Lygia Fagundes Telles é uma dessas escritoras que dá prazer entrevistar. Seu pensamento é leve, inteligente, natural, colaborador e muito carinhoso. Veja o cartão (com estampa de Franz Kafka) enviado por ela, logo após a publicação:

"Meu caro Everton de Paula, que bela entrevista você fez com esta sua escritora! Sabe que fiquei emocionada? As fotos também estão excelentes, o fotógrafo andou fazendo retoques - ah! esses mineiros tão delicados! Não é em vão que o mais amado amigo que tive (C.D.A) era de Itabira. E você viu? Faleu numa Minas revolucionária, lembra? E vocês elegeram o Lula!... Isto é um bilhete que leva o meu abraço muito afetuoso, até breve!"

Lygia Fagundes Telles

  Suplemento Literário do Minas Gerais



Declarando-se adepta da liberdade ampla e restrita, Lygia Fagundes Telles confessa nesta entrevista sua decepção com a fórmula usada pelos profissionais da política brasileira, e conta também, como consegue fazer política sem participar do poder público. "Faço política ao poder político", diz. Segundo ela, sua mensagem política está por inteiro em sua obra literária: "Denuncio de forma romanceada as torturas, os vícios, as feridas, os mandos e desmandos de nossa sociedade." A denúncia, para ela, deve ser feita de forma indireta; assim, atinge a consciência de maneira reflexiva. Em seus 25 livros publicados, dos quais 16 à venda nas livrarias, Lygia mostra um pouco de seu mundo coordenado, contemplativo e de sua segura maneira de pensar. Em São Paulo, onde mora, preparando para viagem, a fim de cumprir dois convites do Congresso dos Escritores no Canadá e na Alemanha, a escritora nos atende para falar de sua obra e de si mesma, como mulher.

O Editor.

  Entrevista à Everton de Paula

Você é contra ou a favor do intelectual no poder político?

Falo por mim, o poder político não me atrai. Sou avessa a ele. Me sentiria mal no poder de um modo geral. O único poder que me interessa é o da palavra. Respeito e até entendo os que desejam o poder. Aliás, toda classe deve ter elementos na participação do sistema.

Mas você faz política, não?

Ah, sim! Através dos meus livros, pratico minha ação política. Considero minha obra uma contestação política. É só observar com cuidado e verá minhas críticas de forma romanceada.

De que maneira você tenta passar para seu leitor uma mensagem crítica?

Por vias indiretas. Nelas procuro despertar uma consciência política. Uso o processo do envoltório, do imaginário, desembrulho as denúncias contidas nos livros. A gente não pesca mosca com vinagre, só com mel. É nessa circunstância de sedução que procuro praticar minha contribuição política. Aponto as feridas, os vícios da sociedade, as falhas dos dirigentes, as fraquezas do homem de um modo geral.


Fotos: Everton de Paula

Esse tipo de sedução indireta, provavelmente é uma forma direta de dizer as coisas, não?

Creio que o escritor não deve fazer a denúncia de forma direta. Não sou adepta de escrever livros premeditadamente políticos. Pode não dar certo. Entendo que a forma da mistura, ficção e imaginação com a realidade, faz o leitor se interessar mais pelo livro. Quem lê quer antes sonhar com o texto literário. A denúncia deve ser feita de maneira ambígua, porém reta no objetivo.

Dê um exemplo de sua forma.

As Meninas, escrito em 73, é um bom exemplo. Poucos críticos perceberam as minhas contestações políticas. Deve ter sido esse livro, o único que teve a audácia de apresentar um panfleto que descrevia a tortura. Este panfleto recebi em minha casa, com as devidas incrementações  literárias. Denunciei aquela prática da ditadura que sufocava nosso País. Cabe ao leitor ficar atento à maneira que cada escritor tenta passar sua mensagem.

Até que ponto você acredita nesta fórmula como meio de solução?

Meu desejo de esperança é muito forte. Escrevo com fervor. E é, justamente, esse fervor que me impulsiona a produzir com a intenção de estender a mão como uma ponte a meu leitor. Sinto nessa busca a colaboração para caminharmos à procura de soluções. Às vezes, até o faço com medo, mas não recuo, mesmo percebendo as dificuldades e os perigos.

Qual a mensagem escrita por você, totalmente corajosa?

