta e que isso provocasse uma revolução social no país. A farsa da Constituinte do Castello marca o início do estado de direito autoritário que vai de março de 1967 a dezembro de 1968, com o AI-5.

No livro, o senhor marca uma diferença entre esse estado de direito autoritário e a ditadura propriamente dita. Poderia explicar melhor?

Eu tento fixar um critério para conceituar um governo como ditatorial ou não. O critério que eu coloco é óbvio, o do estado de exceção. É quando o governo faz e desfaz leis a seu bel-prazer, não passando por nenhuma instância de controle nem sendo controlado por nenhuma instância. O governo inventa os meios legais como quer, como a figura jurídica do banimento, criada para permitir a libertação dos 15 presos trocados pelo embaixador americano em 1969. A república entre 1946 e 1964 era um estado de direito autoritário. Quase metade da população não votava porque era analfabeta. Ninguém chama o governo Dutra de ditadura, mas na contagem do PCB, então na ilegalidade, 51 militantes foram mortos em manifestações. No regime militar, a ditadura é reativada em dezembro de 1968, com o AI-5, e segue até 1979. Do governo Figueiredo até 1988, temos um estado de direito autoritário. Na Constituição de 1988, que sem dúvida é a nossa carta mais democrática, ainda subsistem claramente aspectos autoritários, como o direito dos militares intervirem na vida política nacional desde que sejam chamados pelo chefe de um dos três poderes. Isso é de um autoritarismo enorme e foi incluído por pressão dos milicos à época. Poderíamos mencionar outros, como a concentração de poder que cria um presidencialismo de caráter imperial e as medidas provisórias. Desde 1889, quando não tivemos ditaduras, tivemos um estado de direito autoritário no Brasil.

Muito se discute atualmente sobre as heranças da ditadura. Como essa tradição autoritária que o senhor aponta se manifesta hoje?

Uma prática que persiste é a tortura. A tortura foi política de Estado em alguns governos da Primeira República e nas ditaduras do Estado Novo e de 1964. Ela antecedeu e continuou após essas ditaduras e está aí até hoje nas delegacias, nos quartéis. É uma tradição maldita que vem da escravidão. A posição favorável à tortura encontra-se disseminada na sociedade brasileira. O Núcleo de Estudos da Violência da USP, em pesquisa de 2011, apontou que 48,5% dos entrevistados admitiam a tortura em determinados casos. Você pode presumir que esse número é muito maior, pois muita gente não assume essa posição para o pesquisador, mesmo com a garantia do anonimato. Os fundamentos sociais e históricos da ditadura precisam ser discutidos e compreendidos. O autoritarismo permeia toda a sociedade brasileira. De modo nenhum nossa democracia está a salvo de surtos autoritários. A gente viu agora mesmo nas manifestações de 2013 como políticos de diversos partidos se comprometeram com uma repressão desapiedada sobre o movimento. A Polícia Militar mata cotidianamente pessoas no Brasil todo, os índices são demenciais comparados a outros países, e isso está naturalizado. Embora haja críticas muito severas aos black blocs, as críticas à PM são muito moderadas. No Rio, o governador Sérgio Cabral, eleito democraticamente, tentou criar uma estrutura denunciada e repudiada como uma reedição do DOI-Codi, e recuou. Mas o simples fato dele ter proposto é muito simbólico. Sem lidar com a nossa tradição autoritária, as ditaduras não se explicam. O Estado Novo se instaurou em 1937 quase sem resistência e acabou em 1945 em uma transição pelo alto. Em 1964 e em 1979, foi muito parecido. É preciso discutir isso seriamente.


Enviado por O Globo -
15.2.2014
|
6h35m

Carlos Fico: Os riscos de uma leitura vitimizadora do golpe de 1964

Entender por que uma solução autoritária foi de algum modo aceita pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do despotismo que tantas vezes assolou a República, diz historiador

Por Carlos Fico

O golpe de 1964 é muito citado, mas pouco pesquisado. A literatura especializada usualmente o menciona como a culminância dramática da trajetória de João Goulart ou como o episódio inaugural da ditadura. Hoje, temos uma historiografia crescente sobre os 21 anos dos governos militares, mas o golpe em si não é o objeto preferencial de tais pesquisas. Entretanto, ele é o “evento-chave” da história do Brasil recente: naquele momento, parcelas significativas da sociedade brasileira aceitaram uma solução autoritária para os problemas que afligiam o país. Podemos assegurar que estamos livres dessa “tentação”? Estudos verticalizados sobre o golpe nos ajudariam a responder a esta pergunta.

Não houve grandes revelações desde as últimas contribuições da historiografia conhecidas há mais de três décadas. De fato, os principais “achados” sobre 1964, especificamente, foram divulgados nos anos 1970 e 1980: a descoberta da “Operação Brother Sam” (o apoio norte-americano ao golpe), por Phyllis R. Parker, em 1976; o livro “O governo João Goulart”, de Moniz Bandeira, publicado em 1978 e a obra magistral de René Armand Dreifuss, de 1980, “1964: a conquista do Estado”, que deslindava, com documentos inéditos, a campanha de desestabilização de que João Goulart foi vítima.

Certamente não se deve reduzir a pesquisa histórica à busca de revelações chocantes, mas seria ingênuo não reconhecer sua importância. Nesse sentido, não é difícil antecipar que significativas informações surgirão a partir da pesquisa de novas fontes documentais — e elas são muitas. Os documentos outrora sigilosos, no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países, vêm sendo revelados paulatinamente. Por exemplo, encontra-se em curso, neste momento, pesquisa documental sobre a comissão que cuidou dos primeiros inquéritos policiais militares (IPMs) logo após o golpe. Do mesmo modo — conforme a legislação norte-americana —, a importante documentação do governo daquele país vai aos poucos sendo liberada. Amplo projeto de digitalização desses documentos, conduzido por historiadores do Brasil e dos EUA, encontra-se em andamento. Militares e políticos brasileiros tinham conhecimento da “Operação Brother Sam” e esta revelação virá inevitavelmente.

As principais teses explicativas sobre o golpe também foram divulgadas há muito tempo. Duas delas são clássicas. Alfred Stepan publicou, em 1969, a interpretação segundo a qual a singularidade de 1964 residiria na mudança do padrão de intervenções militares: em vez de apenas corrigir os rumos e devolver o poder aos civis, os militares, na ocasião, estariam convencidos de que deveriam assumir integralmente o poder. A leitura de Wanderley Guilherme dos Santos, divulgada em 1979, é mais sólida porque amparada em expressiva pesquisa empírica: o golpe de 1964 se explicaria em função de uma “paralisia decisória”, isto é, a radicalização dos atores políticos impediria qualquer tomada de decisão. Outra contribuição importante e mais recente contrapôs-se à leitura marxista segundo a qual os militares eram mero “instrumento” da burguesia: a preocupação em valorizar o que os próprios oficiais pensavam motivou a equipe do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) a realizar significativas entrevistas com eles, publicadas em 1994, por meio das quais podemos conhecer sua própria interpretação sobre o golpe.

Boa parte dos projetos de pesquisas que se candidatam aos mestrados e doutorados em História, Brasil afora, dizem respeito aos diversos temas do regime militar. O notável avanço da pós-graduação em nossa área, nas últimas décadas, tem permitido um conhecimento mais detalhado do golpe e da ditadura a partir de uma perspectiva regional — pois, até recentemente, dispúnhamos de leituras que abordavam, sobretudo, o que houve no Sudeste e em Brasília.

O distanciamento histórico é essencial para que possamos abordar questões delicadas, temas tabu. Talvez se possa dizer que o maior avanço da historiografia recente consista nessa busca de objetividade: hoje podemos nos lembrar de que setores significativos da sociedade apoiaram a derrubada de João Goulart. Jovens pesquisadores têm dado grandes contribuições: Aline Presot comprovou que as Marchas da Família com Deus pela Liberdade expressaram efetiva insatisfação das classes médias urbanas, não resultando apenas da “manipulação” propagandística. Mateus Capssa mostrou que alguns estudantes apoiaram o golpe de 1964. Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de “militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Historiadores como Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg têm chamado a atenção para isso. A serenidade possibilitada pelo recuo temporal e a grande quantidade de novas fontes documentais nos permitem antever um futuro muito promissor para as pesquisas sobre o golpe de 1964.

Isso é essencial. Se entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um “revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República.

Carlos Fico é historiador, professor da UFRJ e autor dos livros “Além do golpe — Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar” e “O grande irmão — Da Operação Brother Sam aos anos de chumbo”


Enviado por O Globo -
15.2.2014
|
6h30m

José Castello: livros de Bernardo Kucinski mostram dores da ditadura

Por José Castello

A literatura como um exercício de libertação: eis como a pratica o escritor Bernardo Kucinski, de quem a Cosac Naify lança a coletânea de contos “Você vai voltar pra mim”, além de relançar o premiado romance “K”. Sua escrita é um exorcismo dos dolorosos anos da ditadura militar originada pelo golpe de 1964. Não é, porém — como se pode temer em um primeiro instante —, uma “literatura engajada”, ou panfletária. Kucinski não escreve panfletos, mas ficção da mais alta qualidade. Nela incluída improváveis histórias pessoais, pequenos sentimentos, dores secretas e toda a miudeza atroz de aflições que definem o humano.

É uma escrita objetiva, seca, substantiva, como observamos no conto “O garoto de Liverpool”, história de um rapaz “magro, de rosto chupado e miúdo, do qual só se viam o nariz, a boca e parte dos olhos”, que vem para o Brasil fazer uma reportagem sobre os índios da Amazônia e a construção da Transamazônica e acaba preso, confundido com um guerrilheiro. Depois da tortura, é jogado em um buraco de quatro metros onde passa longos dias de horror. Só é salvo porque aparece um oficial que morou na Inglaterra, lhe dá ouvidos e consegue, assim, entendendo sua verdadeira história, libertá-lo. A história é feita não só de grandes atos, mas também de pequenos mal-entendidos. A ação do acaso — a chegada inesperada do militar — tem, tantas vezes, a mesma força que a mais terrível barbaridade.

Kucinski nos mostra, em seus relatos, os interiores da ditadura. Não só o grande sofrimento — repressão, brutalidade, torturas, ódio — mas as pequenas dores que quase ninguém viu. É o caso do conto “A suspeita” no qual um grupo de amigos discute, tempos depois, sua responsabilidade ou não sobre a loucura de um homem considerado, por engano, um informante da repressão. Admitem o erro, carregam agora o peso de um homem ter enlouquecido por causa deles. Mas, para se salvarem, se apegam a uma explicação racional: “É como diz o filósofo: o homem e suas circunstâncias. O sorriso era do homem, o DNA da loucura também já estava nele e as circunstâncias foram da ditadura. E ponto final”. Kucinscki não passa a mão nas cabeças, tampouco nas consciências, daqueles que tiveram a coragem de se engajar na luta clandestina contra o regime ditatorial. Reconhece sua coragem e a grandeza de seu esforço, mas os vê, antes de tudo, como homens comuns, que cometem enganos e deslizes também.

O livro traz alguns retratos preciosos como em “Um homem muito alto”, a história de um bravo militante que não precisou de delatores: sua própria altura incomum o denunciou. Pernalonga, King Kong, Golias — teve muitos apelidos, até passar a ser chamado de Jamanta, codinome dado pelos serviços secretos. Escreve Kucinski: “Antes mesmo de cair prisioneiro da repressão, tornou-se prisioneiro do próprio corpo”. No fim, ao sair para comprar cigarros, é preso em um subúrbio do Rio de Janeiro. Condenado a dezessete anos de cadeia, uma das penas mais longas para casos como o dele. “Uma pena tão descomunal quanto sua altura”, resume, sem se negar uma dose de humor.

Alguns contos, como “Terapia de família”, passam apenas nas bordas da história política. Depois da Lei da Anistia, um pai anistiado é tratado como o centro da família, enquanto o filho passa seus dias trancado no quarto, em fuga do mundo. A família — esgotada — decide submeter-se a uma terapia familiar. Surge então o ressentimento do rapaz, abatido porque a mãe só dava atenção ao pai herói. Durante os seis anos de cadeia, embora enviasse cartas para a mulher e para a filha, só lhe destinou o silêncio. As sessões de terapia em família se revezam com sessões individuais. O rapaz diz que não procura emprego porque precisa “arrumar o quarto antes”. Mas, ao terapeuta, admite: “A arrumação do quarto é uma desculpa; eu passo as vinte e quatro horas do dia pensando em maneiras de destruir meu pai”. A terapia fracassa, o impasse afetivo — efeito secreto da ditadura — derrota a família.

Outras vezes não, como constatamos na leitura de “Pais e filhos”. Quando soube que o filho Augusto é suspeito de ter participado de um atentado, o dr. Nicolau Junqueira, médico-cirurgião, fica possesso. Depois de muito buscá-lo, encontra o filho escondido na casa de uma tia. O pai é um defensor intransigente do regime militar. Um dia, o rapaz é intimado a entrar para o comando da organização clandestina a que pertence. Prefere fugir para o Chile. Só um ano depois, através da mãe, entrega ao pai seu endereço em Santiago. Os pais viajam para visitá-lo. O encontro é tenso, parece desastroso, até que o doutor convida o rapaz para uma caminhada a dois pela cidade. O fecho do conto é especialmente forte: “Já na rua, o velho médico colocou o braço em torno do ombro do filho, e assim caminharam, lado a lado, abraçados, por muitos e muitos quarteirões”. Sem trocar uma única palavra. O afeto mais profundo e difícil, muitas vezes, não encontra palavras que a ele correspondam. Só se diz em silêncio. Sentimentos paradoxais, como a ironia, o desconcerto, o amor e o humor, Kucinski nos mostra, também fazem parte da história da ditadura militar.

