Eles eram 30 000, 4 500 ou 500?
Os historiadores não se entendem sobre o número de pessoas que
a família real trouxe ao Brasil
Marcelo
Bortoloti
O
quadro A Chegada da Família de dom João VI ao Brasil: ninguém
contou direito quantas pessoas havia na comitiva que acompanhou os monarcas
No
início do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro tinha pouco mais
de 50 000 habitantes. Metade deles escravos. A outra metade compunha a sociedade
da então capital do vice-reino do Brasil. Não havia mais do que
7 500 residências na área urbana. O centro era um conglomerado
com menos de cinqüenta ruas, por onde passeavam cabras, porcos e galinhas.
A poucos metros das últimas casas, as ruas degeneravam em pântanos.
Nesse cenário rude, a família real portuguesa desembarcou em 1808
seguida por sua corte, debandada feita para fugir das tropas de Napoleão,
que avançavam sobre o território português. À beira
de completar 200 anos, o episódio ainda é motivo de uma das maiores
controvérsias da historiografia brasileira. Afinal, quantas pessoas chegaram
com o príncipe regente e com sua mãe, a rainha Maria I, dita "a
louca"?
Os estudiosos não se entendem
sobre o número. Trabalhos publicados no fim do século XIX mencionavam
até 30.000 pessoas. Em revisões posteriores, chegou-se aos 15 000,
que figuram hoje nos livros didáticos. Nos últimos anos, esse dado
se tornou ainda mais movediço. Já se falou em 8 000, reduziu-se
a 4 000 e chegou-se a afirmar que eram apenas 500 pessoas a compor a corte que
desembarcou no Rio. No fim do ano, o historiador Kenneth Light lançará
em Portugal o livro A Transferência da Corte para o Brasil. E mais
uma vez surge uma informação diferente de todas as outras: 4 500
pessoas.
O primeiro registro do contingente
que cruzou o Atlântico é do tenente irlandês Thomas O'Neill,
que, a bordo de uma das caravelas da comitiva, garantiu que eram 16.000 pessoas.
O dado virou referência para os historiadores que gravitaram em torno dele
nos últimos dois séculos. A dificuldade de estabelecer o tamanho
da corte que se refugiou no Brasil nos primeiros anos da década de 1810
é explicável. Sabe-se que os barcos partiram lotados, mas não
existe um dado seguro nem mesmo sobre o tamanho da frota. Fala-se de trinta a
56 embarcações. A divergência ocorre porque as fontes de consulta
são precárias. São, na maior parte, relatos de diplomatas,
militares e integrantes do governo português. Existem poucos documentos.
Para chegar a 4.500 passageiros, Kenneth Light se baseou nos registros de navios
militares ingleses que escoltaram a frota de Portugal. Os diários de bordo
de cada embarcação estão preservados em arquivos na Inglaterra
ao passo que os equivalentes portugueses foram perdidos. O historiador
carioca Nireu Cavalcanti, que afirma terem sido apenas 500 pessoas, baseou-se
em listas de passageiros que encontrou em arquivos do Brasil e de Portugal. Seus
estudos são considerados os mais controversos.
Palácio
Nacional da Ajuda - Lisboa
Embarque
da família real para o Brasil: confusão e histeria
A
dividir os historiadores, há um oceano de informações conflitantes.
Um dos poucos pontos sobre os quais já se chegou a um consenso é
que boa parte dos viajantes que partiram de Lisboa não desembarcou no Rio.
Voltaram a Portugal quase todos os que compunham a tripulação dos
navios, entre eles centenas de ingleses encarregados da escolta na travessia.
Não eram poucos. A nau Príncipe Real, que trouxe o príncipe
regente, o futuro dom João VI, tinha capacidade para 1.054 pessoas, das
quais 950 eram marinheiros que integravam a tripulação. Somente
para erguer sua âncora, de 3,5 toneladas, eram necessários 380 homens.
Outras embarcações menores tinham capacidade para 500 pessoas, incluindo
tripulação e passageiros. "A corte saiu às pressas de Portugal,
o que sugere ter sido um grupo restrito, que talvez não chegue a 1.000
pessoas. Seria preciso uma retirada programada para movimentar 20.000 pessoas",
sustenta o historiador Manolo Florentino.