O romance As Horas Nuas. Foi um ato de coragem, de conquista, uma vitória. Escrevi sem medo sobre o medo. Escrevi com a maior liberdade, deixei que os personagens se despissem.

Totalmente?

Sempre fica um veuzinho sem tirar. A gente nunca consegue desnudá-las totalmente. As pessoas são ambíguas, elas não se entregam num todo.

Seus personagens são testemunhas de sua experiência, ou têm muito de Lygia?

Os personagens são como nós mesmos, por isso, sempre fica um último véu.

Tirar esse último véu é perigoso, e difícil não?

(Riso). Por mais que alguém se dispa diante de outro alguém, sempre fica algo para desvendar.

Lutou muito para despir os personagens de As Horas Nuas?

Lutei até conseguir que eles se entregassem, se colocassem numa posição de doação absoluta. Era a busca da liberdade que desejava delas, e ao mesmo tempo a liberdade que exigia de mim. É o livro mais livre e louco que já escrevi.

Falta muito para a escritora conhecer a pessoa Lygia?

Me conheço mais ou menos. Acho difícil a pessoa se auto-conhecer; até mesmo, se auto-analisar. Me conheço mais quando escrevo. Através das minas personagens, vou me revelando a mim mesma.

Tem sido uma descoberta lenta, porém gradativa...

Sim, a cada revelação de um personagem me aprimoro mais, coordeno, por assim dizer, as minhas idéias.

Em algum momento você age com rapidez?

Não vivo a vida na pele. Não escrevo na pele. Escrevo a pele, levanto a pele, dentro dela, esmiúço tudo. A rapidez lhe coloca na superfície.

Parece que a contemplação lhe é bem característica...

Muito! Gosto de ficar olhando uma parede, uma flor, um objeto qualquer, horas seguidas, sem que esteja acontecendo nada.

Nesses momentos, que passa pela sua cabeça?

Posso estar olhando para dentro de mim mesma, ou descansando, como se estivesse dormindo. Talvez, descanso mais assim do que dormindo, porque, dormindo, não sonho nada. É um momento de viagem pelo vazio. Estou vazia nesses momentos.

Nessa viagem do vazio pode acontecer uma criação, tal como fez Galileu Galilei, ao descobrir o que deu origem ao relógio de pêndulo, inventado pelo sábio holandês Christian Heygens? Dizem que ele estava distraído olhando o balanço de um lustre. Nesse vaivém verificou a amplitude do movimento que diminuía pouco a pouco, mas o tempo de duração de cada movimento era sempre o mesmo...

Curioso, não? Por isso que não acredito na ociosidade pura. Ela sempre se mistura a uma situação de trabalho interior. Nunca cessa dentro de si mesma. As Horas Nuas pode ter sido um desses exemplos. Antes de escrever esse romance, estava meio nebulosa, era uma mistura de insatisfação, ansiedade e indecisão. Não sabia definir a situação em que me encontrava. Creio que num momento de contemplação desses é que foi germinada a idéia do livro. Veja a ambigüidade dos fatos; do vazio surge uma obra.

 

A morosidade é uma das características sua.

A imprensa diz que fiquei 15 anos sem escrever. Não é verdade. Apenas não escrevi romance. Produzi muitos contos, crônicas. Sou lenta mesmo, sou lenta para esse esgrima do mundo de hoje, onde tudo é imediato. Se uma pessoa me agride, demoro horas para me recuperar. Se exige uma resposta já, não consigo; só me vem uma boa resposta depois que a pessoa já não está mais presente. Aí me vêm ótimas respostas. Preciso de tempo para me aprofundar, fazer minha base.


A posição do intelectual, especialmente do escritor, é bastante melindrosa. Uma resposta mal dada pode acarretar sérios desvios. De que forma o intelectual de boa intenção pode auxiliar a consciência de uma sociedade?

Vejo como uma corrida de revezamento. O intelectual tenta somar a força dele à da sociedade comum, como um todo. Passa o bastão sem exigir que haja vencidos e vencedores. Todos devem caminhar em busca de uma realidade única: a liberdade, Sem competição. É isso a nossa pretensão.

Num País como o nosso, onde a televisão é o meio mais competitivo e rápido na composição de valores da sociedade, como fica a contribuição dos intelectuais, que de certo modo é morosa?