O estilo intimista — embora escrito em um tenso realismo — dá o tom também, como seus leitores já sabem, do premiado romance “K.”, que agora ressurge em nova edição. Inspirado no desaparecimento, 40 anos atrás, da irmã de Kucinski, Ana Rosa, e de seu marido Wilson, o romance guarda um forte caráter autobiográfico que, no entanto, não o encarcera no mero testemunho. Há uma recriação corajosa da história pessoal, o que reafirma a posição da literatura como lugar não só de transformação, mas de libertação. Embora sua identificação com as vítimas da ditadura seja indisfarçável, Kucinski faz, todo o tempo, um esforço (bem-sucedido) para ampliar seu olhar, colocando-os assim em seu devido tempo e circunstâncias, arrancando-os da simples mitologia política e devolvendo-os ao terreno do humano. O que pode parecer que os apequena, na verdade os engrandece. A História, mesmo a mais heroica, é feita por homens frágeis e cheios de contradições e isso só reafirma o valor de sua luta.


Enviado por O Globo -
15.2.2014
|
6h25m

Lançamentos fazem síntese do período entre 1964 e 1985



Com abordagens distintas, obras dos professores Marcos Napolitano e Marco Antonio Villa propõem um resumo do que se passou no país entre 1964 e 1985


Por Leonardo Cazes e Guilherme Freitas

Cinquenta anos após o golpe de 1964, dois livros recém-lançados tentam preencher a lacuna ainda existente de obras sintéticas sobre a ditadura. São eles “1964: História do regime militar brasileiro” (Editora Contexto), de Marcos Napolitano, professor de História da Universidade de São Paulo (USP), e “Ditadura à Brasileira” (LeYa), de Marco Antonio Villa, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Com abordagens distintas, os trabalhos tentam dar conta do que se passou do conturbado governo João Goulart até a posse de José Sarney na presidência, em 1985, o primeiro civil a assumir o poder depois de 21 anos.

Napolitano afirma que, na sua experiência como professor, sentia a falta de uma obra sintética sobre o período. Ele cita os trabalhos do brasilianista Thomas Skidmore, autor de “Brasil: de Castello a Tancredo” (Paz e Terra), e de Maria Helena Moreira Alves, “Estado e oposição no Brasil: 1964-1984” (Edusc), como precursores na tarefa. No livro, o professor enfoca o poder e a cultura naqueles anos, dois temas recorrentes nas suas pesquisas. Há três capítulos dedicados aos movimentos culturais das décadas de 1960 e 1970, em que se destacam não só a sua efervescência, mas também a sua própria diversidade.

— Em alguns momentos, a cultura ganha um sentido político mais explícito e foi o caso dos anos 1960 e 1970 no Brasil. Artistas ganharam um protagonismo muito grande, a cultura se assumiu como espaço de valores que era uma antítese da ditadura e sua oposição marcou o espaço público e o debate público. Mas o livro também procura matizar essa relação de oposição ao regime. Havia diversos artistas e intelectuais que não eram politizados — conta Napolitano. — Um graduando que não seja de história não vai ler dez livros para entender o fenômeno. A seleção é sempre difícil, mas mantive um diálogo com a bibliografia para quem desejar ir além.

Em “Ditadura à brasileira”, Villa reconstrói a queda de João Goulart, caracterizando o governo como caótico. O professor refaz o trajeto de desenvolvimento do regime autoritário através da legislação de exceção utilizada pelos militares, os Atos Institucionais e os Atos Complementares. Ele propõe, na obra, uma nova cronologia para o regime. Na sua opinião, não é possível classificar de ditatorial o período entre 1964 e 1968, com toda a movimentação cultural e política do período, como a Passeata dos Cem Mil, no Rio. Trata-se de um regime autoritário. Para Villa, a ditadura começa em 1968 e termina em 1979, com revogação dos Atos Institucionais e a anistia.

— O caso brasileiro não tem nenhuma semelhança com as ditaduras do Cone Sul. Na Argentina, a ditadura acabou com o ensino superior público, privatizou tudo. Aqui foi o extremo oposto. A ditadura brasileira manteve aberto o Congresso Nacional, tivemos eleições regulares, embora com particularidades autoritárias. Mas a história do Brasil é autoritária desde a fundação da República, sob a marca do positivismo — afirma ele. — O meu caminho foi o da história política. Abordo outras questões, como a cultura e a economia, mas não é o foco central.

Outros lançamentos ajudam a construir um panorama amplo sobre o período. Na reunião de artigos “A ditadura que mudou o Brasil” (Zahar), organizada pelos professores Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, os textos versam sobre as transformações econômicas e sociais da época, discutem o processo de modernização empreendido pelo regime e a repressão contra as oposições.

Já em “A ditadura militar e os golpes dentro do golpe” (Record), Carlos Chagas conta a história do regime entre 1964 e 1969 através de reportagens publicadas em jornais na época, com a reprodução de muitos textos. Chagas foi secretário de imprensa do general Costa e Silva, segundo presidente militar.

Entrevistas com militares

Para março, a Civilização Brasileira prepara “1964: O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil”, dos historiadores e professores da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes. A obra promete jogar luz na sequência de fatos antecedentes à derrubada de João Goulart, que ainda gera polêmica, divide especialistas e é apontada como uma das épocas que mais carecem de um estudo aprofundado.

Também este ano, a Agir reedita os livros da coleção de entrevistas com militares coordenada por Maria Celina D'Araújo, Gláucio Soares e Celso Castro. O primeiro volume, “Visões do golpe”, sai em abril. “Os anos de chumbo” e “A volta aos quartéis” chegam às livrarias nos meses seguintes. Iniciado em 1992, foi o primeiro projeto historiográfico a ouvir sistematicamente representantes do regime.

Professora da PUC-Rio, Maria Celina diz que os militares que aceitaram falar, como o ex-presidente Ernesto Geisel e o brigadeiro João Paulo Moreira Bournier, não fizeram restrições. Mas lamenta que esse conhecimento sobre o regime não tenha se traduzido ainda em reparações:

— Os militares contaram com ineditismo como funcionavam as entranhas do regime. Outras ditaduras ocorriam na mesma época, mas registros como esses não foram feitos. De outro lado, outros países conseguiram apurar vários crimes e responsabilizar seus mandatários enquanto nós, que sabemos mais sobre o que ocorreu, temos menos capacidade de agir em prol da defesa dos direitos humanos.


Enviado por O Globo -
10.2.2014
|
14h43m

Morre o jornalista e escritor Renato Pompeu, aos 72 anos

Renato Pompeu nasceu em Campinas, em 1941, mas sempre morou em São Paulo. Em 1960, começou o curso de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). No mesmo ano, iniciou sua carreira como jornalista, no cargo de copidesque da "Folha da Manhã" (hoje, "Folha de S. Paulo"), seguindo os passos de seu pai e do seu avô. Pompeu morreu na manhã do último domingo, aos 72 anos. Desde 2009, ele alimentava o blog do Renatão.

Em 1966, o jornalista participou da criação do "Jornal da Tarde". Dois anos depois, estava na equipe que fundou a revista "Veja", onde ficou até 1981. No final dos anos 1970, fez parte do projeto de renovação da "Folha de S. Paulo" empreendido por Claudio Abramo. Durante a década de 1990, trabalhou em "O Estado de S. Paulo". Atualmente, era colaborador das revistas "Carta Capital", "Caros Amigos", "Retratos do Brasil", "Revista do Brasil" e do "Diário do Comércio". Ao longo de sua carreira, venceu três vezes o Prêmio Abril e uma vez o Prêmio Esso de Jornalismo.

Pompeu também foi autor de 22 livros. De ficção, destacam-se "Quatro olhos" (1976) e "Samba-enredo" (1992), ambos editados pela Editora Alfa-Ômega, e "O mundo como obra de arte criada pelo Brasil" (2008), pela Editora Casa Amarela. De não ficção, publicou "A saída do primeiro tempo" (1978), "Memórias da loucura" (1983), pela Alfa-Ômega, "Globalização e justiça social" (1996), pela Editora Scortecci, e "Canhoteiro, o homem que driblou a glória" (2002), pela Ediouro.


Enviado por O Globo -
8.2.2014
|
7h00m

Gustave Flaubert por Jean-Paul Sartre



Publicado pela primeira vez no Brasil, clássico do filósofo francês sobre o autor de ‘Madame Bovary’ revela afinidades e rivalidades entre o pensador engajado e o romancista que defendia ‘a arte pela arte’

Por Fernando Eichenberg

“Entra-se num morto como quem entra num moinho”, escreveu Jean-Paul Sartre (1905-1980) a propósito do escritor Gustave Flaubert (1821-1880). Durante sete anos, o célebre filósofo mergulhou na vida do autor de “Madame Bovary”, numa obsessão que resultou, entre 1971 e 72, no lançamento da original biografia “O idiota da família”. Com seu Flaubert, Sartre, que já havia escrito sobre Baudelaire (1946), Jean Genet (1952) e Mallarmé (publicado postumamente, em 1986), vai além do estudo crítico e biográfico e projeta uma ousadia intelectual antropológica: a criação de um método analítico capaz de apreender a totalidade de um homem, as condições de sua existência e as possibilidades de sua representação. A ambiciosa obra, inacabada em seus três volumes e cerca de três mil páginas, é agora lançada pela primeira vez em língua portuguesa, em edição brasileira da L&PM, com tradução de Júlia da Rosa Simões.

“O que se pode saber de um homem hoje?”, indaga Sartre, anunciando o tema de seu ensaio sobre o indivíduo como um “universal singular”. Em sua aspiração por uma ciência humana como síntese de “todos os métodos”, o filósofo disseca seu biografado recorrendo ao marxismo, ao existencialismo e à psicanálise. Flaubert é o “idiota da família”, o filho tido como retardado, a criança com dificuldades de aprender a ler e a lidar com as palavras, que se tornará o “criador do romance moderno”, na concepção do próprio biógrafo. Sartre conta na introdução da obra que elegeu o escritor por três razões. Por um “ajuste de contas”, numa antipatia transformada em empatia, admite ele; pela relação do homem com sua criação literária e seu tempo; e pela neurose de Flaubert, que seria a particularização de uma neurose coletiva.

Num jogo de espelhos, entre a afinidade e a rivalidade, Sartre constrói sua “superbiografia” em busca da impossível totalidade do personagem, seu duplo invertido. “Por que Flaubert?”, lhe perguntou o jornal “Le Monde”, em 1964. “Porque ele é o oposto do que eu sou. Temos a necessidade de nos chocar com o que nos contesta. ‘Muitas vezes pensei contra mim mesmo’, escrevi em ‘As palavras’. Essa frase não foi compreendida. Viu-se nela uma confissão de masoquismo. Mas é assim que se deve pensar: rebelar-se contra tudo aquilo que se pode ter inculcado em si”, respondeu.

Acerto de contas com A cultura do século XIX

Para Annie Cohen-Solal, autora de “Sartre, uma biografia” (L&PM), “O idiota da família”, em meio à “idiossincrática” forma de o filósofo administrar sua produção, foi um “enorme livro” que surpreendeu a todos quando lançado na França:

— Ele diz: “Flaubert representa para mim o exato oposto da minha concepção de literatura; é um desengajamento total, a busca de um ideal formal que não é o meu”. Mas acrescenta: “Flaubert começou a me fascinar precisamente porque eu enxergava nele o contrário de mim mesmo”.

Cohen-Solal lembra os grandes trabalhos filosóficos de Sartre, como “O ser e o nada” ou “Crítica da razão dialética”, sempre acompanhados de textos para teatro ilustrativos de seu pensamento. “O idiota da família” é, segundo ela, um “outro modelo”, e também uma forma de Sartre ajustar contas com seu avô materno, Charles Schweitzer — que o educou até aos 11 anos de idade, quando passou a frequentar a escola —, e com uma tradição francesa elitista característica do século XIX:

— Ele quer subverter a tradição da qual se originou, de uma França arcaica contra a qual nunca cessou de lutar. Questiona a família burguesa provincial e também um escritor que não se engajou no momento da Comuna de Paris (a insurreição revolucionária de 1871 na capital francesa). Sartre já o ataca num texto de 1945, publicado na revista “Les temps modernes”, em que diz: “O escritor está sintonizado com sua época, cada palavra tem suas repercussões, cada silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna de Paris, por não terem escrito uma só linha para impedi-la”.

Cohen-Solal aponta nesta época uma “agenda bem menos pública” de Sartre (que em 1964 havia recusado o prêmio Nobel de Literatura), sendo sua grande última tomada de posição política o empenho pela instituição do chamado Tribunal Russell, em 1966, em conjunto com filósofo britânico Bertrand Russell, para julgamento de crimes de guerra.

— Nos anos 1970, ele se engaja em duas coisas: em seu Flaubert e na fundação do jornal “Libération”, duas experiências complementares. É interessante notar que ele vai começar seu Flaubert em meados dos anos 1960. Durante as revoltas de Maio de 68, seu interesse é pela Comuna de Paris; ele está em outro século, é algo muito bizarro — lembra ela.

Jean-François Louette, reputado especialista em Sartre da Universidade Sorbonne, reforça a ambivalência do filósofo, ao mesmo tempo surpreso e incomodado em relação ao seu personagem. E ressalta que no final dos anos 1970, perto do término da obra, os jovens amigos maoístas do filósofo, desejosos por um ensaio de forte engajamento político, tentaram dissuadi-lo da publicação.

— Mas Sartre não cede. Flaubert constitui para ele um tipo de desafio. O livro é uma síntese de diferentes opções ideológicas, de seu gosto pela história, pela filosofia, pela crítica literária, de seu interesse pela biografia. São várias razões para que ele não renuncie à obra — observa ele.

