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Seda brasileira, 'a melhor do mundo', está ameaçada

Mariana Barbosa, de O Estado de S.Paulo

19 Setembro 2009 | 18h 32

Fornecedor da grife francesa Hermès, a fabricante de fios Bratac, de Bastos, está há três anos no vermelho

Foi preciso a francesa Hermès inaugurar uma loja no Brasil para muitos consumidores brasileiros descobrirem que os fios da seda dos caríssimos lenços e gravatas da grife de luxo são 100% brasileiros. E mais, que o fio de seda nacional é o "melhor do mundo", nas palavras do presidente da Hermès, Patrick Thomas, que esteve em São Paulo na semana passada para a inauguração da primeira loja da empresa no País.

 

 

 

O posto de melhor fio de seda do mundo foi conquistado com um rigoroso processo que começa na seleção das larvas do bicho-da-seda e que garante uma qualidade constante. A Bratac, principal indústria de fiação de seda do País, fundada por imigrantes japoneses e que no ano que vem completa 70 anos, detém o controle de todo o ciclo de produção - diferentemente da China, que domina 80% do mercado e onde cada etapa é feita por um intermediário. Só os casulos mais perfeitos entram na linha de produção dos fios mais caros e sofisticados, como os adquiridos pela Hermès ao preço de US$ 32,88 o quilo, dez dólares a mais do que o quilo do fio de seda produzido na China.

 

No entanto, nem mesmo esse diferencial de qualidade tem sido suficiente para garantir a sobrevivência de uma tradição que nasceu com a imigração japonesa na primeira metade do século 20, quando os japoneses que vinham de navio traziam no bolso os ovinhos do delicado bicho-da-seda.

 

Fornecedora da Hermès há mais de 20 anos, a Bratac está há três anos operando no negativo. O faturamento, que alcançou R$ 90,8 milhões em 2002, no ano passado caiu para R$ 64,6 milhões. "Exportamos 95% da nossa produção, enquanto nossos custos são todos em real", afirma o diretor Shigueru Taniguiti Junior.

 

Responsável por 75% dos fios produzidos no País, a empresa já dispensou mais de 300 trabalhadores este ano e encerrou as atividades de uma planta no município de Duartina, interior de São Paulo. A empresa já teve 3 mil funcionários. Hoje são 1.150.

 

Na sede da companhia em Bastos, a 549 quilômetros de São Paulo e muito distante do glamour do Shopping Cidade Jardim, diversas máquinas aguardam novos pedidos para voltar a girar. Maior unidade fabril de fiação de seda do mundo, a planta de Bastos opera com uma ociosidade de 35%. "A pergunta que nós nos fazemos é quanto tempo mais a gente aguenta", diz Junior, neto de um dos sete fundadores da companhia. Para sair do prejuízo, calcula que seria preciso reajustar seu preço em 20%. "Ninguém aceita isso." Nem a Hermès, parceira de tantos anos? "Eles aceitam pagar um alfa pela qualidade, mas não pagam um beta pelo custo do real forte ou da nossa carga tributária."

 

Uma combinação de fatores como real forte, a competição com a China e a modernização dos costumes e dos modos de se vestir são os responsáveis por devastar a produção nacional. Este ano, a previsão é de uma produção de 850 toneladas de fio de seda, pouco mais da metade daquilo que foi produzido em 2002 (1,6 mil toneladas). O volume representa um quarto da produção de 20 anos atrás. Em 1989, além dessa produção quatro vezes maior, o preço era bastante superior ao praticado hoje: US$ 53,89 o quilo.

 

Naqueles tempos pré abertura do governo Collor, o parque industrial brasileiro abrigava 17 fiações de seda, além de dezenas de confecções que transformavam o fio no nobre tecido. Hoje, restam duas fiações: a Bratac, de capital 100% nacional, e a Fujimura, subsidiária de uma fiação japonesa.

 

Empenhado em mudar a sorte da empresa fundada pelo avô, Junior coordena o Comitê da Seda na Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), formada por fiações e tecelagens e cujo objetivo é pensar estratégias para garantir a sobrevivência da indústria. "Pouca gente sabe que somos o 3º maior produtor de seda do mundo, atrás de China e Índia", diz ele, que reclama do fato de as tecelagens e estilistas de moda não fazerem propaganda da seda 100% nacional. O grupo também tenta combater a importação ilegal. "Do volume que a China declara que vende de tecido de seda para o Brasil, aqui só chega metade. Acho que o resto afunda no caminho", ironiza.

