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O genocídio ainda não terminou criar PDF versão para impressão enviar por e-mail
Classificação: / 9
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Escrito por Paulo Vicente   
12-Oct-2006

SudãoO «século breve» que nos fala Eric Hobsbawm, em A Era dos Extremos, proporcionou um conjunto de transformações políticas, sociais, económicas, culturais, mas também técnicas e científicas de valor inquestionável, mas, simultaneamente, não podemos ignorar uma verdade irrefutável – o século XX registou os actos mais hediondos cometidos entre seres humanos, os genocídios, realidade que no dealbar do século XXI se torna imperioso voltar a discutir em plena crise humana que se vive no Sudão, uma tragédia que tem passado praticamente ao lado das opiniões públicas internacionais e que só muito recentemente a ONU reconheceu, o que, diga-se, muito tarde. O que aqui nos propomos fazer é sumariar algumas destas catástrofes do século passado e despertar as mentes para uma outra – a chacina sudanesa.   

Em 1915, mais de um milhão de arménios, segundo a Arménia, morreram na sequência de um plano do Governo dos Jovens Turcos para exterminar os arménios do Império Otomano, posto em prática durante a I Guerra Mundial. Os arménios foram sujeitos a deportações, expropriações, torturas, massacres; a grande maioria foi enviada da Anatólia para a Síria; destes, a esmagadora maioria morreu à sede e à fome no deserto. Na opinião da Turquia, os cerca de 300 mil arménios perderam a vida durante os confrontos que, entre 1915 e 1917, opuseram turcos e arménios. Em pleno conflito mundial, os primeiros apoiavam os alemães e os segundos lutavam ao lado dos russos. Até hoje a Turquia recusou a designação de genocídio para classificar o sucedido.

O acto mais cruel que todos conhecemos perpetrado por seres humanos foi o extermínio judeu promovido pelo nazismo, sistema e ideologia que teve como principal dinamizador Adolf Hitler. Quando sobe ao poder, em 1933, delineia a sua estratégica geopolítica fundamentada no princípio segundo o qual «espaço é poder», onde a supremacia da raça ariana não permite a coabitação em espaço europeu de raças inferiores – aliando os princípios do totalitarismo e racismo, o anti-semitismo apresenta-se como bandeira para a limpeza de um continente que se quer imaculado para o compromisso expansionista de Hitler. A “solução final” encontra-se devidamente planeada em 1942. Três anos após a chegada ao poder é criado o primeiro campo de concentração em Dachau. Convém aliás esclarecer que o regime nazi criou campos de concentração e campos de extermínio, o mais conhecido dos quais em Auschwitz (Polónia). Diga-se ainda a propósito que vários campos, ora de concentração ora extermínio foram criados em Auschwitz, sabendo nós muito bem o sofrimento que era infligido a judeus, ciganos, homossexuais, a indivíduos portadores de deficiência…, cujo fim se tornava óbvio – a morte lenta, sofrida, penosa. Na política anti-semita encetada pelos nazis, o extermínio judeu resultou na morte de 6 milhões de homens, mulheres e crianças. Os julgamentos de Nuremberg procuraram fazer justiça, dar tranquilidade às famílias afectadas por aquele genocídio, mas o suicídio das suas principais figuras ou a fuga para a América Latina inviabilizaram a punição dos seus principais mentores pós-1945.   

No Camboja, o regime do Khmer Vermelho (1975-79) é acusado de assassinar 1,7 milhões de cambojanos com o consentimento do seu líder, Pol Pot. Os khmers vermelhos eram portadores de uma ideologia maoísta muito radical que planeava não somente a eliminação da vida urbana, da classe média e dos intelectuais, como também da propriedade privada e da família. Depois de três anos de dominação total e do extermínio de 1,7 milhões de pessoas, outros “libertadores” ocuparam o Camboja durante dez anos: os vietnamitas, há séculos inimigos dos cambojanos. Houve uma fuga em massa desses para a Tailândia. Com a morte de Pol Pot em 1998 e atravessando o país ainda uma fase de transição, onde espera recuperar do trauma, a culpa parece morrer solteira.