O próprio filósofo se reconhece em Flaubert em seu percurso na descoberta da linguagem, e também se sentiu um “idiota da família”, assinala Louette, ao citar a passagem de “As palavras” em que o jovem Sartre conta como leu seguidas vezes o final de “Madame Bovary” sem nada compreender. Assim como Flaubert, que “não conseguia aprender a escrita porque levava muito a sério a linguagem”, Sartre também “se fascinou diante de palavras impenetráveis e opacas”, diz o pesquisador. “O idiota da família” carrega uma forte crítica à burguesia francesa do século XIX, afirma Louette, mas também deflagra um embate com estruturalistas e lacanianos, procurando desmentir a tese de que a linguagem é um sistema que funciona praticamente sozinho.

— Sartre mostra que o grande escritor é aquele que sabe sonhar com as palavras, sem se deixar aprisionar pelo poder da linguagem, mas com uma certa distância do lugar comum, de uma forma um pouco poética — sustenta Louette, ao classificar “O idiota da família” como “um grande exemplo de uma crítica literária audaciosa e inventiva”.

Jean Bourgault, pesquisador do Instituto de Textos e Manuscritos Modernos (Item) e autor de várias obras sobre Sartre, não mede palavras para louvar a primeira edição de “O idiota da família” em língua portuguesa como “um verdadeiro acontecimento”:

— Trata-se de um grande texto de Sartre, onde ele consegue aplicar de forma mais aprofundada o que chama, em “O ser e o nada”, de “psicanálise existencial”. É um livro de filosofia do sentido e da liberdade, e uma grande obra sobre a compreensão do século XIX. É uma leitura de enorme prazer, um livro muitas vezes engraçado, que faz rir, e com um virtuosismo da linguagem, que se lê como um romance.

Na mesma sintonia, e na contramão daqueles que confessaram nunca terem conseguido chegar ao final de “O idiota da família”, Annie Cohen-Solal diz apreciar bastante a singular obra sartriana.

— É um livro de que gosto muito. Moinhos não possuem chave para entrar, e quando Sartre entra no morto Flaubert como num moinho, ele penetra em seu universo livremente, com uma problemática. Isso já é algo extraordinário. Ele se interessou alucinadamente pelo processo de criação literária e política, e passou sua vida a ajustar contas. Esse é o Sartre subversivo, que depois de ter escrito sua autobiografia produz um material considerável sobre o seu exato oposto, o que também é uma maneira de falar de si mesmo.


Enviado por O Globo -
8.2.2014
|
6h55m

'O idiota da família': uma vida passada a limpo, por Ivo Barroso

Por Ivo Barroso*

Razão tinha Flaubert quando declarou “Madame Bovary sou eu”. O comportamento dúbio, as reações sentimentais da personagem, seu modo de agir e raciocinar eram todos reflexos de condições psíquicas a que ele se impunha para analisá-las com cuidado e detença. É sabida a morosidade com que compunha seus livros, não só no que respeita à elaboração do estilo, cujas frases revia incansavelmente, mas também no ajuste final de cada gesto e de cada palavra dos seres que animava.

Sua biografia não revela grandes lances: solteirão de muitos amores mas poucas ligações permanentes, arredio da grande cidade, avesso a qualquer tipo de convenções (“As honrarias desonram, os títulos degradam, os empregos entorpecem”), Gustave Flaubert havia se refugiado na literatura, em sua propriedade rural de Canteleu-Croisset, para vencer sua aversão pela tolice humana. Esse recolhimento campestre teve, no entanto, outros determinantes. Flaubert sofria de epilepsia psicogênica, e seu pai, cirurgião-chefe no hospital de Rouen, achou conveniente que o jovem trancasse matrícula no curso de Direito em Paris e se recolhesse à província, onde seria mais bem assistido pela família. Ideal para ele, que só pensava em escrever. Mas alguns infortúnios domésticos iriam marcá-lo: o irmão mais velho, Achille, médico-cirurgião como o pai, acabou louco; a irmã Caroline, por quem tinha manifesta afeição, casou-se em 1845 com Emile Hamard e teve uma filha de mesmo nome, morrendo em seguida; Flaubert assumiu a criação da menina, pois Hamard, desesperado, enlouqueceu após a morte da esposa. O pai, seu grande esteio, morreu no ano seguinte. Restou-lhe a sra. Flaubert, descrita por ele como sua carcereira, confidente, ama, paciente, banqueira e crítica.

Contudo, muitos são os amigos fieis que o cercam, como Louis Bouilhet e Maxim du Champ, este com quem viaja para o Egito, Palestina, Grécia etc., dilapidando boa parte da herança que lhe coubera com a morte do pai. E grande é o número de correspondentes e confidentes, aos quais escreve montanhas de cartas (hoje reunidas em cinco volumes), comentando projetos literários e afãs amorosos. Visto como o “carrasco de si mesmo”, esse cultor do mot juste tornou-se um dos maiores estilistas da literatura francesa do século XIX. Seus livros mais conhecidos (“Salambô“, “Madame Bovary”, “Bouvard e Pécuchet”) trouxeram-lhe grande fama e sucesso financeiro, embora outros, como “A educação sentimental” e “A tentação de Santo Antão” não alcançassem o grande público, e, neste último caso, houvesse até a insistência dos amigos para que o jogasse fora.

Por sua importância literária era natural que Flaubert despertasse a atenção de muitos biógrafos, alguns dos quais da importância de Henry James, Guy de Maupassant, Emile Faguet e Jules Goncourt, interesse que persiste mesmo em nossos dias com a premiada biografia de Frederick Brown (2006).

Em 1971, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre surpreendeu seus leitores com a publicação do primeiro volume de uma biografia de Flaubert intitulada “O idiota da família”. O livro tinha cerca de 1000 páginas, anunciava-se um segundo tomo já para o ano seguinte e havia o plano da publicação de mais outros dois volumes que sairiam em datas não muito distantes. Indagado sobre seu interesse por Flaubert, Sartre respondeu que via nele o seu antípoda, mas que o admirava exatamente por isso, em vez de desprezá-lo. A novidade maior do empreendimento, além de seu indubitável apelo épatant, estava (segundo o autor) na aplicação de um método investigativo que conjugava existencialismo, psicanálise e crítica literária, a fim de tratar o assunto (a vida de um autor) em sua globalidade definitiva. O objetivo foi sem dúvida obtido e a análise de fato vasculha da adega ao sótão, mas depreende-se igualmente da leitura que Sartre quis fazer uma “revisão” completa de Flaubert, como escritor e como ser humano, talvez para “aproximá-lo” um pouco mais de si. Dessa forma, poderíamos imaginar que Sartre quis fazer com Flaubert o que este fazia com seus personagens: incorporar-se neles.

Logo no início, por exemplo, Sartre se vale de um depoimento de Caroline, a sobrinha querida de Flaubert, e embora lhe dê todo o crédito, disseca-lhe as palavras como que para redesenhá-las de modo a que signifiquem a mesma coisa, mas insinuando outras mais. Cada momento da vida de Flaubert é, assim, passado a limpo, ou melhor, reanalisado de modo a aproximá-lo de seu biógrafo, aqui transformado num deus todo-poderoso capaz de reformular o destino. Sem dúvida, um trabalho de amor, de aprimoramento, talvez um impulso de fazer por outrem o que não foi possível (ou desejável) fazer para si mesmo. O resultado final é uma obra-prima do enfoque biográfico, a transformação do reflexo no espelho na imagem mental do refletido. Sartre conseguiu com esta obra assemelhar-se literariamente ao mestre amado a quem odiava no princípio.

*Ivo Barroso é tradutor e poeta


Enviado por O Globo -
8.2.2014
|
6h50m

Lembranças sombrias do Campo 14



História de Shin Dong-hyuk, a única pessoa a nascer numa prisão política e escapar com vida da Coreia do Norte, vira documentário que mistura desenho animado e depoimentos


Por Claudia Sarmento, correspondente em Tóquio

Aos 31 anos, Shin Dong-hyuk diz se sentir como uma criança de oito. Não por ser inocente e leve, mas pelo que ainda precisa absorver sobre o conceito de vida normal. Ele só entendeu o significado de liberdade há oito anos, quando escapou de um campo de prisioneiros da Coreia do Norte, onde nasceu e foi criado. Até então nunca ouvira essa palavra; não sabia distinguir o certo do errado; não tinha ideia de como funcionava uma sociedade além dos muros, nem o que eram relações de afeto. Sequer compreendia muito bem a diferença entre um homem e um rato. Viveu 23 anos como um bicho e resolveu fugir porque ouviu dizer que do lado de fora poderia comer algo que não fosse mingau e sopa. Estava cansado de sentir fome e de apanhar.

A odisseia de Shin, revelada no livro “Fuga do Campo 14” (lançado em 2012 no Brasil pela Intrínseca), do jornalista americano Blaine Harden, do “Washington Post”, é um dos mais impressionantes depoimentos já publicados sobre o regime norte-coreano. A história foi transformada em documentário exibido na Europa e agora em cartaz em Tóquio, cidade ao alcance dos mísseis de Pyongyang. Enquanto a comunidade internacional está fixada nas ameaças nucleares de Kim Jong-un, gulags como o Campo 14 continuam se expandindo, como mostram fotos de satélite. Parecem ficção, tamanha a monstruosidade relatada por Shin, que hoje vive em Seul.

Ele tinha 13 anos quando viu a mãe e o irmão mais velho serem executados. Foi ele próprio quem denunciou os dois. Ouviu a família planejando uma fuga e contou aos guardas. Era essa a única realidade que entendia: seguir as regras do campo. Só entendeu o horror de seu ato muitos anos depois, quando já era um homem livre.

— É difícil para as pessoas acreditarem no que elas não podem ver. Quando a verdade sobre os campos puder ser comprovada e chegar ao noticiário, será tarde demais — afirma ele, que compara os gulags norte-coreanos aos campos de concentração nazista.

Em março, o ex-prisioneiro, identificado como a única pessoa a nascer numa prisão política e escapar com vida da Coreia do Norte, voltará a relembrar em público o inferno de uma rotina baseada em trabalho escravo, torturas, estupros e execuções. Uma comissão da ONU divulgará em Genebra um extenso relatório sobre os direitos humanos na Coreia do Norte e os campos de reeducação mantidos pela dinastia Kim há três gerações. De alguns deles, nenhum condenado sai vivo.

O filme “Campo 14 — Zona de controle total”, do diretor alemão Marc Wiese, retrata o drama de Shin através de desenhos animados, sombrios como as lembranças do sobrevivente. A produção inclui depoimentos inéditos de dois ex-oficiais que desertaram. Um deles era o comandante de um outro campo, o de número 22, onde torturava e matava. Ganhava uma porção extra de carne e álcool a cada execução. O outro integrava a polícia secreta da ditadura e deportou para os gulags centenas de pessoas. Em entrevistas para divulgar o documentário, Wiese contou que a frieza dos ex-guardas é tão chocante que preferiu cortar alguns trechos, embora tenha preservado o material caso a ONU o requisite.

Shin não sabe por que seus pais estavam presos quando ele nasceu. Cresceu ouvindo que tinha que pagar pelos crimes da família. Sua educação não incluía sequer a doutrina stalinista de adoração ao líder máximo (na época Kim Jong-il). Devia obediência apenas aos guardas. “Nossa única função era seguir as regras e morrer”, diz ele no documentário. Organizações humanitárias calculam que 100 mil pessoas continuem vivendo sob essas mesmas condições em prisões espalhadas pela Coreia do Norte.

— Não sei o que se passa hoje dentro do campo. Não sei nem se meu pai está vivo, mas com certeza pagou pela minha fuga. O que sei é o que vejo pelas fotos. Os campos estão aumentando — conta Shin, que critica a inércia da ONU.

Confirmar seus relatos é impossível. Ele exibe como provas marcas da tortura em seu corpo e decidiu dedicar a vida a denunciar o pesadelo dos gulags. Shin conseguiu driblar a cerca eletrificada do campo porque um prisioneiro abriu espaço entre os arames. O amigo morreu eletrocutado. Depois de cruzar a fronteira com a China, viveu meses de forma miserável, mas considerava o que via o paraíso. As pessoas compravam o que queriam com dinheiro, falavam umas com as outras, andavam livremente.

Com a ajuda de um jornalista sul-coreano, acabou sendo enviado a Seul.

Hoje tem cidadania sul-coreana, se veste bem e fala de maneira educada. Aprendeu inglês e teve ajuda de ONGs para aplacar os efeitos físicos da fome e dos maus tratos. Os psicológicos provavelmente não têm cura. É visível o seu desconforto para falar sobre o que presenciou.

— Escapei há oito anos, mas necessito de mais tempo para me adaptar. Ainda preciso ver muito e sentir muito — resume.

Ao ser perguntado sobre o que mais gosta de fazer quando consegue deixar o passado de lado, responde:

— Assistir a jogos de beisebol na TV. Não entendo nada. Mas adoro.


Enviado por Prosa -
8.2.2014
|
6h45m

Resenha de 'Garimpo', de Beatriz Bracher



Os nove contos estabelecem elementos narrativos únicos, do enredo à linguagem, em uma exploração de todas as possibilidades do gênero

Por Giovanna Dealtry*

Na nota ao final de “Garimpo”, Beatriz Bracher informa ao leitor a gênese de cada um dos nove contos ali reunidos. São, na maioria, narrativas escritas “a pedido de”, que incluem desde uma história de amor entre dois jovens, ambientada daqui a meio século, até uma história escrita a quatro mãos, com Noemi Jaffe, em que cada escritora incumbiu-se de um personagem, um em resposta ao outro, sem o conhecimento prévio do que a outra escreveria. A exceção são os contos “Suli” e “O pensamento de Rubens”, que fazem parte de uma “tentativa de romance”, como afirma a autora.

