BUSCA

Busca avançada      
FALE CONOSCO
Escreva para VEJA
Para anunciar
Abril SAC
ACESSO LIVRE
Conheça as seções e áreas de VEJA.com
com acesso liberado
REVISTAS
VEJA
Edição 2013

20 de junho de 2007
ver capa
NESTA EDIÇÃO
Índice
COLUNAS
Millôr
Lya Luft
André Petry
Diogo Mainardi
Reinaldo Azevedo
Roberto Pompeu de Toledo
SEÇÕES
Carta ao leitor
Entrevista
Cartas
VEJA.com
Holofote
Contexto
Radar
Veja essa
Gente
Datas
Auto-retrato
VEJA Recomenda
Os livros mais vendidos
Publicidade
 

História
Controvérsias na corte

Eles eram 30 000, 4 500 ou 500? Os historiadores
não se entendem sobre o número de pessoas que
a família real trouxe ao Brasil


Marcelo Bortoloti

 
O quadro A Chegada da Família de dom João VI ao Brasil: ninguém contou direito quantas pessoas havia na comitiva que acompanhou os monarcas

No início do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro tinha pouco mais de
50 000 habitantes. Metade deles escravos. A outra metade compunha a sociedade da então capital do vice-reino do Brasil. Não havia mais do que
7 500 residências na área urbana. O centro era um conglomerado com menos de cinqüenta ruas, por onde passeavam cabras, porcos e galinhas. A poucos metros das últimas casas, as ruas degeneravam em pântanos. Nesse cenário rude, a família real portuguesa desembarcou em 1808 seguida por sua corte, debandada feita para fugir das tropas de Napoleão, que avançavam sobre o território português. À beira de completar 200 anos, o episódio ainda é motivo de uma das maiores controvérsias da historiografia brasileira. Afinal, quantas pessoas chegaram com o príncipe regente e com sua mãe, a rainha Maria I, dita "a louca"?

Os estudiosos não se entendem sobre o número. Trabalhos publicados no fim do século XIX mencionavam até 30.000 pessoas. Em revisões posteriores, chegou-se aos 15 000, que figuram hoje nos livros didáticos. Nos últimos anos, esse dado se tornou ainda mais movediço. Já se falou em 8 000, reduziu-se a 4 000 e chegou-se a afirmar que eram apenas 500 pessoas a compor a corte que desembarcou no Rio. No fim do ano, o historiador Kenneth Light lançará em Portugal o livro A Transferência da Corte para o Brasil. E mais uma vez surge uma informação diferente de todas as outras: 4 500 pessoas.

O primeiro registro do contingente que cruzou o Atlântico é do tenente irlandês Thomas O'Neill, que, a bordo de uma das caravelas da comitiva, garantiu que eram 16.000 pessoas. O dado virou referência para os historiadores que gravitaram em torno dele nos últimos dois séculos. A dificuldade de estabelecer o tamanho da corte que se refugiou no Brasil nos primeiros anos da década de 1810 é explicável. Sabe-se que os barcos partiram lotados, mas não existe um dado seguro nem mesmo sobre o tamanho da frota. Fala-se de trinta a 56 embarcações. A divergência ocorre porque as fontes de consulta são precárias. São, na maior parte, relatos de diplomatas, militares e integrantes do governo português. Existem poucos documentos. Para chegar a 4.500 passageiros, Kenneth Light se baseou nos registros de navios militares ingleses que escoltaram a frota de Portugal. Os diários de bordo de cada embarcação estão preservados em arquivos na Inglaterra ao passo que os equivalentes portugueses foram perdidos. O historiador carioca Nireu Cavalcanti, que afirma terem sido apenas 500 pessoas, baseou-se em listas de passageiros que encontrou em arquivos do Brasil e de Portugal. Seus estudos são considerados os mais controversos.

 

Palácio Nacional da Ajuda - Lisboa

Embarque da família real para o Brasil: confusão e histeria

A dividir os historiadores, há um oceano de informações conflitantes. Um dos poucos pontos sobre os quais já se chegou a um consenso é que boa parte dos viajantes que partiram de Lisboa não desembarcou no Rio. Voltaram a Portugal quase todos os que compunham a tripulação dos navios, entre eles centenas de ingleses encarregados da escolta na travessia. Não eram poucos. A nau Príncipe Real, que trouxe o príncipe regente, o futuro dom João VI, tinha capacidade para 1.054 pessoas, das quais 950 eram marinheiros que integravam a tripulação. Somente para erguer sua âncora, de 3,5 toneladas, eram necessários 380 homens. Outras embarcações menores tinham capacidade para 500 pessoas, incluindo tripulação e passageiros. "A corte saiu às pressas de Portugal, o que sugere ter sido um grupo restrito, que talvez não chegue a 1.000 pessoas. Seria preciso uma retirada programada para movimentar 20.000 pessoas", sustenta o historiador Manolo Florentino.