Em 1994, no Ruanda, os Hutus exterminaram cerca de 1 milhão de Tutsis. As informações sobre este acontecimento foram inicialmente confusas, pois só chegaram a França no princípio de Maio – os massacres tinham começado a partir do mês de Abril - , ou seja, quando todos os media se ocupavam da cobertura do festival 64 de Cannes. Neste contexto, escreve Ignacio Ramonet, «é muito significativo que estes últimos tenham dedicado mais espaço a evocar «esse grande acontecimento» que foi o filme de Bernard-Henri Lévy, Bosnia!, do que a falar do Ruanda. Isto prova bem que uma barbárie (na plena acepção da palavra) pode esconder uma outra» (Ramonet, 1999:45). Depois a tragédia ruandesa rebentou com todo o seu horror e ouviu-se, então, falar de «genocídio». No século XX, só por quatro vezes as Nações Unidas usaram aquele termo para designar dramas que designam monstruosidades: os genocídios arménio, judeu, cambojano e ruandês. A França preparou, então, uma intervenção chamada «operação turquesa», cujo objectivo declarado era «proteger as vítimas». «Genocídio», «vítimas», «protecção», tudo se encadeava.

Fome no SudãoEsta tragédia passou-se na ausência das câmaras. Foram apenas mostradas algumas imagens, filmadas a grande distância. Como sintetiza Ramonet, «com excepção desses testemunhos iconográficos raríssimos, foi possível, no fim de contas, exterminar entre 500 000 e 1 milhão de pessoas sem que isso se tenha tornado visível» (Ramonet, 1999:46). Ao analisar do ponto de vista mediático a cobertura deste acontecimento, Ramonet é contundente: «As únicas imagens que abundam eram imagens de êxodo bíblico e de pessoas sobre as quais se abatiam as sete pragas do Egipto. Os telespectadores não podiam deixar de dizer para si próprios que eram elas, as vítimas do genocídio. Ora, como sabemos hoje, esses infelizes extenuados, esgotados, atingidos por todos as desgraças, não eram de modo algum as vítimas, mas essencialmente, os carrascos, os autores do genocídio!» (Ramonet, 1999:46). Uma vez mais, os autores da carnificina saíram impunes…

Em Julho de 1995, enquanto os «capacetes azuis» tinham um aspecto impotente, o exército bósnio sérvio organizou um assalto brutal às termas da cidade de Srebrenica e, durante um período de cinco dias, «isolaram sistematicamente os habitantes muçulmanos e assassinaram mais de sete mil homens e rapazes, empilhando os seus corpos em campos, escolas, e armazéns» (Leonard, 2005:72).

Os líderes das diferentes facções jugoslavas tinham abraçado todas as tácticas que o projecto europeu tinha rejeitado: a força militar para obter ganhos políticos, o nacionalismo étnico para definir a identidade, a «limpeza étnica» como uma via para a autodeterminação. Mesmo depois de a paz ter sido garantida pela força americana, os antigos combatentes perderam a face no tribunal de crimes de guerra da ONU em Haia, «ao permitirem que criminosos de guerra procurados pudessem morar livremente e de uma forma bastante ostensiva no único país do mundo, a Bósnia, que estava, de facto, debaixo do controlo directo da própria ONU» (Leonard, 2005:73). É esta impunidade, que nos remete para o lema «o crime compensa», que deve a todo o custo ser evitada e discutida publicamente para que tais actos bárbaros não se repitam e envergonhem as gerações vindouras.

O Sudão é hoje o maior país de África e está em guerra civil há 46 anos. O conflito entre o governo muçulmano e guerrilheiros não-muçulmanos, baseados no sul do território, revela as realidades culturais opostas da Nação. A guerra e prolongados períodos de seca já provocaram mais de 2 milhões de mortos.

A introdução da Sharia, a lei islâmica, causou a fuga de mais de 350 mil sudaneses para países vizinhos, designadamente o Chade. Entre outras medidas, a lei determina a proibição de bebidas alcoólicas e punições por enforcamento ou mutilação. Segundo uma reportagem do jornal Folha de São Paulo, de 8 de Outubro de 2005, «(…) o genocídio no oeste do Sudão está quase terminado. Há um problema, porém: o genocídio está chegando ao fim apenas porque não restam negros para matar ou submeter à limpeza étnica. No esforço para “limpar” o oeste do país de “zurgas” –  termo que pode ser traduzido como “crioulos” -, o governo da Frente Islâmica Nacional [chefiado por Omar Hasan Ahmad al-Bashir] já exterminou mais de 400 mil deles e expulsou outros 2 milhões de suas casas. As milícias racistas governamentais, conhecidas como Janjaweed, adorariam continuar a matar e devastar, no entanto, os povoados negros já foram todos queimados, e todas as mulheres negras já foram estupradas».