A nota, por si, é dispensável para a fruição de “Garimpo”. No entanto, ela revela como o processo criativo da escritora se move em diversas direções, sem que a mira última esteja necessariamente vinculada a um projeto autoral. O projeto de “Garimpo” é a própria escrita em um jogo que oscila entre o lúdico, entendido aqui como descoberta, e as ressemantizações de modelos, a priori, não “literários” — como o argumento fílmico, o diário de viagem, as “conversas” por celular ou e-mail — tragadas para o âmbito da ficção.

Conto como experimento

Nesse sentido, o leitor move-se pelos desafios do próprio processo de descoberta, ou invenção, de modelos formais adequados às encomendas, ao mesmo tempo em que, com certa ironia, vê a autora responder ao clichê da dificuldade de conciliar qualidade literária e trabalhos encomendados. Cada conto, ao trazer consigo sua ficha “biográfica”, torna-se um experimento único e qualquer tentativa de reduzir “Garimpo” a certas temáticas ou marcas estilísticas parece responder mais aos anseios da resenhista do que à leitura do volume. Estamos diante de uma máquina caleidoscópica que estabelece a cada conto — e aqui o conceito de gênero é extremamente relevante — elementos narrativos únicos, desde o enredo à própria linguagem — que irão desaparecer na leitura do próximo conto.

Autora dos premiados “Antonio” (romance) e “Meu amor” (contos), Beatriz Bracher leva ao limite às possibilidades oferecidas pelo gênero conto, capaz de amalgamar as mais diversas linguagens ao mesmo tempo em que o elemento humano está sempre sendo tensionado, levado também ao extremo, pela própria linguagem. Dessa forma, “Garimpo” parece ecoar a definição de Ricardo Piglia, para quem o conto é a arte de narrar duas histórias simultaneamente. Cifra-se uma história secreta nos interstícios da história visível, do enredo principal. “O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.” — conclui Piglia.

Em “O que não existe”, inspirado nas fotos de Hildergard Rosenthal, fotógrafa alemã que documentou a São Paulo dos anos 40, vemos como esse processo se dá. Se a sombra do ciúme da recém-casada Helena parece ser o motivo inicial do conto, o que a faz sair a caminhar a esmo pela fazenda, trazendo consigo as memórias de uma infância permeada pelo sangue dos matadouros, aos poucos se sobrepõem à crise pessoal de Helena, as fotografias Rosenthal, objeto de tese da protagonista. A fotojornalista que fixou a modernização paulista é convocada pela lembrança de uma entrevista gravada em uma velha fita cassete. “Ela conta que sua fotografia mais expressiva é a de uma vaca lambendo um boi. (...) um boi estava na fila para ser morto, o da frente caiu, ele ficou com receio, não queria ir, a vaca veio e o lambeu.” Nem entre pessoas a Rosenthal teria visto um “gesto de tanta ternura, de tanta coisa, sabe?” A foto não existe. Ou está perdida para sempre. Ou foi rasgada pela fotógrafa. Ou, quem sabe, remetendo ao título e também ao próprio ciúme da recém-casada, “talvez nunca tenha existido”. Sua existência resistiria no ato de narrar a imagem, narrar a tese que não existe igualmente, narrar a sombra do ciúme em contraponto à dor concreta dos matadouros.

A ideia de reagir ao que não existe, ao que não é comprovado, rege o próprio princípio ficcional. Bracher vai além ao explicitar como esse “contrato ficcional” se espraia e é necessário para nós, ao tentarmos dar sentido “ao que não existe”. Essa experiência narrativa parece percorrer sutilmente, aqui e ali, o volume de contos.

Talvez por isso, o conto que abra o livro, “Durante a imensidão do amanhecer até depois do cair do sol”, remeta às histórias míticas das “Mil e uma noites”, narrativas que exigem a suspensão temporal, ainda que provisoriamente, para a sobrevivência da narradora. Neste conto, o deserto, espaço suspenso, sem fronteiras claras, é o próprio protagonista. “O escriba disse: o dia será ruim. No pôr do sol serei morto por uma serpente.” Ao iniciar o livro em que o escriba já sabe-se morto antes do próprio fim, Bracher negocia com a atemporalidade das narrativas míticas, da mesma forma que a insere em um tempo histórico, mortal, já que em nota somos informados que trechos inteiros do contos são transcrições literais de textos de papiros egípcios.

Assim como a fotógrafa alemã, Bracher dá a ver suas histórias a partir da luz/linguagem que ao incidir sobre o quadro cria um cenário de sombra e elipses. As histórias secretas teimam em chegar à superfície.

Em um dos contos mais inventivos e comoventes do livro, “Michel e Flora”, o leitor se vê jogado no meio de uma conversa entre dois adolescentes apaixonados, um em São Paulo, outro em algum lugar da Oceania. Todo o diálogo é “construído” no celular; e aqui uso esse termo em referências as manchas gráficas da página, repleta de adensamentos e vazios. Nem por isso estamos diante de uma escrita mimética dos jovens atuais. Longe disso.

Michel

konjas du tsunami

o kapim koberto d merda e konjas

pekena e lnda konjas du ultimo tsnunamy

a ovelhas kome kapim salgado

I bleed sheeps for um grandgrandfather soup

Sange de ovelhas

(…)

sabe? do you know who i am? nunka a parlato kon usted ke jo it mit

(…)

Flora

(....) Aki na amerika do sul o sol esquenta a fumasa do inverno inteiro, kente.

vose kome karne? (sic)


Ao criar uma língua própria, uma língua que assimila sinais e abreviações do “texting”, mas também inglês, “portunhol”, fonética, gírias etc, Bracher constrói seus personagens na superfície de uma linguagem que oscila entre a fratura dos sujeitos isolados em suas condições extremas e o fracasso da própria norma culta, que parece surgir como mais um sinal de afastamento. É apenas uma linguagem inventada, um código a dois, como o próprio amor, que dá conta desses novos jovens.

A morte anunciada do escriba repete-se em outro diapasão ao final do livro. “Garimpo”, conto que empresta seu nome ao volume, inicia-se com uma “Nota introdutória assinada por Rita Mendes, provável parente de Adriana Mendes”. De antemão, somos informados da morte da romancista em um desastre aéreo quando voltava de uma estadia na Amazônia. O que leremos a seguir, em forma de um “diário de viagem” narra a passagem de Adriana pelo sul do Pará, onde seu irmão tem um garimpo. Um diário escrito para não ser lido por outros: “As características da escrita original foram mantidas em estado bruto, inclusive com os erros, pois são parte da natureza de anotações que Adriana escreveu sem a intenção de publicar.” Ao transformar-se no último registro em vida da escritora o diário é capaz de ganhar variações que vão desde o registro íntimo até o caráter quase antropológico de um diário de campo, em especial, nas “entradas” em que registra admiravelmente o trabalho no garimpo e os trabalhadores.

Perenidade do narrar

É esse “estado bruto” da escrita que intenta aproximar-se da escriba que aqui não sabe do seu fim. As entradas do diário simulam não um aprendizado no sentido da formação, porque este é um diário sem passado ou futuro. É um diário onde só o presente existe. A vida, naquele recorte do país, corresponde ao “estado bruto” determinado pelo ritmo das máquinas e dos homens a extrair ouro enquanto a floresta é destruída. Bracher tem a sutileza de criar uma narradora controladamente em dúvida sobre o que presencia: “Vejo também q. a relação agressiva e voraz com a natureza, à qual eu não quero me opor como um princípio, no fundo, está me deixando de sobreaviso.” A tensão torna-se elemento permanente ao longo do conto, ainda que nenhuma ameaça concreta exista. Paira sobre Adriana a sensação de um mundo perdido antes mesmo de ser conhecido. “O garimpo — a montanha sendo comida.”

É natural que em um livro de contos alguns se sobressaiam mais que os outros, outros pareçam menos precisos. Não é o que acontece em “Garimpo”. Todos os nove relatos mantêm a mesma força e precisão. Inventam mundos a partir de escribas que conhecem a perenidade do narrar.

*Giovanna Dealtry é professora da PUC-Rio e coorganizadora, com Stefania Chiarelli e Paloma Vidal, do livro “O futuro pelo retrovisor — Inquietudes da literatura brasileira contemporânea” (2013)


Enviado por O Globo -
8.2.2014
|
6h40m

Helder Macedo e suas armadilhas sutis

Em ‘Tão longo amor tão curta a vida’, escritor português constrói narrativa original com mescla de romance e mistério

Por Elias Fajardo*

Uma história de mistério onde o mais importante não é o que acontece ou não, mas um mergulho nas relações entre o autor e seus personagens e principalmente numa visão da literatura como uma arte cujo propósito é o de ajudar a entender aquilo que não se entende. O romancista português Helder Macedo considera que uma história contada é sempre uma falsificação e assim usa e abusa do seu poder de criar meandros de significados e reflexões que são o principal foco de interesse deste “Tão longo amor tão curta a vida”. O autor busca controlar seus personagens, que, por sua vez, desejam continuar suas vidas depois que o livro acabar. Como se só assim pudessem ser livres. Ou, como diz Helder Macedo, é preciso libertar os personagens, propiciar-lhes futuros, dar-lhes o livre arbítrio que eles não têm. Para isto ele utiliza continuamente a arte dos paradoxos, labirintos mentais que implicam em que a narrativa está continuamente a ser reinventada.

Um escritor português que vive em Londres recebe certa noite a visita inesperada de um conhecido seu, um diplomata português que está em grande aflição. O visitante desfia uma longa história de sua vida cheia de lacunas e inverosimilhanças. Considerando que a narrativa pode esconder um crime, já que a camisa do diplomata tem vestígios de sangue, o escritor dedica-se então a imaginar a continuação daquilo que lhe foi narrado.

Enquanto serve em Berlim Oriental, o diplomata Victor Marques da Costa apaixona-se pela bela Lenia Nachtigal, uma alemã materialista histórica acostumada a cumprir a lei acima de qualquer circunstância e começando o que deveria ter sido uma promissora carreira de cantora lírica. O envolvimento dos dois é o primeiro grande foco de interesse do livro, pois ela simboliza a muralha alemã oriental, enquanto ele é a própria ocidental praia portuguesa. São dois seres moldados pela sua origem histórica e pelos valores que receberam, e nem o sexo nem a tentativa de construir uma vida juntos pode vir a libertá-los de suas amarras.

Embora seja dado a grandes voos, o escritor português que tenta escrever o livro, o próprio Helder Macedo, logo nos avisa que não pratica o realismo mágico: seu realismo é pão pão queijo queijo, ou seja: “pega-se uma personagem numa situação adequada à sua manifestação e escreve-se o resultado, que é o queijo dentro do pão a fazer um sanduíche em que não há pão nem queijo mas só palavras”. Seus personagens anseiam em tornar-se em palavras, pois logo que o leitor se acostuma a vê-los como de carne e osso, o autor intervém para nos indicar que a realidade nunca é o que parece ser. A cantora Lenia, por exemplo, tenta aprender com os atores “a arte de ser outra para poder ser ela própria, enquanto que no treino de cantora tinha de ser ela própria para poder ser outra”. Na realidade, “Tão longo amor tão curta a vida” pode ser lido não como uma história de mistério a ser desvendado, mas como um exercício literário em que a verdade acaba se transformando no melhor disfarce da verdade. Nesse sentido, tudo que nos é relatado pode ser real ou apenas fantasia, ou uma mistura de ambos, como costuma acontecer na própria vida.

Além disso, o romance também se debruça sobre as relações entre o amor e o poder, no conteúdo de dominação que existe entre alguém que deseja e, por extensão, quer controlar a existência do objeto amado. E as reflexões traduzem não só o mau humor irônico e engraçado do narrador como também suas amargas conclusões sobre a impossibilidade de uma realização amorosa. Para ele, a relação entre um homem mais velho e uma mulher nova, por exemplo, gradualmente se transforma numa espécie de “enfermagem sexualizada que depois fica a ser uma enfermagem sexualmente frustrada”.

Apesar da maestria narrativa de Helder Macedo, este não é um livro de fácil leitura, pois a cada passo nos deparamos com enganos sutis, ardilosas armadilhas, jogos mentais e torrentes de palavras. E assim ele abandona a possibilidade de uma narrativa convencional para construir um romance original em que o autor não sabe tudo sobre as criaturas que criou, mas tem de lidar com o intenso desejo destes personagens de serem eles mesmos. Até que a morte venha transformar tudo isto numa mera notícia de jornal.

*Elias Fajardo é jornalista e escritor, autor dos romances “Ser tão menino” e “Aventuras de Rapaz”


Enviado por O Globo -
1.2.2014
|
7h00m

Manoel de Barros de cartas abertas



Sempre comedido na fala, poeta mato-grossense manteve com escritores e intelectuais uma intensa correspondência que revela seu rigor poético e teórico. Publicação das cartas inéditas está nos planos da família e da editora


Por Karine Rodrigues

Dentro de uma caixinha colorida de menos de um palmo de altura, 18 livros constituem um mundo inteiro inventado: árvores, lesmas, águas, sapos, pedras; e ainda Cabeludinho, Sombra-Boa, Bernardo, Andaleço; e todas as infâncias, dos primeiros fios aos cabelos brancos. Recém-lançada pela Editora Leya, a poesia completa de Manoel de Barros, transformada em som, gorjeia. Mas, pegando emprestado um verso de João Guimarães Rosa, citado pelo poeta mato-grossense em obra publicada em 2001, o escritor passarinho desapareceu de cantar. No ano passado, antes de completar 97 anos, ainda escreveu o poema “A turma”, incluído no último volume da caixinha e também na reedição da poesia completa em formato brochura, lançadas em conjunto. Depois, silenciou.