De certo o que se sabe é que no dia da partida o porto de Lisboa entrou em convulsão. A fuga da corte ocorreu em clima de histeria. Alguns historiadores dão como certo que as tropas de vanguarda de Napoleão chegaram a avistar as velas das naus sumindo no horizonte. A fama de saqueadores inclementes precedia os soldados franceses. Jóias e moedas de ouro do Tesouro real foram embaladas em grandes caixas de madeira. Baús de roupa, pratarias, documentos antigos e arquivos do estado se amontoavam em carroças, no cenário caótico que se instaurou às margens do Rio Tejo. Uma chuva fina e persistente fazia com que a lama se espalhasse em cada canto. A lista de passageiros era confusa. Alguns conseguiram embarcar somente com a roupa do corpo. Houve casos em que os pertences embarcaram sem seu dono. A Biblioteca Real, com 60.000 volumes – o acervo que serviu de base para a formação da atual Biblioteca Nacional –, ficou abandonada no porto em meio ao lamaçal. Bíblias, mapas da época dos descobrimentos e obras de arte tiveram o mesmo destino. A rainha dona Maria foi embarcada à força, assustando a platéia com seus gritos lancinantes, fruto da demência diagnosticada havia anos. Apesar do sigilo que se pretendia, uma multidão de curiosos saiu às ruas para ver a movimentação frenética e atrapalhada dos nobres no porto.

A viagem de quase dois meses pelo Atlântico, sujeita a naufrágios e tempestades, foi uma façanha. Nos navios superlotados, as condições de higiene eram precárias. Água e comida tiveram de ser racionadas. Os nobres entediados e pessimistas foram proibidos de falar sobre a decisão de abandonar o reino. No meio do Atlântico, um surto de piolhos em algumas embarcações fez com que as damas, entre as quais a princesa Carlota Joaquina, fossem obrigadas a raspar o cabelo. A chegada ao Rio foi um alívio, apesar do calor do verão nos trópicos e dos odores fétidos da capital da colônia. A família real foi alojada em três prédios no centro da cidade, depois de colocar na rua o vice-rei, Marcos de Noronha e Brito, o conde dos Arcos, e todas as internas de um convento carmelita. Os demais agregados se espalharam pela cidade, em residências confiscadas da população. Era a política do "Ponha-se na Rua", nome dado por picardia pelos cariocas, que se inspiraram nas iniciais "PR", de Príncipe Regente (ou de "Prédio Roubado", como diziam os mais irônicos), que eram gravadas na porta das casas requisitadas para os nobres portugueses.

A controvérsia dos historiadores não se restringe ao número de pessoas que cruzaram o Atlântico. Também o impacto na vida da cidade é objeto de divergências. "Os cronistas daquele tempo falam que pessoas com roupas européias passaram a andar pelas ruas. Mas ninguém descreve o impacto que seria caso 15.000 pessoas tivessem desembarcado no Rio", afirma o historiador e genealogista Carlos Barata. Sabe-se que muitos habitantes do Rio tiveram de dormir ao relento por causa da carência de moradias. Mas, para Nireu Cavalcanti, a fama do "Ponha-se na Rua" foi maior do que seu impacto efetivo. "Não existem mais de 150 processos de confisco registrados nos arquivos oficiais", diz. Impacto maior foi registrado nas décadas seguintes. A população do Rio, que era de 50.000 pessoas em 1800, saltou para 60.000 em 1810. "Para ter uma perspectiva mais correta do fato histórico, é preciso mensurar não apenas quem veio com a família real, mas o fluxo migratório nos anos seguintes", observa a historiadora Lilia Schwarcz. Com a chegada de imigrantes de outros países, o número cresceu. Em 1821, a população carioca era quase o dobro, com cerca de 112.000 habitantes.

O episódio é considerado até hoje uma das maiores epopéias da história lusitana. Ao fugir do avanço das tropas de Napoleão, a corte portuguesa conseguiu manter seu reinado e a posse de todas as colônias. Com a ajuda, não desinteressada, claro, dos ingleses. Um oficial inglês, Arthur Wellesley, mais tarde feito duque de Wellington, expulsaria os franceses da Península Ibérica, deixando em Lisboa um bem armado visconde de Beresford, que cuidou de rechaçar outras investidas napoleônicas. Em 1815, Wellington derrotaria Napoleão na famosa Batalha de Waterloo se valendo, além da sorte, segundo certos relatos militares, da experiência adquirida nas batalhas travadas antes em Portugal. Para o Brasil, a vinda da corte portuguesa teve enorme impacto positivo. O príncipe regente mandou abrir os portos brasileiros ao comércio internacional e apressou a vinda de imigrantes. Liberou a circulação de moedas, criou o Banco do Brasil e as faculdades de medicina e engenharia. Enfim, emancipou o país, que se libertaria oficialmente da metrópole em 1822.

 

Acervo BMSP




Marc Ferrez

  VEJA | Veja São Paulo | Veja Rio | Expediente | Fale conosco | Anuncie | Newsletter |