De certo o que se sabe é que no dia da partida o porto de Lisboa entrou
em convulsão. A fuga da corte ocorreu em clima de histeria. Alguns historiadores
dão como certo que as tropas de vanguarda de Napoleão chegaram a
avistar as velas das naus sumindo no horizonte. A fama de saqueadores inclementes
precedia os soldados franceses. Jóias e moedas de ouro do Tesouro real
foram embaladas em grandes caixas de madeira. Baús de roupa, pratarias,
documentos antigos e arquivos do estado se amontoavam em carroças, no cenário
caótico que se instaurou às margens do Rio Tejo. Uma chuva fina
e persistente fazia com que a lama se espalhasse em cada canto. A lista de passageiros
era confusa. Alguns conseguiram embarcar somente com a roupa do corpo. Houve casos
em que os pertences embarcaram sem seu dono. A Biblioteca Real, com 60.000 volumes
o acervo que serviu de base para a formação da atual Biblioteca
Nacional , ficou abandonada no porto em meio ao lamaçal. Bíblias,
mapas da época dos descobrimentos e obras de arte tiveram o mesmo destino.
A rainha dona Maria foi embarcada à força, assustando a platéia
com seus gritos lancinantes, fruto da demência diagnosticada havia anos.
Apesar do sigilo que se pretendia, uma multidão de curiosos saiu às
ruas para ver a movimentação frenética e atrapalhada dos
nobres no porto.
A viagem de quase dois
meses pelo Atlântico, sujeita a naufrágios e tempestades, foi uma
façanha. Nos navios superlotados, as condições de higiene
eram precárias. Água e comida tiveram de ser racionadas. Os nobres
entediados e pessimistas foram proibidos de falar sobre a decisão de abandonar
o reino. No meio do Atlântico, um surto de piolhos em algumas embarcações
fez com que as damas, entre as quais a princesa Carlota Joaquina, fossem obrigadas
a raspar o cabelo. A chegada ao Rio foi um alívio, apesar do calor do verão
nos trópicos e dos odores fétidos da capital da colônia. A
família real foi alojada em três prédios no centro da cidade,
depois de colocar na rua o vice-rei, Marcos de Noronha e Brito, o conde dos Arcos,
e todas as internas de um convento carmelita. Os demais agregados se espalharam
pela cidade, em residências confiscadas da população. Era
a política do "Ponha-se na Rua", nome dado por picardia pelos cariocas,
que se inspiraram nas iniciais "PR", de Príncipe Regente (ou de "Prédio
Roubado", como diziam os mais irônicos), que eram gravadas na porta das
casas requisitadas para os nobres portugueses.
A controvérsia dos historiadores não se restringe ao número
de pessoas que cruzaram o Atlântico. Também o impacto na vida da
cidade é objeto de divergências. "Os cronistas daquele tempo falam
que pessoas com roupas européias passaram a andar pelas ruas. Mas ninguém
descreve o impacto que seria caso 15.000 pessoas tivessem desembarcado no Rio",
afirma o historiador e genealogista Carlos Barata. Sabe-se que muitos habitantes
do Rio tiveram de dormir ao relento por causa da carência de moradias. Mas,
para Nireu Cavalcanti, a fama do "Ponha-se na Rua" foi maior do que seu impacto
efetivo. "Não existem mais de 150 processos de confisco registrados nos
arquivos oficiais", diz. Impacto maior foi registrado nas décadas seguintes.
A população do Rio, que era de 50.000 pessoas em 1800, saltou para
60.000 em 1810. "Para ter uma perspectiva mais correta do fato histórico,
é preciso mensurar não apenas quem veio com a família real,
mas o fluxo migratório nos anos seguintes", observa a historiadora Lilia
Schwarcz. Com a chegada de imigrantes de outros países, o número
cresceu. Em 1821, a população carioca era quase o dobro, com cerca
de 112.000 habitantes.
O episódio
é considerado até hoje uma das maiores epopéias da história
lusitana. Ao fugir do avanço das tropas de Napoleão, a corte portuguesa
conseguiu manter seu reinado e a posse de todas as colônias. Com a ajuda,
não desinteressada, claro, dos ingleses. Um oficial inglês, Arthur
Wellesley, mais tarde feito duque de Wellington, expulsaria os franceses da Península
Ibérica, deixando em Lisboa um bem armado visconde de Beresford, que cuidou
de rechaçar outras investidas napoleônicas. Em 1815, Wellington derrotaria
Napoleão na famosa Batalha de Waterloo se valendo, além da sorte,
segundo certos relatos militares, da experiência adquirida nas batalhas
travadas antes em Portugal. Para o Brasil, a vinda da corte portuguesa teve enorme
impacto positivo. O príncipe regente mandou abrir os portos brasileiros
ao comércio internacional e apressou a vinda de imigrantes. Liberou a circulação
de moedas, criou o Banco do Brasil e as faculdades de medicina e engenharia. Enfim,
emancipou o país, que se libertaria oficialmente da metrópole em
1822.