Em agosto de 2013, o poeta desabou com a perda do primogênito, Pedro, conta a filha Martha. Em 2008, Manoel já passara pelo mesmo sofrimento com João, vítima de um acidente de avião.

— Papai sofreu um baque. E tem o problema da idade. Ele está se apagando como se fosse uma velinha — compara a artista plástica, revelando que o poeta está cercado de cuidados e já não recebe ninguém na casa em Campo Grande, onde mora com a mulher, Stella, de 92 anos, com quem está casado desde 1947, primeira leitora de suas obras antes do envio às editoras.

Diretor editoral da Leya, que publica a obra de Manoel de Barros, Pascoal Soto diz que o poeta ficou ensimesmado após a perda de mais um filho.

— Ele já vinha com a saúde frágil e, após a morte de Pedro, ficou realmente muito debilitado. Então, Manoel, que se autodenomina um bicho do mato, fechou-se por completo.

Apesar do silêncio, Martha acredita que Manoel de Barros está mais ativo do que nunca por meio de sua obra. Além dos lançamentos recentes da Leya, seus livros permanecem alvo da atenção de leitores e despertam o interesse de pessoas que desejam adaptar seus versos para outras linguagens artísticas.

— A edição das obras completas era um projeto muito sonhado. Acho que ficou tudo bem bonito, pois o trabalho dele foi apresentado em livros em formato de bolso, pequenos, delicados como a obra dele, que é muito voltada para as coisas pequenas — avalia a filha, que já ilustrou obras de Manoel com as suas iluminuras.

Embora dificilmente Manoel volte a pegar no lápis para escrever, em sua letrinha miúda, novos versos, seus leitores podem ter outra certeza: há muitos textos do poeta ainda inéditos, cuidadosamente guardados, se considerarmos que as dezenas de cartas que ele trocou com diversos interlocutores são, igualmente, literatura. Sem falar na infinidade de cadernos de rascunhos do poeta que, não é de todo improvável, podem conter escritos ainda desconhecidos do público.

— O papai já trocou cartas com muita gente. Tanto com a família, e eu mesma tenho muitas cartas, os filhos, os netos, como com vários intelectuais. Era a maneira mais forte dele se comunicar com as pessoas. E tem os cadernos de rascunhos, que ele até já me deu e eu sei que é um material precioso. Um dia eu vou ver o que é que tem ali — diz Martha sobre os caderninhos feitos pelo próprio Manoel, nos quais o poeta escreve, a lápis, tudo o que lhe vem à cabeça.

Missivas literárias

Em poucos dias foi possível identificar 12 pessoas com quem o poeta já se correspondeu: o bibliófilo José Mindlin; o embaixador aposentado Mário Calábria; a escritora e professora Berta Waldman; o poeta e jornalista Luis Turiba; a escritora e professora Lúcia Castello Branco; o editor Ênio Silveira; o escritor Bartolomeu Campos de Queirós; o poeta e ensaísta Alberto Pucheu; o antropólogo Carlos Brandão; o filólogo Antônio Houaiss; a curadora da biblioteca Mindlin, Cristina Antunes; e o próprio editor, Pascoal Soto, que enviou a primeira carta ao poeta em 1993.

Doutora em Estudos Literários e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lúcia Castello Branco tem um valioso acervo de cerca de 100 cartas enviadas por Manoel, que foi tema de seu primeiro ensaio, “Palavra em estado de larva”, escrito em 1982, a pedido do “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Na época, ela recorda, Manoel ainda não era muito conhecido, e ela disse ter ficado impressionada com a linguagem ao mesmo tempo primitiva e sofisticada do escritor mato-grossense.

Ao ler o ensaio nas páginas do suplemento mineiro, Manoel enviou uma carta a Lúcia em agradecimento, e iniciou, assim, uma troca de missivas que já dura mais de 30 anos. Até 1996 a amizade era travada exclusivamente pelas bem traçadas linhas. Foi quando veio o convite de Manoel para que ela fosse visitá-lo em Campo Grande, após ele ter lido outro ensaio dela, “Palavra em ponto de p”, sobre a relação da poesia com a psicanálise.

— As cartas eram semanais, quinzenais, mensais. Foram anos de correspondência sem nos encontrarmos pessoalmente. O Manoel sempre ali em Campo Grande, mais recluso. Nem pensei que fosse conhecê-lo, mas quando ele chamou, eu fui. E lá fiquei dez dias, hospedada na casa dele — conta, lembrando que levou na bagagem o seu primeiro romance, “Melancolia”, para mostrar ao poeta.



Segundo Lúcia, Manoel gostou da obra, mas não do título:

— Ele disse: “Arranjei um título tão ruim quanto o seu” e sugeriu mudar para “A falta”. E assim foi feito.

Desde então, a amizade ficou mais estreita. Sobre a correspondência, Lúcia, que junto com Gabriel Sanna fez um longa sobre o poeta chamado “Língua de brincar”, observa que há muito de literatura nelas. Em uma das cartas, de 12 de dezembro de 1995, Manoel diz que “essa coisa de linguagem/psicanálise” o seduz e escreve: “Os lacanianos amigos meus dizem que eu sou prato cheio para os psicanalistas. Todo mundo é prato cheio só que gostam do sofá. Mas eu pergunto: será que os psicanalistas vão descobrir coisas mais profundas dos que não sabem nada sobre as profundidades? Às vezes, tudo é mais superfície, roupa rasgada no corpo, do que ruptura do espírito”.

Nas cartas, Manoel fala de várias de suas predileções, citando Oswald de Andrade, Arthur Rimbaud, Padre Antônio Vieira, os gregos, possibilitando uma nova mirada sobre sua poética, que surgiu muito cedo, ainda meninote, em Cuiabá, onde nasceu, e amadureceu ao longo de uma vida que transcende o Pantanal. Além de ter morado 40 anos no Rio, passou um ano em Nova York, mergulhado em museus e cinematecas, rodou a Bolívia, o Peru e países da Europa. “O que dá dimensão é primeiro a alma, o olho da alma, e depois a metragem”, escreveu.

Por muitos anos Manoel concedeu apenas entrevistas escritas. Depois, aqui e ali, passou a capitular, aceitando trocar a letra pela voz, mas não sem muita insistência. Que o diga Pedro Cezar, diretor e roteirista de “Só dez por cento é mentira — a desbiografia oficial de Manoel de Barros”, lançado em 2008. Arrebatado pela originalidade do estilo do poeta mato-grossense, a quem leu pela primeira vez em 1996, ao ganhar o “Livro sobre nada”, Pedro partiu para Mato Grosso com a tarefa nada fácil de fazer o poeta falar para as câmaras. Conseguiu o feito fisgando o coração de Manoel ao dizer que aquele documentário era, apenas, um sonho.

— Foi um período fértil e muito agradável. Manoel foi acessível e os familiares foram incríveis comigo — rememora Pedro.

Quem também encontrou abertas as portas de Manoel foi Alberto Pucheu, professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele lembra muito bem do dia em que foi ao lançamento de “Gramática expositiva do chão (poesia quase toda)”, na então livraria Dazibao, em Ipanema, em 1990.

— Na hora de pegar a dedicatória eu falei: “Manoel, queria lhe dizer duas coisas. A primeira é te agradecer por sua poesia; a segunda é dizer que não consigo ler sua poesia sem rir”. Ele me respondeu: “Você é poeta! Me liga para você ir lá em casa”, e me passou o número. Poucos dias depois, liguei e ele me chamou para ir ao apartamento dele no Leblon. Fui e foi ótimo.

Pucheu, que passou então a trocar cartas com Manoel, avalia que o escritor deu uma nova conotação ao gênero entrevista.

— Eu me correspondi com ele durante um certo tempo e não tenho dúvidas de que existe um imenso material de cartas a ser descoberto. Em algum momento elas vão surgir e, aí, vai ficar ainda mais indicativo todo o comprometimento dele com o rigor poético e as leituras teóricas. As entrevistas escritas são um prolongamento do seu trabalho poético. Ao dar entrevista exclusivamente por escrito, era como se dissesse: “Publicamente, quero sempre ser escritor”. Elas são uma continuação do pensamento dele, impulsionado por perguntas de terceiros, o que o levava a fazer novas reflexões.



Pascoal Soto sabe bem o valor da correspondência de Manoel de Barros, e, por isso, já vislumbra uma edição, mas não antecipa detalhes.

— Estou avaliando o material que eu tenho. Não consigo estimar agora o que vou publicar, mas estou debruçado sobre isso. Certamente, algo vai sair a partir das cartas — diz o diretor editoral da Leya.

Martha, por sua vez, revela que a publicação das correspondências do pai “é um sonho”.

— As cartas dele são lindas. Tenho de conseguir todas elas. Espero que as pessoas colaborem. A maioria, acho, é de conteúdo intelectual.

A correspondência do poeta traz revelações. Em carta datada de 5 de setembro de 1988, endereçada a jornalistas-poetas da revista literária “Bric-a-Brac”, de Brasília, como Luis Turiba e João Borges, que tentavam arrancar dele uma entrevista, Manoel, diante da pergunta “Por que você foge tanto da fama? Seria medo ou simplesmente tática poética?”, descortina-se: “A mim me falta jeito para pegar na glória. Ela corre muito e fica no alto. Eu trato com trastes. E contrastes. Pra mim ardentes são as coisas desimportantes. Mas gosto quando falam sobre minha poesia. Incho de orgulho. (...) Estufo muito e disfarço. (...) Então, em verdade em verdade, esse negócio de dizer ‘eu só aguento o esquecimento’, é maneira de se exaltar. Esse desejo de apagar-se é, no fundo, um incêndio de orgulho”.

A entrevista, publicada em 1989, ajudou a tirar Manoel de vez do anonimato. Apesar de ter lançado seu primeiro livro em 1937, ao qual se seguiram vários outros, até o início da década de 1980, já na casa dos 70 anos, ele era pouco conhecido. Passou a chamar a atenção após manifestações do filólogo Antônio Houaiss e do escritor e jornalista Millôr Fernandes, que fez vários textos incensando a poética manoelina e criticando a intelectualidade brasileira por não ter ainda despertado para o talento do mato-grossense.

Embora tenha sido por várias vezes o poeta que mais vendeu livros no Brasil, Manoel já comentou que gostaria de também ter sido mais avaliado pelos grandes críticos literários do país, relata Lúcia Castello Branco. O escritor é objeto frequente da academia, por meio da realização de dissertações e teses, mas, na opinião da professora da UFMG, a crítica deixa a desejar.

— Uma vez fui fazer a fortuna crítica dele. E o Manoel brincou: “Eu não tenho fortuna crítica, eu tenho miséria crítica”. Ele merece muito mais. É um dos maiores poetas brasileiros.

Pucheu não deixa por menos. Conta já ter ouvido comentários que qualificam a obra de Manoel como ingênua, intuitiva, regionalista, algo que, para ele, é um “equívoco completo”, pois, segundo diz, “uma escrita tão transfiguradora” só pode ser feita por alguém que tem um conhecimento imenso da tradição poética e teórica. E diz que vê Manoel como uma espécie de “arejamento” em relação à leitura que os concretos fizeram da obra de João Cabral de Melo Neto, cujo trabalho, avalia, marcou a poesia brasileira a partir de 1960. Segundo ele, ambos têm um trabalho poético com o mesmo rigor e intensidade, embora de modos inteiramente diversos.

No documentário “Só dez por cento é mentira”, ao ser indagado sobre como gostaria de ser lembrado, Manoel ri, coça o peito, diz que a pergunta é cruel e, já mais sério, fala que o único jeito é pela poesia. “A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Pra não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”.


Enviado por O Globo -
1.2.2014
|
6h55m

A poetografia de Manoel de Barros



Por Luis Turiba


Bamburramos! Foi uma breve carta do então acadêmico e ex-ministro da Cultura, Antônio Houaiss, que nos mostrou a riqueza crítica e histórica da entrevista que executamos com o poeta pantaneiro Manoel de Barros - na época, quase um desconhecido - para a revista de poesia experimental "Bric-a-Brac", editada em Brasília.

Era fevereiro de 1989 e a carta veio em papel timbrado da Academia Brasileira de Letras. Dizia: “Tive a oportunidade de ler, dentre os que a tiveram em primeira mão, a entrevista que você teve a ventura de entreter com Manoel de Barros. Devo confessar que você me parece triplicemente galardoado: primeiro, porque o fez falar por dentro dos horizontes da sua própria poesia dele, o que me parece algo inaugural, pois se trata, como é público e notório, dos mais casmurros encaramujados poetas do nosso grande poetar.”

O autor de “O português do Brasil” nos abriu a porteira do tesouro que acompanhava aquelas longas cartas que Manoel enviava à equipe de "Bric-a-Brac" – Lúcia Leão, João Borges, Luis Eduardo Resende, o Resa; e eu. Todas escritas com sua letrinha carranchoada de poesia e significâncias. Foram cerca de 20, hoje guardadas em uma velha caixa de papel fotográfico Kodak. São cartas de uma intimidade assombrosa, onde o poeta transcreve em detalhes o seu projeto de linguagem. E foi esse mergulho no seu próprio pantanal poético – uma Poetografia dos Ínfimos – que fez Houaiss apontar a segunda razão pela qual a entrevista entraria para a história: “Manoel de Barros usa de uma franqueza e desassombro de quem decidiu, no instante, cortar as amarras com a discrição e fazer brotar de dentro todas as suas intuições e convicções dos seus muitos anos, muitas décadas de poeta sem-par no cenário poético nosso e diria mesmo universal, graças a um humildismo pungente, que recoloca no centro de nosso universo emocional o homem com todas as suas criaturas parelhas – um muro, um bêbado, uma flor, um verme, o nojo, a visão, a esperança, a palavra, a palavra, a palavra.”