É um caso sério. O intelectual tem a consciência de que lida com um material muito precioso - o imaginário, o sonho, a formação de um ser. A televisão, também responsável pela formação da sociedade, não tem a mesma preocupação. Devido à sua precisão, ganha mais espaço. Nossas crianças, os homens de amanhã, são as mais afetadas. Para elas são oferecidas escolas da vulgaridade, da bobagem, da mediocridade. Veja como ela e os adolescentes fazem culto às pessoas que tem pouco a dar. Elas são tratadas de forma depreciativa. Que vai acontecer? Teremos uma sociedade confusa, mal-educada , de formação fraca, sem filosofia de vida. A criança é uma cera mole. Se as mãos que a moldarem forem grossas, o resultado vai ser um molde mal polido.

Cite pelo menos dois intelectuais de relevante posicionamento crítico, que sem participar de poder político deu sua mensagem política.

Carlos Drummond de Andrade em seus poemas deu o recado: "Tu não me enganas, mundo; eu não te engano a ti." Cecília Meirelles, em seu Romanceiro da Inconfidência, também fez sua revelação de contestação política.

"POR MAIS QUE ALGUÉM SE DISPA DIANTE DE OUTRO ALGUÉM, SEMPRE FICA ALGO PARA DESVENDAR."

Alguém já lhe cobrou um posicionamento político mais atuante, como por exemplo: a filiação em partidos ou coisa semelhante?

Faço política com o poder político. A minha posição partidária está, por inteiro, nos meus livros: As Meninas, As Horas Nuas, Ciranda de Pedra, Seminário dos Ratos. Todos os meus livros estão comprometidos com o engajamento político.

Alguma crítica à filiação aos partidos políticos?

Eles são muito mandões. Não aceito imposição sem questionamento. Tenho minhas éticas, meus códigos. Agora, isso não quer dizer que tenho críticas aos afiliados, até há um grande respeito de minha parte. Eu é que não concordo em rezar pela cartilha deles. Quero a liberdade, mesmo que seja a liberdade de errar.

 

Que acha da profissão de político no Brasil?

É um horror. Aonde chegou o profissionalismo político nesse País! A política deixou de ser coisa séria, transformando em um mecanismo de ganho, de mando e desmando, de conquista. Essa fórmula usada por políticos brasileiros é lamentável. O povo está colérico de tanta afronta no sentido da corrupção, da malandragem, da safadeza, da desonestidade. Diante dessas bandalheiras, o povo se coloca pronto a cometer uma loucura. Ele quer conquistar os seus direitos, moralizar essa coisa necessária que se chama política. Isto é bonito. É necessário.

É possível metamorfosear a realidade brasileira?

Claro! Seria maravilhoso. É só acreditar no poder de criação, e aí, o imaginário do Brasil pode acontecer. É só sabermos colocar as pessoas certas no seu devido lugar. Temos o direito de sonhar um sonho limpo como o dos Inconfidentes que buscaram a verdadeira justiça social. Falando assim, me lembro de um ditado: "Minas é rica em loucos e artistas", - em pensamentos revolucionários - também.

  Lygia por Lygia

Sou do signo de Áries (19 de abril) e que é o próprio domicílio do planeta Marte. A cor do signo é o vermelho mas, também aposto no verde: minha bandeira (se tivesse uma) seria metade verde, metade vermelha - esperança e paixão. Fervor e cólera, a cólera rápida, breve; os de Áries não guardam rancor. A infância foi meio selvagem, em pequenas cidades no interior de São Paulo, Apiaí, Assis, Sertãozinho. Em Apiaí, meu pai foi promotor e dono de um pedaço do Morro do Ouro. Tem mesmo ouro, pai? eu perguntava e ele sorria evasivo, era um homem brando e desligado, não me despertes se sonho, pedia na sua vaguidão como pedia Dom Quixote. Muitos cachorros. Muitas árvores no quintal, mas os frutos eram colhidos verdes; tinha pressa porque sabia que quando ficassem maduros não seriam mais para mim. Eu ouvia muitas histórias de lobisomens e procissões de esqueletos que em noites de lua (todas as noites eram de lua) vinham com seu canto fanhoso bater na nossa porta. Um dia descobri que se contasse as histórias, ao invés de ouvi-las, sofria menos. Foi assim que passei de ouvinte a narradora. Meus primeiros escritos datam dessa meninice, após o aprendizado com a sopa de letrinhas, comecei a escrever com aquela antiqüíssima soma de abecedário, alinhando as letras nas bordas do prato. Alguns dos meus textos nasceram de uma simples imagem. Outros, de uma frase. Ou de um sonho. De resto, acho que é tudo mistério-sortilégio, magia, impossível de localizar nesse fundo criatura e criação.
Alguns autores conseguem se explicar tão bem. Eu não. Escrevo e esse corpo-a-corpo com a palavra já me toma o tempo que se faz cada vez mais curto; tanto telefone, tanto resfriado, tanta perplexidade. Notre pâle raison nous cache L'infini. - escreveu Rimbaud. O artista é um visionário. Um vidente. Analisar essas visões me parece tarefa acessória, não principal. Percorrendo agora a lista dos livros que escrevi, fico com meia dúzia. A função do escritor? Escrever por aqueles que muitas vezes esperam ouvir da nossa boca a palavra que gostaria de dizer. Comunicar-se com o próximo é, se possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-lo no seu sofrimento. Na sua fé. Isso requer amor, o amor e a piedade que o escritor deve ter no coração.
(Extraído de Cultura Impressa)
 