 

Para Eliane Gamal Mesquita, diretora-presidente da tecelagem Safira Sedas, que também participa do Comitê da Seda, a indústria nacional só vai sobreviver à invasão chinesa se investir em produtos especiais, seja para a moda ou para a decoração. "Para envolver estilistas e decoradores, as tecelagens precisam investir em tecnologia e design para oferecer produtos diferenciados."

 

Eliane, cujo pai tinha uma tecelagem tradicional de seda, fundou a sua própria em 1994, na contramão do mercado. "Havia em Americana um monte de tecelagens de seda produzindo crepe, musseline, chifon, produtos de menor valor, mas quebraram todas." Com tecidos sofisticados voltados para o mercado de decoração, a Safira é uma das principais clientes da Bratac no Brasil. "Dependo deles pois meu volume é pequeno e seria inviável importar fio de seda".

 

Renda mensal de criador só paga uma gravata

 

BASTOS

 

Em assentamentos de sem terra no Mato Grosso do Sul, a criação do bicho-da-seda garante renda mensal familiar de R$ 750 - dinheiro que na nova loja Hermès daria para adquirir uma gravata da seda. Em média, uma família é capaz de produzir 180 quilos de casulo ao mês, durante nove meses do ano. A quantidade é suficiente para produzir mais de 100 gravatas, considerando que são necessários 6,3 quilos de casulo para cada quilo de fio de seda.

 

A criação do bicho-da-seda, ou sericicultura, já foi a atividade que oferecia a melhor remuneração no campo. Porém, com a queda no consumo e na cotação do fio no mercado internacional, os criadores estão abandonando a atividade. Só a Bratac chegou a contar com o fornecimento de casulos de 6 mil famílias. Em 1989, esses criadores produziram 12 mil toneladas de casulo. Hoje porém, os fornecedores da Bratac se resumem a 1,5 mil criadores. A produção, no ano passado, foi de apenas 3,5 toneladas. "Uma das principais limitações hoje é a falta de matéria-prima", afirma o diretor da Bratac, Shigueru Taniguti Junior. "Deixar máquinas paradas tem um custo alto. Se tivesse matéria-prima, eu poderia produzir e estocar."

 

Para tentar contornar a falta de casulos, a Bratac fez uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário para incentivar a sericicultura em assentamentos no Estados de São Paulo e no Mato Grosso do Sul. A cultura é propícia, pois ajuda a fixar o homem no campo e pode ser cultivada em pequenas propriedades. Com um alqueire de amoreiras, cuja folha é o único alimento do bicho-da-seda, é possível obter uma produção de 180 quilos por ciclo de produção. O retorno também é garantido, uma vez que toda a produção é adquirida pela Bratac, que paga à vista ao final de cada ciclo. A empresa também oferece agrônomos para acompanhar e dar assistência aos produtores.Apesar disso, a iniciativa só vingou no Mato Grosso do Sul e mesmo assim, a produção é bem reduzida.

 

Hoje, a maior parte da produção vem do Paraná e, em segundo lugar, de São Paulo. O bicho-da-seda também enfrenta a concorrência de outras culturas, como a cana, e não costuma atrair jovens, pois exige dedicação e paciência.

 

ELITE

 

Criador de bicho-da-seda há 40 anos, Miguel Pereira da Silva, 69 anos, faz parte de uma espécie de elite dos sericicultores, pois dedica-se a criação de larvas de raça pura, usadas para acasalamento e produção de novas larvas. Ele ganha R$ 13 por quilo de casulo, enquanto o destinado à produção do fio de seda rende até R$ 7,20, dependendo da qualidade. No entanto, nos últimos anos, Silva precisou diversificar a produção para garantir a renda da família. Com uma produção de 600 quilos por mês durante nove meses do ano, conseguiu garantir renda de R$ 52 mil em 2008. "É o que está declarado no Imposto de Renda", conta. "Em outros anos, cheguei a declarar R$ 72 mil."

 

Se seus casulos fossem aproveitados na confecção de fios de seda, a produção de Miguel seria suficiente para produzir algo como 3.600 gravatas em um ano - equivalente a um faturamento bruto de R$ 2,4 milhões. "Com a sericicultura criei duas filhas, comprei um carro e um trator. Mas hoje estou correndo atrás de centavos", diz Silva. Em sua casa modesta na zona rural de Bastos, que há alguns anos recebeu a visita dos donos da Hermès, o único exemplar de seda está na parede, na imagem de uma japonesa de quimono. "Ah, se eu pudesse ter uma camisa bonita de seda..."