Não foi fácil. Para realizá-la, firmamos com o poeta o princípio do jogo do bicho: só valeria o que estivesse escrito pelo próprio punho dele. Demorou mais de seis meses para ficar pronta. Fomos duas vezes a Campo Grande, onde passamos dias maravilhosos de conversas e belas farras – Manoel demonstrou ser um excelente bebedor de uísque. Ele nos apresentou o famoso caldo de piranha, suculenta iguaria pantaneira de efeito afrodisíaco.

Fazer uma entrevista requer uma estratégia para arrancar o que está submerso. O teste da pergunta é a resposta que ela pode provocar. Há de ser navegar com cuidado, pois são grandes os riscos de ficar com as mãos vazias no final do percurso. MB era, na época (1988), um misterioso poeta, conhecido apenas em círculos restritos, mas já com uma vasta obra publicada, e um traço estilístico fortíssimo de tonalidade muito pessoal – e radical –, dentro da liberdade linguística aberta no modernismo por Oswald de Andrade. Em alguns momentos, sua linguagem elaborada e refinada se avizinha da prosa poética de Guimarães Rosa, com quem conviveu. Em outros, o poema curto, o mínimo de palavras com o máximo de densidade. A concisão de um hai-kai.

Nessas visitas ao poeta, nada de gravador nem anotações. Finalmente, Manoel aceitou experimentar a ideia de uma entrevista via cartas, sem pressa, com ampla liberdade de rever os originais. E assim fizemos novas visitas. Embora tímido, no contato pessoal o poeta foi capaz de descontrair-se e até inventar incríveis histórias – “só uma parte do que falo é mentira, o resto é invenção” -, como a que já havia bebido uns tragos com Noel Rosa na velha Lapa. Seu humor é refinado, cheio de causos. Um exímio construtor de frases. Assim, a histórica entrevista foi construída por mais de 20 cartas que se transformaram em 10 perguntas de um conteúdo poético que hoje faz parte de suas obras completas.

Numa das cartas, MB disse: “Nos poetas há uma fonte que se alimenta de escuros. Coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser ideia ou pensamento. É nessa área do instinto que o poeta está. (...) Aquilo que mestre Aristóteles falou: “Todo conhecimento passa antes pelos sentidos”. O poeta é o primeiro a tocar nos ínfimos. Nas pré-coisas. Aí quando peguei o Oswald de Andrade para ler foi uma delicia. Porque ele praticava aquelas rebeldias que eu sonhava praticar. Seria o que procurava.”

Todas as respostas são (também) poesia no mais alto grau. Mas há uma, a mais longa, onde MB conta do seu encontro com Guimarães Rosa e do passeio que ambos fizeram pelo Pantanal. Cito: “Eu tinha informações de seu gosto por línguas, idiomas. Traçava até línguas arrevezadas: checo, grego, aramaico, sei lá. Queria saber guarani. Foi no caderno, virou, virou, me perguntou: 'Manoel, que quer dizer: não tem nhamonguetá nem bugerê.' Tentei traduzir: quer dizer 'não conversa nem vira de lado. Isso é guaranês; falei de orelhada.' Mas Rosa quer saber a origem, quer saber a explicação."

A conversa entre eles seguiu quilométrica e cheia de desafios. E, ao se despedir de Guimarães Rosa, MB lhe disse: “Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com a sua estética, com a sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto de que esse verbo possa transfigurar a natureza. Humanizá-la.”

Mas voltemos a esclarecedora carta que recebemos de Houaiss: “Nunca se juntou, num único diálogo, tanta informação e tanta emoção sobre o poeta – o que faz da entrevista, do texto da entrevista, algo de agora em diante indispensável para quem queira situar-se na poesia e no universo barresco. Creio, por todos esses motivos e muitos mais que omito, que você conseguiu um feito que todos devemos agradecer-lhe, tamanha a importância da poesia de Manoel de Barros.”


Luis Turiba é autor do livro "QTAIS" (7Letras) e foi fundador e editor da revista de poesia experimental Bric-a-Brac, editada em Brasília de 1986 a 1992


Enviado por O Globo -
1.2.2014
|
6h50m

Resenha de 'O livro roubado', de Flávio Carneiro

Por Renata Magdaleno*

As principais pistas para desvendar “O livro roubado”, do escritor Flávio Carneiro, estão na própria capa. A primeira delas é o nome do autor. Carneiro tem 15 livros publicados, entre romances, coletâneas de contos, crônicas e ensaios. É também professor de literatura da Uerj, com uma carreira longa de estudos na área e paixão pelos romances policiais. “O livro roubado” é o seu segundo romance do gênero que consagrou Arthur Conan Doyle. O leitor que percorre suas páginas entra numa história cercada de muitas outras histórias, referências que vão de autores clássicos como Edgard Allan Poe, o pai do policial dedutivo; o argentino Jorge Luís Borges; e o brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza. Um livro que faz você se lembrar de como é bom um romance policial de qualidade e, ao mesmo tempo, uma verdadeira aula sobre o gênero.

Na história, André, mais uma vez (o personagem é protagonista também de “O campeonato”) adota a personalidade de detetive por acaso. Procurado por um milionário, o rapaz, leitor compulsivo, que chegou a ser demitido de diversos empregos por não conseguir desgrudar dos livros durante o horário de trabalho, é encarregado de descobrir o destino de um livro roubado, uma edição rara de “Histoires extraordinaires”, de Poe, em que estão reunidos alguns dos principais contos do autor, como “Os assassinatos da rua Morgue”, primeiro conto policial que se tem notícia, publicado pela primeira vez em 1841.

Para ser seu assistente, André chama seu amigo Gordo, dono de um sebo, frequentado por personalidades nada convencionais, que vão contribuindo para dar um ar de mistério ao mundo dos livros. Na trama, os segredos dos alquimistas e a presença de sociedades secretas. Como cenário para as muitas discussões, um roteiro que percorre os mais tradicionais botequins cariocas. E a dupla de investigadores vai ganhando cada vez mais adeptos, já que eles dividem as descobertas com todos que cruzam o seu caminho. Até um motorista de táxi acaba envolvido na investigação, uma história que trabalha também a todo momento com o tema do duplo.

Flávio Carneiro não é um escritor apenas de romances policiais, mas está contribuindo para inscrever o país na rota do gênero. Apesar das publicações de mistério sempre terem feito sucesso pelo mundo, no Brasil elas demoraram a emplacar. Só no fim do século XX uma série de autores nacionais começou a investir nas histórias de detetive. Antes disso, o país tinha apenas casos isolados. Como estímulo, um mercado nacional que passou a apostar nas tramas de mistério, com editoras dedicando coleções ao gênero e livrarias destinando estantes inteiras para os livros de suspense.

De lá para cá, já surgiram autores que se consagraram com as histórias de detetive e contribuíram para cativar um público fiel. Garcia-Roza, por exemplo, se transformou no autor brasileiro de policiais de maior sucesso e as andanças de seu delegado Espinosa por Copacabana já viraram um clássico. O André, de Flávio Carneiro, vem contribuindo para que as histórias de mistério não sejam vistas apenas como bom divertimento, mas também literatura de qualidade. Embora “O livro roubado” seja um divertimento dos melhores.

*Renata Magdaleno é jornalista, pesquisadora e professora de literatura


Enviado por O Globo -
1.2.2014
|
6h45m

Blexbolex e suas novas cores para antigas lendas



Primeiro livro do artista plástico francês lançado no Brasil, ‘Cantiga’ explora o universo dos mitos com graça e musicalidade


Por Graça Magalhães-Ruether, correspondente em Berlim

Sob o pseudônimo de Blexbolex, o artista plástico e escritor francês Bernard Granger já conquistou o mercado da literatura infantojuvenil na Europa e nos Estados Unidos. Sua obra começa agora a chegar aos leitores brasileiros com “Cantiga” (Editora Cosac Naify), eleito pelo “New York Times Books Reviews” como um dos dez melhores livros ilustrados de 2013, e vencedor do “Pépite du Livre Ovni”, um dos mais importantes prêmios da literatura jovem na França.

Blexbolex, que tem 47 anos e vive em Leipzig, na Alemanha, credita parte do grande sucesso do livro ao aumento do interesse geral pela literatura infantil. Cada vez mais elaboradas visualmente, essas obras vêm atraindo não apenas as crianças.

— Eu acho que temos um momento de grande interesse por esse gênero, que ocupa também artistas, escritores e designers, o que na França já começou a acontecer na década de 1990 — diz o autor ao GLOBO.

Jogo entre imagem e texto

Em “Cantiga”, ele conta uma história em sete capítulos, que a cada recomeço vai ganhando novos personagens, cores e sentidos. Sua fonte de inspiração, diz, é o filólogo russo Wladimir Propp, autor de “Morfologia da lenda”, obra de referência na área, na qual aponta características fundamentais do gênero, como a presença do herói, do falso herói, ou da princesa. Propp, descendente de alemães, escreveu a obra baseada nas lendas russas, mas a mesma estrutura pode ser encontrada em histórias populares do mundo inteiro. Blexbolex lembra que Propp também influenciou muitos autores da safra atual de literatura infantil francesa.

— O conhecimento da obra de Propp foi muito importante para mim, porque deu a ideia de usar a estrutura muito simples das lendas, com aquele tipo de musicalidade que eu precisava para os meus livros — afirma o escritor.

A musicalidade fica evidente em “Cantiga”, obra na qual palavras e pequenas frases, como refrões, se repetem e servem quase como legendas para os desenhos. Ao longo da história, uma pequena aventura contada por uma criança no caminho entre a escola e a casa — trajeto no qual ela vai agregando princesa, herói, um exército, ladrões, bruxa e duende, entre outros personagens —, vai ficando evidente o jogo duplo entre imagem e texto, que estimula o olhar e a atenção do leiltor. Além dessa brincadeira, o grande trunfo do livro são as belas ilustrações do artista, marcadas pela ausência de contornos e pela sobreposição de cores fortes, que acompanham o tom do narrativa, ora solar, ora um pouco mais sombria.

Em uma obra anterior, aliás, a novela gráfica “Terra de ninguém”, Blexbolex aprofundou sua visão sombria de alguns mitos. E esse olhar distinto sobre antigas lendas é, segundo os críticos, um dos aspectos que tornam sua obra tão interessante. Na luta entre o bem e o mal, personagens do mundo da fantasia mostram que nem sempre os bonzinhos são de fato tão bonzinhos.

Praticamente todos os anos o artista francês recebe um prêmio. Em 2008, seu livro “Jahreszeiten” (Estações do ano) foi escolhido o mais bonito pelo júri da Feira do Livro de Leipzig. No ano seguinte, “Leute” (Gente) conquistou o Prêmio Alemão de Literatura Infantojuvenil. “Cantiga” ganhou elogios dos jornais alemães “Frankfurter Allgemeine Zeitung” e “Neue Zürcher Zeitung”. Blexbolex ainda reage com certa timidez às louvações à sua obra. E conta que talvez fosse ainda hoje um tipógrafo caso não tivesse mantido bem vívidas as recordações de sua infância na França. Da tipografia, na qual começou em 1992, veio a ambição de desenhar e o interesse em contar histórias como as que ouvia quando criança.

— Sempre quis contar histórias, mas no início tinha mais sucesso como desenhista. Já comecei a escrever quando frequentava a escola de arte. Então vi que meus textos não eram o bastante para me expressar e comecei a combinar as duas formas — lembra ele.


Enviado por O Globo -
1.2.2014
|
6h40m

De Édipo a John Lennon



Dramaturgo do musical ‘Edypop’ escreve sobre os caminhos que podem aproximar o mito grego e o ex-beatle

Por Pedro Kosovski*

Tempos atrás, me reuni com o diretor Marco André Nunes para discutir a criação de um novo espetáculo da Aquela Cia de Teatro. Após uma tarde de muitas ideias jogadas ao vento, surgiu um título jocoso: “Edypop”. Era um jogo de palavras que, com a mesma rapidez com que rendeu risadas instantâneas, se dissipou no ar. Outras reuniões se sucederam, mas nada de fato mobilizou tanto nossa atenção artística quanto aquele trocadilho que insistia em sacudir todos os silêncios com estrepitosas gargalhadas. “Edypop... Isso não é sério!” E não era mesmo. Mas, de tão inapropriado, o chiste terminou por se impor como objeto de desejo de nossa prática artística.

Como quem força o encaixe das peças no quebra-cabeça, começamos a juntar as ideias e a apostar no (infame?) jogo de palavras como ponto de partida para a dramaturgia de um musical. E, à medida que nos aprofundávamos na pesquisa, “Edypop” revelava-se um enigma cada vez mais inspirador. Um enigma capaz de multiplicar sentidos e fabular percursos impensados na trajetória de um mito milenar. Vozes que distorcem, recriam e atualizam a narrativa do herói que matou o pai e casou-se com a própria mãe. De Sófocles, Henry Purcell e Stravinsky a Freud e a teledramaturgia brasileira, pesquisar Édipo e seu lugar na constituição do imaginário cultural hoje é lançar-se em uma aventura polissêmica. Um procedimento cujo destino é a relativização da versão “oficial” da história moldada pela força imperiosa do cânone literário estabelecido na tragédia de Sófocles.

Que caminhos poderiam conduzir Édipo (o mais pop dos heróis gregos) até John Lennon (o mais edipiano dos ídolos pop)? Em sua leitura crítica do mito, Junito de Souza Brandão propõe que, na mesma proporção com que conferiu brilho e perenidade ao personagem trágico, a maestria poética de Sófocles cuidou de eclipsar narrativas efêmeras que compõem e oxigenam sua tradição oral. Para citar apenas um exemplo de variação sobre o tema, reza a Odisseia de Homero que, após a morte de Laio, Édipo desposa sua madrasta e não a própria mãe, que teria morrido há anos.