  De Horas Nuas

Adeus, Zelinda, eu digo. Ela se afasta da minha lembrança num vôo de pássaro que quer apenas se juntar aos outros na grande copa da árvore da praça. Adeus minha praça que ainda não morreu mas é como se tivesse morrido. Na mais       das árvores - aquela ali? deponho a minha cruz, posso?
Essa cruz ainda vai voltar um dia, essa cruz da procissão da memória eu sei, mas por ora estou livre dela. As testemunhas voltaram aos seus ninhos, a copa aqui da árvore está fervilhante. Sigo pela alameda cambaleando um pouco mais leve. Chego até a calçada. As pessoas - tantas - me olham ou não olham e passam, preocupadas com a própria cruz, mas quem quer saber? Sou uma desconhecida pisando na cidade que conheço e desconheço, ninguém vai me puxar pelo braço, bater no meu ombro. Dou um doce se lembrar do meu nome! Nenhum amigo ou inimigo, primo ou prima, ah, estou contente, vontade de recreio, correr no recreio sem medo, quero a Lili com seus vidrinhos, Califórnia, Lili? Califórnia. E vejo de repente Miguel falando com a voz de Diogo e repetindo o verso de um roqueiro, se você for a San Francisco, não deixe de por flores no cabelo. Papoulas? perguntei e ele riu. De preferência.
__Táxi! grito e o táxi pára, esse é confortável. E o chofer é gentil, preciso de gentileza e ele adivinhou, conhece a rua.
__Trabalhei num ponto desse bairro, todas as ruas têm nome de passarinho. Deixei por lá muito freguês. No painel do carro, nenhuma proibição.
__Posso fumar?
__Pode sim, eu também fumo dona. Pretendo deixar mas ainda não chegou o dia.
Ainda não chegou o dia hem? Quero  rir mas estou séria quando pergunto a Lili se ela não acha que estamos maduras demais para essa viagem. Ela sacode a cabeça. Ah, que idéia, querida! Vamos conhecer de perto um californiano grandalhão, bem-humorado. De perto? Você está doida Lili?
De manhã eles acordam antes de nós e ficam nos examinando ainda na cama, avaliando e fazendo seus cálculos. Mas afinal quantos anos terá essa vacona? Okay, cinqüenta, cinqüenta e cinco? Vagas aproximações, dirá a Lili fazendo boquinha de trinta e oito. Fico fumando e sonhando nas nuvens estacionadas, brancas, hoje não há conspiração. E Ananta, hem? Lili acha que ela está feliz também com suas bonitas pernas ainda firmes. Tomo sua mão, não quero magoá-la e por isso falo com cuidado, mas lá detestam os velhos, querida. Metem todos em asilos, aquelas simpáticas moradas de repouso, com pátio, jardim, algumas tem até capelas onde os velhinhos gostam de rezar, cantar. E estamos meio velhas, queridinha, alta velhice.
Ah, não é velhice, é maturidade? Alta maturidade!
__Este bairro é bonito. Eu tinha um freguês que morava um pouco adiante, um senhor aposentado muito distinto. Viajou, disse que queria morrer sozinho lá na terra dele, é português.

(páginas 158, 159 de Horas Nuasm segunda edição, de Lygia Fagundes Telles, Editora Nova Fronteira, Rio, 1989)