As viagens e expedições

Campanhas de demarcação de limites da América Meridional

Prefácio do Diário Resumido e Histórico da Primeira divisão da quarta Campanha de demarcação de limites da América Meridional, de autoria do astrônomo, geógrafo e matemático José de Saldanha. No diário, promove uma minuciosa descrição geográfica da capitania do Rio Grande de São Pedro, além de uma explicação etimológica dos nomes dados pelos nativos aos locais e rios percorridos pela expedição. A fauna e flora são descritas sob o sistema de Lineu, assim como os nativos: dentre eles os Tapes e Minuanos. Assinado pelo governador da Capitania do Rio Grande de São Pedro, o brigadeiro Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara e pelo engenheiro Alexandre Eloy Portelli.  

Conjunto documental: Vice-reinado. Correspondência com o governo e mais pessoas do Rio Grande do Sul sobre demarcação de limites, etc.
Notação: códice 104, vol. 10     
Datas-limite: 1785-1789
Título do fundo: Secretaria de Estado do Brasil
Argumento de pesquisa: Viagens científicas e filosóficas
Data do documento: 10 de novembro de 1787                                                                        Local: Rio Grande de São Pedro
Folhas: 130 a 132

Prefácio

Pode o pintor com delicado pincel representar a natureza; mas não expressar as circunstâncias, notícias e movimentos dos sucessos. Esta é a parte reservada ao historiador: feliz a enérgica pena ao que ao seu escritor sabe desempenhar, felizes as palavras, que uma nova pintura compõem, aquela perceptível a vista, esta ao discurso. 
Um extenso Diário, qual o que compomos na Campanha[1], é indispensável para a exata configuração dos planos; porém ele fica fastidioso a leitura, pela multidão de adições próprias da matéria e semelhante a uma apostila das Leis da estrutura superficial da Terra. D’aqui se vê facilmente a precisão de se construir outro, em o qual não somente se resuma aquele, podendo servir também a formação de novo mapa, mas ainda se lhe ajuntem algumas breves notas sobre a Historia Natural [2] e do País.
Esta é a obra que eu sou obrigado satisfazer na ausência do Segundo comissário, o coronel Francisco João Roscio[3], que se acha incumbido da demarcação do artigo 8º [4]. Talvez seja bem diferente o método que eu me proponho a seguir; d’aquele de que ele o faria nos antecedentes diários, e dos quais não tive jamais conhecimento algum: Porém que melhor desculpa posso eu ter aos meus erros, do que a da obediência às ordens superiores? Eu sou mandado com as frágeis armas da minha humilde eloqüência apresentar o descoberto peito aos críticos golpes das armadas séries de ilustres e assaz instruídas pessoas por cujas mãos tem de caminhar este papel. 
Vem pois a ser o corpo principal do presente diário resumido a explanação de todas as marchas, o seu rumo geral verdadeiro, e as suas distancias retas, e andadas; o resultado das observações de Latitude, Longitude, e variação d’agulha; uma leve passagem sobre as qualidades do terreno de cada derrota, e a descrição particular dos lugares, montanhas, arvoredos, lagoas, arroios e rios remarcáveis com as etimologias e significados dos seus nomes. Na citação das notas eu devo referir algumas noticias das produções naturais deste continente pelos três reinos: animal, vegetal e mineral, descrevendo-os concisamente, conforme o permite o titulo de um diário, e reduzindo-os ao Sistema do grande Lineu[5] a proporção que casualmente se forem apresentando. Reservando, porém, para um particular suplemento aos diários da 1ª Partida[6] todos os conhecimentos que poder alcançar e as minhas ocupações me concederem acerca da mesma matéria. 
Bem longe de desprezar os termos próprios do País, eu pretendo usar deles simultaneamente depois de os explicar, e combinar nas mesmas notas; assim será inteligível este diário não só na Europa, mas ainda nesta América. 
Pode ser que meu ante-escriptor tenha nos passados Diários suprido já a interpretação destas frases; mas eu não devo expor aos meus leitores na contingência de experimentarem essa falta: podendo na leitura omitir-se aquelas notas, que julgarem supérfluas; para cujo fim as distinguirei com diferentes sinais, fazendo preceder uma estrelinha as que definem os referidos termos; de uma letra do alfabeto as pertencentes à Historia Natural e de números as do País. 
Representar todos os dias sobre o Teatro da natureza as mesmas, ou bem semelhantes cenas, e mudar de provérbios não é certamente mais fácil: donde se segue não poder eu fugir do vicio da monotonia, ou repetição de palavras.
Finalmente eu sou encaminhado a composição de um Diário de reconhecimentos topográficos com a união de uma viagem histórica; qualquer das duas partes mais difícil aos meus débeis talentos; qual tenra planta, que abundantes, e agradáveis frutos não pode dar antes do seu tempo.