Contemporaneamente, a psicanálise pode ser tomada como o principal agente da popularização do signo de Édipo. E, como se sabe, é na obra do tragediógrafo grego, e não na pluralidade das narrativas míticas, que Freud se baseia para formular sua pedra fundamental da subjetividade — o complexo de Édipo. A partir da apropriação da tragédia, Freud valoriza o incesto e o parricídio. Para ele, “estar apaixonado por um dos progenitores e odiar o outro é um dos constituintes essenciais do acervo de impulsos psíquicos”.

Da perspectiva do mito, entretanto, o parricídio figura antes como consequência do que como causa. Em “Édipo e Variações”, o junguiano James Hillman reforça a ideia de que tudo começa quando, na tentativa de driblar a profecia ditada pelo oráculo, Laio, rei de Tebas, ordena que o filho recém-nascido tenha os pés amarrados e seja morto no inabitado monte Citerão — fato solenemente desprezado por Freud.

A valorização do incesto sobre o infanticídio e a sua transformação em estrutura determinante da relação entre indivíduo, família e sociedade pode produzir uma normatização e uma despolitização das relações afetivas. Contra esse papai-mamãe-filhinho da psicanálise se insurge outra reconhecida obra crítica: “O Anti-Édipo”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. No livro, escrito em meio aos impulsos revolucionários de maio de 68 na França, o filósofo e o psicanalista desmontam a representação do teatrinho inconsciente da psicanálise e politizam o signo de Édipo.

E como não politizar atualmente o imaginário edipiano, pensando não apenas no filho que mata o pai, mas também no rei que se desequilibra, na autoridade que fracassa? Não por acaso uma das etimologias de Laio é “cambaio” e, de Édipo, “pés inchados”.

E aí voltamos ao enigma que motivou a criação: como conduzir o percurso de Édipo até o ídolo pop John Lennon?

As canções da fase final da obra do ex-Beatle foram importantes sinais para a construção da dramaturgia. É nesta fase que surge um dos maiores clássicos do rock, o álbum “Plastic Ono Band”. O encontro com Yoko Ono, o ativismo político, a Terapia do Grito Primal, coordenada por Artur Janov, nos anos 70, constituem um marco definitivo na vida e na obra de Lennon. O que dizer da intensidade mítica da letra e dos gritos viscerais de “Mother”? Ou do presságio de sua morte trágica, que poderia ter sido enunciada pela voz do profeta cego Tirésias, em “Instant Karma”?

Lennon é um herói contemporâneo que criou sua obra em meio às vorazes exigências de consumo da cultura de massa. “Édipo”, por sua vez, narra aos cidadãos comuns a nobre e trágica trajetória de um rei. A questão que se coloca neste ponto da dramaturgia é de ordem topográfica: como criar percursos imaginários e zonas de vizinhanças entre a profundidade da simbologia mítica e superfície da cultura pop?

E esta é a pergunta proferida pela esfinge em “Edypop”.

*Pedro Kosovski é dramaturgo e mestre em Psicologia. A peça “Edypop”, com texto de Kosovski e direção de Marco André Nunes, está em cartaz até dia 23 de fevereiro na Arena do Espaço Sesc (Rua Domingos Ferreira 160)


Enviado por O Globo -
29.1.2014
|
17h11m

Seleção de textos para 'Granta' lusófona é adiada

A editora Tinta-da-China, responsável pela versão portuguesa da revista literária britânica "Granta", informou nesta quarta-feira (29) que as inscrições para a seleção dos melhores jovens autores em língua portuguesa foi adiada por questões contratuais. Inicialmente, o prazo ia de 1º de fevereiro a 31 de julho. Ainda não há novas datas. O anúncio da edição especial dedicada a escritores lusófonos com menos de 40 anos foi feito na semana passada.


Enviado por Guilherme Freitas -
25.1.2014
|
8h00m

Carlo Ginzburg fala sobre seu novo livro, 'Medo, reverência, terror'

 



O historiador italiano Carlo Ginzburg discute nova coletânea de ensaios, nos quais analisa peças de propaganda e obras de arte políticas, e avalia a evolução da ‘micro-história’, campo de pesquisas que ele ajudou a difundir


Por Guilherme Freitas

O historiador italiano Carlo Ginzburg, de 74 anos, é um dos pioneiros de um ramo da disciplina conhecido como “micro-história”. O termo, popularizado numa coleção de livros editada por ele nos anos 1980, abrange pesquisas que, em vez da trajetória de nações ou de grandes eventos e seus protagonistas, abordam o passado por meio de figuras anônimas e fatos cotidianos, aprofundando-se em casos particulares para iluminar estruturas mais amplas da sociedade. Ginzburg ajudou a moldar o gênero em obras como “Os andarilhos do bem” (1966), sobre praticantes de um culto de fertilidade na Itália dos séculos XVI e XVII, e “O queijo e os vermes” (1976), no qual investigou a vida de um moleiro da região italiana de Friuli preso e executado sob acusação de heresia em 1599.

Nos quatro ensaios de seu novo livro, “Medo, reverência, terror” (Companhia das Letras), Ginzburg lança esse olhar sobre imagens que se tornaram ícones políticos, de quadros de Pablo Picasso e Jean-Louis David a propagandas de alistamento no Exército. Mas ele continua menos interessado nos protagonistas, sejam artistas ou chefes de Estado em guerra, do que no efeito das imagens sobre o público anônimo.

No célebre cartaz do Tio Sam com os dizeres “Eu quero você”, e em peças semelhantes de outros países na época da Primeira Guerra, Ginzburg encontra elementos (o olhar frontal, o dedo estendido em direção ao espectador) que remetem a representações medievais de Jesus como alguém que tudo vê. Na capa da primeira edição de “Leviatã” (1651), clássico do filósofo britânico Thomas Hobbes sobre a teoria do contrato social, o Estado é representado como um ser gigante cujo corpo é constituído de inúmeras pessoas, que olham com reverência para a figura formada por elas, sublinha o historiador. Ele mostra ainda como pinturas de Picasso e David, “Guernica” (1937) e “A morte de Marat” (1793), incorporam estruturas clássicas e signos religiosos para dar conta de fenômenos políticos de seu tempo (a Guerra Civil espanhola e os desdobramentos da Revolução Francesa).

Em entrevista por e-mail, Ginzburg analisa um elemento comum entre os ensaios: a ideia de que poderes políticos se apropriam da linguagem da religião para despertar reações de medo, reverência ou terror. Fala também sobre seus métodos de trabalho e analisa a evolução da micro-história nas últimas décadas.

Nos ensaios sobre “Leviatã”, de Hobbes, e cartazes de alistamento para a guerra como o do Tio Sam, você encontra em discursos e na iconografia política elementos que mostram poderes seculares “invadindo” terreno da religião. Como funciona esse fenômeno e quais são suas consequências?

A secularização — termo conveniente mas ambíguo — não é um fenômeno pacífico. É um fenômeno conflituoso e em andamento, que vem invadindo esferas da vida pública e privada dominadas pela religião há séculos ou milênios. (Pela necessidade de concisão, vamos assumir que o significado do termo “religião” é evidente, o que não é o caso.) As imagens são um exemplo desse tipo de invasão: por trás do cartaz do Tio Sam e de seu ancestral britânico, o cartaz de Lord Kitchener, podemos ver gestos que já foram atribuídos a Jesus. Hobbes chamava Leviatã, o símbolo do Estado, de “um Deus mortal”: uma imagem atemorizante. A luta contra ou a favor do secularismo continua diante de nossos olhos. Há poucos anos alguém falou em “retorno das religiões”; mas elas nunca haviam ido embora.

Em outros ensaios, você analisa duas pinturas de Jacques-Louis David e PabloPicasso, “A morte de Marat” e “Guernica”. O que chamou sua atenção nessas obras de arte concebidas como intervenções políticas?

Por um lado, ambas se relacionavam diretamente com um contexto político imediato e podem ser pensadas como atos políticos. Por outro, tiveram impacto a longo prazo, sobre públicos muito distantes dos originais, no espaço e no tempo. Esse paradoxo aparente pode ser explicado pela análise da linguagem — o estilo, a iconografia — usada por David e Picasso, respectivamente. Nos dois casos, a linguagem tinha raízes (enfatizo o plural) longínquas e heterogêneas. Além disso, ambas nos confrontam com uma presença e uma ausência: a presença das vítimas (Marat, os habitantes de Guernica) e a ausência dos assassinos (Charlotte Corday, os aviões fascistas). Há muito que pensar sobre essas imagens. Costumo insistir na necessidade de “ler devagar” (a definição de Nietzsche para a filologia). Insisto também em “olhar devagar” para as imagens.

Em vez da “grande História”, voltada para o destino das nações e seus protagonistas poderosos, você costuma abordar figuras que, como diz sobre o moleiro Menocchio de “O queijo e os vermes” (1976), são “como nós”. Como a micro-história pode mudar a forma como se pensa a História?

É importante fazer um acréscimo: em “O queijo e os vermes” escrevi que Menocchio é “como nós", mas também “diferente de nós”. Um ancestral — mas também o fragmento de um mundo distante e opaco que foi destruído. Essa distância não pode ser superada pela empatia. Empatia, a identificação emocional com alguém, é um atalho que não funciona, pois pressupõe uma proximidade que não existe. O que precisamos é de filologia, num sentido amplo: precisamos aprender sobre uma linguagem (uma cultura) que é diferente da nossa. Mas concordo totalmente com o que você diz sobre história nacional. Eu quis abordar Menocchio, o moleiro da região de Friuli, com uma perspectiva diferente, ampla — mais ampla que Friuli, mais ampla que a Itália. Se não me engano, a recepção do livro confirma que consegui. A micro-história muda nossa percepção da História de muitas formas. Ela nos ensina a não desdenhar de nada (nem de possíveis temas, nem da escala de observação). Ensina também que a comparação, explícita ou implícita, é inevitável.

Você já citou como influências os historiadores franceses da “Annales”, que enfatizavam temas sociais, e o filósofo italiano Antonio Gramsci, principalmente as teses dele sobre o “subalterno”. Que impacto eles tiveram na sua concepção de micro-história?

Fui profundamente influenciado por um dos historiadores que criou a revista “Annales”: Marc Bloch. Li seu livro “Os reis taumaturgos” (1924) quando tinha 20 anos. Foi uma revelação. Eu não imaginava que um livro de História podia focar em um tema tão marginal como o poder de curar escrófula [tuberculose linfática que causava, entre outros sintomas, infecções de pele], atribuído aos reis na Inglaterra e na França. Nem que um tema tão marginal pudesse revelar algo profundo e crucial como as atitudes enraizadas no povo em relação ao poder real. Mas quando li Bloch eu já estava lendo os “Cadernos do cárcere”, de Gramsci [escritos entre 1929 e 1935 e publicados nos anos 1950], pensador que foi para mim, como para muita gente ao redor do planeta, fundamental. Então procurei traços de culturas subalternas na obra de Bloch — pessoas anônimas, homens e mulheres que vieram de longe para se submeter ao poder de cura dos reis. Em retrospecto, eu me vejo como um estudante participando do diálogo contínuo entre História e Antropologia, que atraiu muitos historiadores nos anos 1960 e 1970, na Itália e em outras partes do mundo. Mais ou menos na mesma época li “Rebeldes primitivos”, de Eric Hobsbawn, assim como o ensaio que ele publicou na revista “Società”, do Partido Comunista Italiano, intitulado “Por uma história das classes subalternas” (não sei dizer se esse texto foi publicado em outras línguas). Era uma leitura dos cadernos de Gramsci pelo prisma da antropologia social britânica. Fiquei muito impressionado. Mais tarde, meu diálogo interno com antropólogos envolveu sobretudo Claude Lévi-Strauss.

Aby Warburg, pensador da história das imagens que buscava relações entre épocas distintas, é uma fonte importante para seus ensaios sobre iconografia política e para sua obra em geral. Que caminhos Warburg pode abrir para um historiador?

Conheci a obra de Warburg nos anos 1960, meu diálogo com ela e com a tradição inspirada por ela continua desde então (publiquei o ensaio “De Warburg a Gombrich” em1966, e outro intitulado “A tesoura de Warburg” em 2013). Sou fascinado pela abordagem de Warburg (mais do que por suas conclusões): sua habilidade em combinar a análise detalhada de um caso com uma perspectiva teórica ampla. “Deus está nos detalhes”, como ele mesmo gostava de dizer. Eu aceitaria essa frase como uma definição da micro-história.

A literatura também está muito presente no seu trabalho. Os ensaios de “Medo, reverência, terror” citam de Proust a Orwell. E a estrutura de seus livros tem características narrativas. O que você aprendeu sobre pesquisa histórica com a literatura?

O romance e a poesia nos transformam em habitantes temporários de mundos ficcionais, ao mesmo tempo próximos e diferentes do mundo real. Para historiadores, a ficção é um alimento e também um desafio. Mas o desafio também pode funcionar ao inverso: “Vou ser o maior historiador do século XIX”, disse Balzac. Nossa abordagem do mundo real está saturada de ficção, e a dos ficcionistas, de História. As duas dimensões estão relacionadas de forma intrincada, por isso devemos estar sempre atentos às fronteiras que existem entre elas. Historiadores abordam esses essas questões de forma mais técnica — mas somos todos confrontados com elas, a cada instante.

Quais foram as maiores mudanças no campo da historiografia desde que você publicou seu primeiro livro, “Os andarilhos do bem” (1966)?

