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“Elite branca” no Brasil

Por Adelto Gonçalves

 

AS TRAPAÇAS DA SORTE: ENSAIOS DE HISTÓRIA POLÍTICA E DE HISTÓRIA CULTURAL, de Isabel Lustosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 314 págs., 2004. E-mail: editora@ufmg.br


Adelto Gonçalves (*)

Em maio de 2006, quando uma organização criminosa nascida e comandada das penitenciárias dirigiu uma série de ataques a delegacias e bens públicos, causando várias vítimas e muitos prejuízos, o governador do Estado de São Paulo, Cláudio Lembo, atribuiu à insensibilidade de uma pretensa “elite branca” os atuais desníveis sociais que seriam a causa da onda de violência. Sem perspectivas na sociedade brasileira de hoje, os jovens nascidos e criados em favelas e periferias e “educados” numa escola pública em frangalhos não teriam outra opção a não ser engrossar os exércitos da criminalidade.
Partindo de um antigo professor de Direito de duas das mais tradicionais universidades privadas de São Paulo, a Pontifícia Universidade Católica e a presbiteriana Mackenzie, a análise não surpreendeu por sua percuciência. De fato, as elites brasileiras — com paulistas à frente — estão entre as mais predatórias do mundo, “com uma história muito amarga de cerceamento de pessoas”. Com sua insensibilidade, essa elite — que é só elite, sem qualquer adjetivo — muito têm contribuído para agravar as distorções que tornam a sociedade brasileira uma das mais desiguais e injustas da face da Terra.
O chamamento à realidade do governador — de ascendência italiana —, portanto, soou como um alarme, uma advertência de que algo precisa ser feito para diminuir as disparidades de renda, sob o risco de o País virar um Haiti, única nação, aliás, que, nas Américas, vem conseguindo crescer menos que o Brasil.
Chamar essa elite de “branca” é que não está certo. É desconhecer a história do Estado. Quem já revirou os papéis do Arquivo do Estado ou mesmo leu os extensos volumes que reproduzem grande parte desses documentos dos séculos XVII e XVIII sabe que o paulista, aquele homem que se atirava aos sertões para aprisionar e, em muitos casos, degolar índios e, depois, atrás de ouro, prata e pedras preciosas, arrastando assim em direção ao Pacífico a imaginária fronteira estabelecida com Castela no Tratado de Tordesilhas, nada tinha de branco. Era, isso sim, um homem de pele escura, de feições indígenas, assim como os bolivianos e os paraguaios de hoje.
E o sangue português? Claro, corria nas veias daqueles homens, que viviam em pequenos povoados de Serra acima ou mesmo em São Vicente em terras de marinha, mas misturado a muito sangue indígena. Afinal, nos navios que traziam portugueses para a América não vinham mulheres. Até entre os nobres nomeados governadores foram raros aqueles que trouxeram família. Portanto, as mulheres disponíveis na terra eram as índias e, depois, as africanas e as miscigenadas.
Foi dessa gente de sangue português cruzado com sangue indígena e africano que nasceu a elite paulista. À custa de escravizar indígenas, conquistar e semear a terra e buscar o ouro, alguns deles chegaram a potentados, viraram régulos que andavam com 200 e tantos índios e negros armados e montados. Eram considerados homens bons, expressão da época que designava quem detinha poder econômico, mas não fidalgos: as atividades que desempenhavam eram incompatíveis com a fidalguia, ainda que um historiador paulista do século XVIII, Pedro Taques de Almeida Pais Leme, tenha procurado dourar brasões imaginários de seus antepassados.
Basta ver que o paulista Bartolomeu Bueno da Silva, descobridor e guarda-mor das minas de Goiás, havia sido açougueiro e um Pais Leme, ascendente do historiador, carpinteiro. Eram, sim, gente xucra, que não raro despertava o riso dos fidalgos nomeados governadores — geralmente, pessoas que conheciam outros idiomas —, mas só dos governadores e de mais um ou outro letrado porque a maioria dos que chegavam do Reino também era formada por pobres analfabetos. Quase sempre eram lavradores que fugiam da crise nos campos do Norte de Portugal ou, então, gente que negociava alguns anos de prisão no Limoeiro pela aventura ultramarina.
Quem duvidar de que a elite brasileira nunca foi branca que vá ao Museu da República no Rio de Janeiro e veja os quadros que retratam os primeiros presidentes e seus ministros. Ou, então, que observe os quadros que mostram os ministros de D.Pedro II. Quantos daqueles pró-homens seriam considerados brancos na Europa?
A que vêm estas considerações que já vão longe? Vêm a propósito do livro As trapaças da sorte, da historiadora Isabel Lustosa, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, especialmente do ensaio “Negro humor: a imagem do negro na tradição cultural brasileira”, em que a cientista política mostra o preconceito racial que marca a tradição humorística brasileira.
Apesar do preconceito racial que sempre grassou por toda a sociedade brasileira, lembra a historiadora que alguns homens de origens africanas chegaram a ocupar a cadeira da presidência da República. Isabel Lustosa observa que Campos Sales, fazendeiro paulista que governou o País do final de 1898 ao final de 1902, era chamado de “branco de segunda” e “sepulcro caiado de raças tidas por inferiores” por José do Patrocínio, um dos patronos da abolição dos escravos em 1888.
Segundo Patrocínio, seria fácil, a um simples olhar, descobrir em Campos Sales “a testa do moçambique” e os “quadris do cabinda” e no “chorado de sua voz o algarvio que serviu de veículo às outras raças”. Patrocínio, filho de padre e de escrava lavadeira, dizia isso a propósito de uma velada intenção do governo de excluir marinheiros negros e mulatos da escolta que acompanharia Campos Sales em visita à Argentina em 1900. Para ele, se fosse para fazer essa discriminação, seria preciso começar pelo presidente da República.
Isabel Lustosa lembra ainda que o presidente Nilo Peçanha, que governou o País de junho de 1909 a novembro de 1910, era homem de traços marcadamente negros, o que motivou à época caricaturas e anedotas na imprensa que ligavam seu nome ao continente africano e, conseqüentemente, às suas origens.
Embora nunca tenha sido branca, a verdade é que a elite brasileira, até hoje, sempre procurou se passar por tal, como a recente intervenção do governador Lembo mostra. Isso se refletiu na imprensa e na produção cultural em que o negro sempre apareceu inferiorizado, o que só começou a mudar com a valorização de sua imagem social a partir da década de 1950, com a vitória da seleção brasileira de futebol no Mundial da Suécia em 1958 e algumas manifestações culturais, notadamente pela música.
Negros e mulatos combativos e contestadores, como Patrocínio e Lima Barreto, sempre foram tidos como fenômenos isolados, quase aberrações da natureza. Outros, como Castro Alves e Machado de Assis — que nunca levou a questão da cor para os seus romances e contos — conseguiram se tornar quase invisíveis, a ponto de se passarem por brancos como Campos Sales e Nilo Peçanha.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br

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