[1] A despeito do Tratado de Tordesilhas que, em 1494, dividiu o Novo Mundo entre Portugal e Espanha, os três primeiros séculos de colonização ibérica nas Américas assistiram ao avanço da presença lusa pela fronteira imaginária, favorecida em parte pela União Ibérica (1580-1640). Com intuito de atualizar Tordesilhas, Portugal e Espanha assinam, em 1750, o Tratado de Madri quando Portugal incorpora oficialmente o Rio Grande do Sul, Mato Grosso e a Amazônia conforme o princípio do uti possidetis que garantia a posse aos ocupantes da terra. Em decorrência do Tratado de Madri foi promovida uma série de expedições, integradas por cartógrafos, engenheiros, astrônomos, geógrafos e riscadores, em geral italianos e alemães, encarregadas de demarcar as fronteiras. Uma das diretrizes da demarcação era o respeito ao curso dos rios, montanhas e acidentes geográficos como demarcadores naturais. Entretanto, na segunda metade do século XVIII, os impasses permanecem, principalmente na região platina, alvo de constantes conflitos militares. De um lado, a Espanha não se conformava com a presença portuguesa em Sacramento, território espanhol segundo o Tratado de Madri, embora estratégico para as pretensões portuguesas no Rio da Prata, e a Portugal interessava a anexação dos Sete Povos das Missões região cedida aos espanhóis. A solução viria com novo tratado, Santo Ildefonso, celebrado em 1777, de caráter preliminar, no qual Portugal abria mão da Colônia de Sacramento e das Missões. A partir de Santo Ildefonso são estabelecidas quatro comissões demarcadoras de limites, compostas por dois comissários, dois engenheiros e técnicos incumbidos do mapeamento cartográfico das zonas de fronteira. Ao contrário das expedições decorrentes do Tratado de Madri as do último quartel do XVIII contaram com profissionais portugueses, advindos dos bancos da Universidade de Coimbra reformada. Outra particularidade dessas expedições que refletia as reformas na Universidade, e as novas instituições portuguesas como a Academia Real de Ciências de Lisboa e o Museu de História Natural, foi a crescente incorporação de outros conhecimentos que garantissem o efetivo povoamento do território, como a História Natural. Ao lado das descrições geográficas e das anotações de latitude e longitude, aparecem de forma mais sistemática nos relatórios de viagem descrições da flora e da fauna, observações sobre as populações indígenas, mapas populacionais e referências às técnicas agrícolas empregadas.
[2] Ao longo do século XVIII, a observação e estudo da natureza adquirem crescente importância e passam a obedecer aos critérios de racionalidade e utilitarismo característicos da ilustração. O campo do conhecimento designado como História Natural que compreendia a Botânica, a Zoologia e a Mineralogia, sofre no setecentos a influência das novas teorias científicas e paradigmas filosóficos à medida que se configura como disciplina autônoma e científica, dotada de método. Buscava-se promover um inventário da natureza que passava pela classificação e ordenação do mundo natural a partir essencialmente do sistema elaborado pelo naturalista sueco Carl von Lineu. Nesse sentido foram promovidas viagens às diversas regiões do globo tendo em vista o recolhimento de espécies dos chamados “três reinos da natureza” para envio aos museus e gabinetes de História Natural criados na Europa. Em Portugal verifica-se um crescente interesse pela História Natural, na segunda metade do XVIII, manifesto na criação de museus, gabinetes e jardins botânicos e na introdução da disciplina nos estudos superiores através da reforma pombalina da Universidade de Coimbra (1772). O conhecimento das produções naturais dos domínios ultramarinos portugueses, tendo em vista um maior aproveitamento das potencialidades dos territórios impulsionou as viagens científicas e filosóficas patrocinadas pela coroa lusa. Integravam tais expedições naturalistas formados pela Universidade reformada conhecedores da História Natural que deveria obedecer aos princípios de experimentação e observação da ciência moderna. As diferentes espécies vegetais e animais recolhidas nas viagens eram encaminhadas aos gabinetes de história natural e classificadas segundo o sistema do naturalista sueco Carl Von Lineu (1707-1778). A preocupação com as possíveis aplicações dos produtos verificava-se já na pesquisa de campo quando os naturalistas indicavam o uso medicinal e alimentar que lhes davam os povos indígenas. Inúmeras foram as publicações que resultaram desse intenso período dedicado a coleta e pesquisa de exemplares dos “três reinos da natureza”, entre elas Florae Lusitanicae et Brasiliensis(1788) e o Dicionário dos termos técnicos de História Natural(1788), de Domingos Vandelli; Flora fluminensis, de José Marianno da Conceição Velloso; Observações sobre a História Natural de Goa, feitas no ano de 1784, de Manoel Galvão da Silva, além de diversas memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa dedicadas à botânica.