Muita coisa, claro. Comecei a aprender o ofício de historiador em um mundo dominado pelo confronto entre Estados Unidos e União Soviética e pela descolonização. A União Soviética desapareceu, novos atores se tornaram protagonistas. Instituições europeias foram criadas, mas a Europa é mais marginal hoje do que naquela época. A chamada “globalização”, processo antigo, entrou em ritmo frenético. Historiadores tentam lidar com esses desafios usando ferramentas diversas. A micro-história, ou seja, a história analítica, é uma delas. Hoje o diálogo entre antropólogos e historiadores, que inspirou meu primeiro livro, parece fora de moda. Eu ainda o considero promissor.


Enviado por Leonardo Cazes -
25.1.2014
|
7h55m

Ascensão e queda da esquerda na Itália

 



Ex-dirigente do Partido Comunista Italiano, Lucio Magri reconstrói em livro a trajetória da organização, do pós-guerra à dissolução, em 1991, que deixou um vazio na política do país

Por Leonardo Cazes

Começou com uma morte anunciada, no dia 3 de fevereiro de 1991, o 20º congresso do Partido Comunista Italiano (PCI): a septuagenária organização encerrava ali a sua história e dava origem ao Partido Democrático de Esquerda (o Partito Democratico della Sinistra, PDS). A transformação, proposta no fim de 1989 pelo secretário-geral Achille Occhetto, ocorreu na esteira da queda do muro de Berlim, do colapso da União Soviética e do chamado “socialismo real”. A decisão não foi uma exceção naqueles anos, mas marcou o fim daquele que ainda era o maior partido de massas da Europa Ocidental e o terceiro maior partido comunista do mundo, atrás apenas da China e da própria URSS. E os reflexos daquela opção são sentidos até hoje na política italiana.

O PCI não era um partido revolucionário, que defendia a tomada do poder pela força. Pelo contrário, teve papel central na redemocratização italiana após a derrubada do fascismo e chegou a ser a segunda maior força eleitoral do país no século XX. O que levou essa experiência a terminar na autodissolução é uma das questões perseguidas por Lucio Magri, ex-dirigente comunista e fundador do jornal “Il Manifesto”, morto em 2011, no livro recém-lançado no Brasil “O alfaiate de Ulm — Uma possível história do Partido Comunista Italiano” (tradução de Silvia de Bernardinis, Boitempo).

A possível história de Magri começa na Resistência italiana à ocupação nazista, que marca a volta do então secretário-geral Palmiro Togliatti a Itália, em 1944, após anos de exílio imposto pelo fascismo, e vai até o derradeiro congresso de 1991, em uma narrativa minuciosa dos fatos. Ele procura reconstruir essa trajetória em um diálogo permanente com o contexto mundial e as mudanças do próprio capitalismo. A relação entre o PCI e a União Soviética, muito tensa e cheia de contradições, também recebe grande atenção e são apontados os seus avanços e limitações.

— O comunismo italiano foi um fenômeno único. O PCI foi de longe o maior partido comunista na Europa, com 2 milhões de filiados por muitas décadas, e esse partido foi dissolvido em 1991 sem nenhuma análise profunda do que ele significou. De lá para cá, muitas biografias foram escritas, mas não são uma reflexão do que ele foi. A razão pela qual Magri escreveu o livro foi para dizer que não era possível simplesmente achar que tudo foi um erro e que deveria ser esquecido — afirma Luciana Castellina, fundadora do “Il Manifesto” junto com Magri e organizadora da sua obra póstuma.

Logo no início do livro, o autor deixa claro que discorda das duas interpretações dominantes sobre a experiência italiana. De um lado, há a leitura de que o PCI sempre foi social-democrata na sua essência e que a sua transformação no PDS foi parte de um processo de reconhecimento dessa mesma essência; de outro, que o partido era uma espécie de quinta-coluna da União Soviética no país. Magri, por sua vez, acreditava que o PCI representava uma via democrática alternativa para o socialismo e acreditava que a Revolução Russa não podia ser simplesmente replicada na Itália.

“Quero mostrar, ao contrário, que o PCI foi, de modo intermitente e sem levá-la plenamente a cabo, a tentativa mais séria, em certa fase histórica, de abrir caminho para uma ‘terceira via’, ou seja, de conjugar reformas parciais, de buscar amplas alianças sociais e políticas, de empregar com firmeza a democracia parlamentar, com duras lutas sociais, com uma crítica explícita e compartilhada da sociedade capitalista”, escreve ele.

Magri entrou no partido em 1956, aos 24 anos, no mesmo ano em que Nikita Kruschev fez o famoso discurso em que denunciou as violências, as deportações e os expurgos promovidos por Josef Stálin. Como definiu o historiador marxista Perry Anderson, no obituário de Magri publicado na revista “New Left Review”, ele entrou no PCI “com os olhos mais abertos do que aqueles que se juntaram ao partido no entre-guerras ou ainda durante a Resistência ao fascismo”. Seu olhar crítico lhe rendeu, inclusive, a expulsão do partido junto com o grupo que lançou o “Il Manifesto”, em 1969. Ele só retornaria ao PCI 15 depois, em 1984, e foi, internamente, um dos grandes opositores da proposta de extinção feita por Occhetto.

Para Luciana Castellina, a principal consequência do fim do PCI foi o desencantamento com a política e o empobrecimento da democracia. O PDS virou, em 1998, apenas DS (Democratas de Esquerda, em italiano). Em 2007, juntou-se a outras forças de centro-esquerda para formar o Partido Democrático (PD), que hoje governa o país com o direitista Povo da Liberdade (PDL), de Silvio Berlusconi. A união das duas forças ocorreu após o Movimento 5 Estrelas, liderado pelo comediante Beppe Grillo, ser o mais votado nas eleições parlamentares de abril de 2013 e se recusar a fazer alianças com os partidos tradicionais. Grillo fez sucesso ao levantar a bandeira da antipolítica.

— O modo como o partido foi dissolvido quebrou a espinha do que milhares de militantes acreditavam. Quando o PCI acabou, uma pequena parte criou um novo partido, Refundação Comunista. O resto foi para o PDS. Contudo, dos 1,5 milhão de militantes na época, 800 mil simplesmente decidiram voltar para casa e abandonar a política. A política deixou de existir como uma atividade social. Restaram apenas as eleições e a presença nas instituições, no parlamento, nos conselhos municipais. O desaparecimento de um partido com impacto social deixou a democracia mais pobre.


Enviado por O Globo -
25.1.2014
|
7h50m

Resenha de 'Em breve tudo será mistério e cinza', de Alberto Reis

Escritor explora vínculos entre passado e presente na história de casal francês que vem ao país em busca de fortuna

Por Stefania Chiarelli*

Há alguns anos, José Saramago apontou a propensão para o monossílabo como forma de comunicação do Twitter, considerando a ferramenta caminho incontornável em direção ao grunhido. O escritor português falava ali em nome da comunidade de leitores supostamente incomodados com o formato e a brevidade associados a tal modelo de escrita. Em tempos de comunicação em 140 caracteres, é certo que nossa atenção fragmentada se acostuma a zapear entre informações e micronarrativas.

Pensando a partir da provocação do escritor português, o que significa hoje ir na contramão dessa tendência e se dedicar à leitura de um romance de quase 600 páginas? Alberto Reis encara todo esse cenário em sua primeira incursão na ficção. O autor mineiro atua na coordenação do Laboratório de Saúde Mental Coletiva da Universidade de São Paulo (USP) e tem livros publicados na área.

“Em breve tudo será mistério e cinza” é um romance histórico formado por cinco grandes blocos. A reapropriação do gênero não é novidade, já que desde os anos 1970 a literatura brasileira tem exemplos dessa linhagem, como “Viva o povo brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro, ou ainda livros de Ana Miranda como “Boca do inferno", entre outros. Mas aqui o leitor não se depara com a polifonia do romance do escritor baiano ou a preocupação de Ana em recuperar a dimensão oral da linguagem. Em termos de soluções estilísticas, estão ausentes estratégias que identifiquem as vozes de diferentes grupos sociais ou étnicos: escravos, franceses, sinhazinhas e autoridades se expressam praticamente da mesma maneira.

Didatismo prejudica narrativa

Se esse importante traço distintivo está ausente do romance, na referência explícita a personagens e eventos históricos o autor dialoga com a reescritura da História. O laço entre escrita ficcional e discurso histórico é problematizado a partir do momento em que outras verdades e narrativas vêm à tona. Ao voltar-se para a paisagem do Brasil oitocentista, Reis visita o passado sem nostalgia. Negociatas e interesses privados dominam a trama. O romance parte da viagem de um casal francês no início do século XIX rumo ao Brasil em busca de novas chances e fortuna. Nos trópicos, a exploração e o comércio de pedras preciosas caminham paralelamente à adaptação dos europeus às práticas culturais brasileiras, a exemplo da substituição do nome Honorée por Madimorê, palavra mais fácil na boca dos escravos. As crendices, mandingas, rezas e batuques constituem belas passagens do texto, que tampouco se exime de focalizar as relações promíscuas entre adultos e escravas ainda crianças, ou entre padres e seus ajudantes. Praticamente ninguém fica livre da sensualidade dos trópicos.

Os temas da corrupção e dos desmandos dialogam com o leitor contemporâneo, apontando vínculos entre o Brasil de hoje e o de nossos antepassados. Esse passado como leitura do presente é aspecto nada desprezível da narrativa. Entretanto, longos diálogos e o didatismo de determinadas passagens comprometem, por vezes, a fluidez da leitura, desacelerando a agilidade e o domínio do ritmo, que são méritos da trama.

A busca do Eldorado se revela ilusória, e nessa paisagem se movem viajantes, escravos, mulheres misteriosas, bandidos e comerciantes: “Tomem cuidado. Na Demarcação Diamantina, as coisas não são como parecem. Tudo é fugidio. As declarações, as posses, as afirmações, as juras, as indignações, tudo escorrega. Tudo corre pelas águas dos riachos, tudo rola como as pedras”, alerta um personagem.

“Em breve tudo será mistério e cinza” tem início com os protagonistas a bordo de um navio, e se encerra com os mesmos náufragos em uma canoa. As imagens e o tom melancólico do título revelam visão pouco alentadora dessa trajetória. Na Europa, proliferam tramoias e traições, e no Brasil a situação não será muito distinta. Como joguetes de uma trama bem urdida, os personagens aceitam sua jornada, sem esperar pela redenção.

*Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na UFF


Enviado por O Globo -
25.1.2014
|
7h45m

Resenha de 'A invenção do amor', de Jorge Viveiros de Castro

Por Claudia Nina*

Um editor é alguém acostumado a retalhar textos, a dobrar as esquinas da linguagem, a escrever por cima, a apagar escrevendo e vice-versa. Um escritor que tem como ofício a edição não consegue — por mais que tente — deixar de ser um para ser outro, ou seja, aquele que simplesmente escreve. Ambas as trajetórias ficam misturadas — e isso é bom. Primeiro porque, de algumas das ciladas, ele já se livra de cara: escrever “tudo”, escrever certinho, contar a história, pontuar detalhes que não inventam, apenas alongam. É bem verdade que escrever sobre rasuras é a quebração de rochas de qualquer autor, mas quando se conhece por dentro o trabalho de uma edição, quando já se tem o olhar gasto e debruçado sobre tantos originais, imagina-se que o esforço em remover entulhos seja ainda mais desgastante.

É o caso de “A invenção do amor”, de Jorge Viveiros de Castro, editor da 7 Letras, um texto que parece torturado pela intenção de criar um jogo de pessoas — inventa-se um duplo, um eu perdido, que não sabe ao certo o que fazer com as palavras, e ainda personagens fabricadas, mulheres, que entram neste mesmo tabuleiro para a encenação da escrita. A primeira frase já é comprometedora quanto à criação dos duplos que nada mais são do que extensões ficcionais do “verdadeiro” eu: “A gente não escapa de si mesmo”.

E segue: “Inventei então um personagem, um outro, um falso eu, na verdade uma falsa ela, uma outra, uma mulher que não fosse Laura, uma amiga quem sabe — minha nova companheira, alguém que pudesse dizer a ela, mesmo por escrito, tudo que ficou calado. Porque havia ainda um monte de palavras, possíveis ou impossíveis, urgentes e necessárias; mas que fossem as certas, e não aquelas que falei intempestivo ou deixei em silêncio, as que a levaram embora”.

São fragmentos, “páginas de costura frágil”, recortadas por capítulos breves e sem muita conexão. A busca é por uma escrita que capte o silêncio da falta de resposta, que componha um passado que não aconteceu, que rastreie um futuro que é depressa depois que passa. E o presente? É o ato de se recriar o livro (perdido e inacabado) de um outro a partir de ruídos e achados. Do que se fala mesmo? De tantas coisas e de nada. De tantas pessoas e de ninguém. Um texto feito de esboços e de promessas, de anotações para um romance a ser finalizado.

Um detetive e um autor morto, uma mãe doente. Mais personagens em cena. Tirando os fiapos de história, elabora-se, nos ocultos, uma reflexão sobre o ofício de escrever um romance. Um grande quebra-cabeça? Sim, daqueles que levam dias ou meses, feito de cuidados e minúcias. Vale para romances inacabados e para os que estão prontos, mas lembrando sempre que (quase) nunca um autor considera “acabado” o que escreveu, pois a palavra falha e não há na linguagem a verdade impossível; não há mais ilusão de que os sentimentos caibam nas palavras. Busca-se, então, a “não palavra”.

“A gente não escapa de si mesmo”: a frase pode ser usada para entender esta impossibilidade de desatar as pessoas dentro do eu; os outros tantos que se multiplicam em espelhamento e, às vezes, se estranham.

*Claudia Nina é jornalista e autora de “A palavra usurpada"


Histórico

2014:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2013:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2012:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2011:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2010:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2009:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2008:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2007:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


2006:

Jan | Fev | Mar | Abr | Mai | Jun | Jul | Ago | Set | Out | Nov | Dez


Resenhas