Sábado, Março 10
[dreamgirls + antonia]
O musical talvez seja o gênero do cinema que mais tenha detratores. Por ser tão específico, ter uma relação forte com um teatro tipicamente norte-americano e por exigir do espectador uma disposição para entender a música e a dança como parte da narrativa, não é difícil perder a paciência com filmes assim. Eu nunca tive problemas com os musicais e, inclusive, prefiro aqueles em que as canções se integram ao roteiro de verdade, sem ser meros adereços. Em Dreamgirls, Bill Condon até tenta fazer isso em alguns momentos, mas nem sempre tem sucesso.
A interpretação de Jennifer Hudson está bem aquém de tanta celebração, mas sua estréia é boa, encarnando o velho perfil da negra desbocada fuckin' bullshit. O problema é agüentar a moça em seus exageros vocais, como se gritar fosse sinônimo de ter uma voz potente. Curiosamente, Beyoncé, parecendo ter muita noção de suas limitações dramáticas, não tenta ser estrela, o que me pareceu bastante simpático. Anika Noni-Rose fica no meio-termo, entre os excessos e a discrição.
A história das garotas cantantes segue uma fórmula batida, mas Bill Condon tem algumas boas idéias para levar o palco para a tela. A direção de arte e, especialmente, os figurinos são o que o filme tem de melhor, embora haja alguns achados na fotografia, que perde feio para a que Dion Bebee entregou para Chicago (Rob Marshall, 2002), um musical da Broadway que ganhou uma versão bastante eficiente para o cinema. Mesmo quando faz sua crítica à indústria, o filme se mantém no velho duelo certo x errado.
O senão maior ao filme nem é a manjada condição de biografia de grupo musical, com direito a amores e richas, vilões e mocinhos, é sua própria música. Para ficar numa avaliação mais imediata, o filme tem um grande problema para um exemplar do gênero: a música é bem ruim. À exceção de "Love You I Do" ou "Patience", mais tragáveis, todas as outras canções são emulações baratas da pop black music dos anos 70 para cá, limitadas tanto na criatividade quanto na execução. E olha que nem dá para se animar tanto com a performance de palco de um inspirado Eddie Murphy por causa das canções.
Melhor do que a biografia musical norte-americana é nosso Dreamgirls brasileiro, sobre o qual já tinha escrito aqui. Em Antonia, a trajetória é menor, o sucesso do grupo equivalente a essa trajetória, mas, em se tratando de composição dramática, o filme funciona muito mais. Mesmo com quatro estreantes no cinema, Tata Amaral conseguiu arrancar belas interpretações de suas atrizes, com destaque para Leilah Moreno, que tem cena excepcionais.
A diretora usa câmera na mão como nos melhores filmes dos irmãos Dardenne, tentando dar conta das personagens por inteiro e desenhá-las de forma mais clara sem aprisionar as personagens em estereótipos. E, olha, é difícil saber dar essa textura de forma correta ao movimento de câmera. O que é mais interessante no filme é como Tata Amaral consegue, ao invadir às vidas dessas quatro mulheres, fazer um recorte de múltiplas dimensões da vida na periferia da cidade grande. Há a violência, há o sofrimento, mas Tata os olha como investigadora e não julga ou condena ninguém. Seu interesse é muito mais humanista.
Aqui, ao contrário de Dreamgirls, a música tem uma função muito mais definida: ele não é apenas um instrumento de mudança, de reabilitação social, o hip hop, muito mais do que qualquer vertente da dita black music, evoca o mundo imediato daquelas quatro meninas, mundo que tem rimas imediatas, às óbvias e até pobres, mas que é genuíno exatamente por isso. E é exatamente por isso que Antonia é tão melhor do que muitos filmes brasileiros (ou estrangeiros) que se dispõem a fazer uma leitura (musical) de uma ou mais vidas: ele parece de verdade.
[dreamgirls - embusca de um sonho ]
direção: Bill Condon.
Dreamgirls, Estados Unidos, 2006. roteiro: Bill Condon, baseado em livro de Tom Eyen.
elenco: Beyoncé Knowles, Jennifer Hudson, Anika Noni Rose, Jamie Foxx, Eddie Murphy, Danny Glover, Keith Robinson, Sharon Leal, John Lithgow .
fotografia: Tobias A. Schliessler. montagem: Virginia Katz. música: Henry Krieger e Tom Eyen. desenho de produção: John Myhre. figurinos: Sharen Davis. produção: Laurence Mark. duração: 131 min. site oficial.
[antonia ]
direção: Tata Amaral.
Antonia, Brasil, 2006. roteiro: Tata Amaral e Roberto Moreira.
elenco: Negra Li, Leila Moreno, Quelynah, Cindy, Thaíde, Sandra de Sá, Thobias da Vai-Vai, Chico Santo, Giulio Lopes.
fotografia: Jacob Sarmento Solitrenick. montagem: Idê Lacreta. música: Beto Villares e MC Parteum. desenho de produção: Rafael Ronconi. produção: Geórgia Costa Araújo e Tata Amaral. duração: 90 min. site oficial.
nas picapes: [antonia, antonia]
Posts similares:
antonia
oscar 2006 - apostas e perspectivas
O Matador
Comentários
Esse problema que vc citou é flagrante no filme, Fer. Na primeira vez em que uma canção é colocada como parte do texto, eu achei estranho porque até então nada tinha sido assim.
(http://claque-te.blogspot.com): A Conquista da Honra, de Clint Eastwood.
O que vc quer dizer com desperdício de tempo na TV aberta? Se fosse na TV fechada tudo bem? "Antonia" é um belíssimo filme. Vc perdeu um belíssimo filme.
E eu até tenho uma certa simpatia por "Dreamgirls", mas o filme é meia-boca.
Já ANTÔNIA, é realmente um belo filme. Uma pena que pouca gente esteja vendo.
Vi a pré-estréia de Antonia e saí impressionado e felizinho.
Vi Dreamgirls na véspera do Oscar e saí rindo - de vergonha.
Deixe aqui seu comentário: