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Folhetim
OS DENTES DE BERENICE

2º capítulo

O doutor Abelardo como todo homem reconhecido, respeitado e admirado por muitos, despertava ciúmes de alguns, rivalidade de outros e inveja de todos, mas, foi justamente um desses invejosos que o apelidou pelo modo que ele ficou definitivamente conhecido, e reconhecido, el amputador.

 

Esse era o seu principal trabalho. Amputar. O doutor Abelardo, nos últimos cinqüenta anos, amputara. Mãos, braços e antebraços, pés, pernas e coxas, orelhas e narizes, seios e pênis e até uma ou duas bundas.

 

Extraia, também, em menor escala, rins, vesículas, olhos, ovários, úteros, gônadas, testículos, línguas e o que mais se pudesse extrair.

 

Esse era o seu trabalho, amputar e extrair fosse o que fosse para salvar vidas. O doutor Abelardo vivia em plena guerra. Propriamente uma guerra, não. Quem vive em guerra vive entre mortos e mutilados. O doutor Abelardo raramente, eu disse raramente, esteve entre mortos.

 

Os pacientes, dos quais amputou a bunda, mais conhecida como bacia do ilíaco, não sobreviveram por muito tempo. Porisso, consciencioso, o grande médico não amputou mais que duas ou três, preferindo que os pacientes com problemas nesta região suportassem seu fardo por mais algum tempo, na base de remédios e morfina, do que restarem sem a bacia e logo acabarem mortos.

 

Incansável, o grande cirurgião combatia sem trégua diuturnamente cânceres, putrefações, decomposições, degenerações e diabetes.

 

Dona Matilda, a enfermeira-chefe, trocou um rápido olhar com o doutor Abelardo e voltou à sala de cirurgia.  A noviça, ainda enrubescida pelo berro, apertando a esponja com a mão tremula, se dirigiu ao abrigo da irmã veterana, seus lábios pálidos pelo medo e pelo contraste com a cor do rosto, não arriscaram balbuciar, temendo novo grito, mas seus olhos tonitroavam. A irmã veterana aproximou-a, tomou-lhe a esponja, antes úmida do suor do médico e agora encharcada do suor da futura freira e, sem dizer palavra, consolou-a, como se dissesse: Filha, aqui, a morte é a nossa companheira mais constante.

 

É certo que a noviça não desconhecia a presença constante da morte na Santa Casa, é certo, também, que não se tratava de sua primeira experiência com a morte. Talvez, o pavor que a descontrolava resultasse mais da surpresa da presença da morte numa cirurgia do doutor Abelardo do que da presença da morte em si.

 

Foi neste instante, que a noviça, afinal, conseguiu olhar para o grande médico e reparar que ele permanecia inabalável, sereno, sequer incomodado com o berro seguido do alvoroço que, aparentemente, empanara a alegria, o princípio de euforia e a agitação dos cumprimentos. O médico permanecia impassível, a justificar o epíteto que o invejoso lhe lançara. A jovem noviça não deixou de observar: tratava-se, de fato, sem sombras de demérito, del amputador.

 

O quadro é estável. Dona Matilda voltou da sala de operações. – A paciente respira, dorme com o efeito da anestesia, o pulso oscilou e caiu, batimentos estão normalizados agora.

 

Doutor Abelardo olhou para a noviça, cujo rosto passou da cor de romã para a cor da pêra, pegou-a pelo braço como se lhe tomasse o pulso e explicou, carinhoso – Irmãzinha, primeiro, olho no paciente, depois no aparelho. É mais confiável.

 

A noviça, que retornava ao estado de cor de romã, ou seria melhor dizer, que passava de cor de pêra a cor de pitanga, agradeceu aliviada e prometeu, com os olhos, umedecidos pela lágrima mais satisfeita que por ali se vertera, que tomaria mais cuidado etc.

 

De volta aos cumprimentos, o grande cirurgião ouviu uma recomendação do anestesista. – Olho na paciente. Oxigênio e desfibrilador.

 

UTI, doutor? – perguntou dona Matilda.

 

Melhor. – disse o médico. – Temos vaga, irmã? A moça deve desfalecer pelo menos mais uma vez.

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        Que fim aguarda essa triste paciente? Não perca o 3º capítulo

                                      Domingo, dia 11 de maio

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 1º Capítulo