Um relatório recentemente divulgado pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos associa a violência em Buram, no estado do Darfur Sul, à intenção de expulsar os sudaneses de origem africana antes da chegada de uma força de paz das Nações Unidas ao Darfur – até ao momento só está previsto apoio logístico e na área da formação por parte da ONU no Darfur. O relatório sugere como motivação para os ataques «a alteração demográfica da região antes da chegada das tropas internacionais, uma vez que qualquer força externa provavelmente manteria o statu quo na zona». Acrescenta-se ainda: «Os ataques parecem ter tido como alvos civis as tribos de origem africana naquilo que é visto como uma tentativa para os tirar da região de origem da tribo [árabe] Habbania e assim alterar completamente o equilíbrio étnico na região». Na região ocidental sudanesa do Darfur, a população divide-se em dois grandes grupos, ambos predominantemente muçulmanos: os negros africanos e as tribos árabes ligadas ao poder central de Cartum, no Norte (in Público, 10 de Outubro de 2006).

Desde 2005, o Tribunal Penal Internacional de Haia tem em curso uma investigação sobre estes crimes, tendo em sua posse uma lista de presumíveis autores identificados pela ONU, que são suspeitos de crimes de guerra cometidos desde 2003 no Darfur. Porém, para avançar com o processo, o tribunal precisa que o Governo colabore na procura de suspeitos, o que não tem acontecido, o que só vem mostrar a conivência e o aval de Cartum à concretização da chacina. Entretanto, é a população civil quem sofre, principal vítima da guerra que desde 2003 opõe os rebeldes que reivindicam mais autonomia e riqueza para a região e as milícias Janjaweed criadas pelo Governo.

Buram, sob o controlo do Governo, é agora uma região deserta, onde não foram relatadas actividades dos rebeldes e onde milhares de pessoas para escaparem à morte se vêem forçadas a fugir desde fins de Agosto. Os autores pertencem às milícias pró-governamentais constituídas por tribos árabes habbania e fallata, segundo aquele relatório. No Darfur Norte, o cenário é também de devastação. De acordo com a imprensa internacional, Tawilla está completamente deserta. Os ataques sistemáticos das milícias pró-governamentais Janjaweed impelem os habitantes a partir. Neste clima de insegurança e instabilidade, afigura-se complexa a capacidade de manobra das ONG’s e dos capacetes azuis da ONU.

O poder político em Cartum não parece disposto a solucionar esta grave crise humana, mesmo após a visita do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. Os argumentos de al-Bashir são claros quanto à relutância em aceitar a entrada de qualquer organismo externo no país: por um lado, a violação da soberania nacional, por outro, o ressurgir de qualquer tendência marcadamente colonialista. Perante este impasse, os (poucos) habitantes de Darfur continuam a sofrer e sem qualquer tipo de esperança. Centenas poderão ainda morrer. É precisamente isto que o activista George Clooney se tem esforçado por fazer transmitir junto da opinião pública americana e esta, por essa via, a pressionar a Administração Bush, naquele que é, segundo o actor, o primeiro genocídio do século XXI. A ONU só agora abraçou a causa sudanesa como sua, em fase de transição com a chegada de um novo Secretário-geral à organização.

Se os genocídios mancharam a obra humana no século XX, é vital renunciar no século XXI a actos que violem os princípios da condição humana consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ora, a prática do genocídio é o paradigma da destruição dos valores e da acção criadora da civilização. O Sudão é o palco desta realidade macabra, sem fim à vista, e onde o genocídio ainda não terminou. A ONU deve reconhecer um quinto genocídio na história da humanidade. Chegou a hora de pôr um fim a esta barbárie e de levar al-Bashir ao banco dos réus enquanto fautor de crimes de guerra.    

 

Referências:

LEONARD, Mark, Século XXI – a Europa em mudança, Lisboa, Editorial Presença, 2005.

Público, 10 de Outubro de 2006.

RAMONET, Ignacio, A tirania da comunicação, Porto, Campo das Letras, 1999.

 Imagens:

Fonte da Imagem 1

Fonte da Imagem 2

 



Este trabalho, realizado no âmbito da bolsa de doutoramento (referência SFRH / BD / 27384 / 2006) da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, é co-financiado pelo POCI 2010 (Programa Operacional Ciência e Inovação 2010) e FSE (Fundo Social Europeu).
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daryyy (117.94.32.xxx) 2010-11-27 10:03:04

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