[3] Nascido na ilha da Madeira em 1733, o geógrafo e engenheiro militar Francisco João Roscio chega ao Brasil em 1767, onde atuaria como cartógrafo. Foi responsável por diversos projetos de vilas, prédios públicos e igrejas. No atual Rio Grande do Sul seus principais projetos foram a Matriz de Cachoeira do Sul e a Matriz de Rio Pardo. No Rio de Janeiro projetou a Igreja da Candelária. Designado pelo marquês de Lavradio, vice-rei entre 1770 e 1779, para construção e reparação de fortificações, além do levantamento cartográfico das capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande; havendo registros cartográficos do Rio de Janeiro e de Rio Grande de São Pedro de autoria de Roscio. Tenente-coronel do Corpo de Engenheiros integrou as expedições de demarcação de limites decorrentes dos tratados assinados entre as coroas ibéricas. Atuou como segundo comissário de demarcações de limites na região sul do Brasil chefiando a primeira divisão da quarta Campanha de demarcação da América Meridional, integrada ainda pelo engenheiro José Saldanha e pelo ajudante Elói Portelli. Durante os anos de 1774 e 1775, escreve seu Compêndio Noticioso do Continente do Rio Grande de São Pedro, descrevendo os costumes dos habitantes, as atividades econômicas e o sistema de transportes da região. Entre os anos de 1801 e 1803 ocupa o cargo de governador interino da Capitania do Rio Grande de São Pedro, vindo a falecer em 1805, em Porto Alegre.
[4] Refere-se ao Artigo VIII do Tratado de Santo Ildelfonso ou Tratado Preliminar de Paz e Limites firmado entre as coroas portuguesa e espanhola em 1º de outubro de 1777. De acordo com o Tratado Preliminar, Portugal deveria ceder a Colônia de Sacramento e as Missões do lado esquerdo do rio Paraguai à Espanha, admitindo a soberania castelhana sobre as duas margens do rio da Prata, enquanto a Espanha deveria restituir a ilha de Santa Catarina, o Rio Grande do Sul e o Jacuí à coroa lusa. A confirmação deste tratado não foi efetuada, sendo substituído pelo do Tratado de Pardo, em 1778. O texto original estabelecia:Ficando já assinalados os domínios de ambas as Coroas até á entrada do Rio Pequirí, ou Pepiri-guaçú no Uruguai, convieram os dois Altos Contratantes, em que a Linha divisória seguirá águas acima do dito Pepiri-guaçú até á sua origem principal; e desde esta, pelo mais alto do terreno, debaixo das regras dadas no Artigo VI., continuará a encontrar as correntes do Rio Santo Antônio, que desemboca no grande de Curituba, por outro nome chamado Iguaçú, seguindo este águas abaixo até á sua entrada no Paraná pela sua margem Oriental, e continuando então águas acima do mesmo Paraná, até onde se lhe ajunta o Rio Igureí pela sua margem Ocidental.”
[5] Carl Von Lineu (1707-1788) foi um médico e naturalista sueco célebre por ter proposto um sistema de classificação das espécies em sua obra Systema Naturae, cuja primeira versão data de 1735. Lineu defendia a divisão dos seres vivos em três reinos: vegetal, animal e mineral e subseqüentemente em classes, gêneros e espécies. Acreditava que seu sistema de classificação, conhecido como classificação binária, por nomear gênero e espécie, expressava a ordem mesma da natureza criada por Deus, na qual as espécies seriam imutáveis. O latim foi o idioma adotado para a nomenclatura. A obra sofreu diversos acréscimos à medida que Lineu recebia novas classificações de espécies vegetais e animais e amostras destas de seus estudantes enviados em expedições científicas às diversas regiões do globo. A crescente observação de novas espécies de plantas e animais levou Lineu a rever a tese da imutabilidade das espécies. Em Portugal, o sistema lineano é adotado oficialmente após as reformas pombalinas e norteará os trabalhos dos naturalistas luso-brasileiros em missões oficiais. O naturalista italiano Domenico Vandelli, lente de História Natural em Coimbra e idealizador das viagens científicas e filosóficas pelo Império ultramarino foi um de seus correspondentes. José Saldanha autor do Diário Resumido e Histórico faz referência à obra de Lineu, buscando utilizar sua taxonomia na análise dos povos indígenas.
[6] Quatro comissões mistas, com representantes de ambas as coroas ibéricas, foram encarregadas de fazer valer o Tratado de Santo Ildefonso (1777) que revia os limites territoriais entre os domínios de Portugal e Espanha na América do Sul. O documento em questão se refere à expedição promovida pela Primeira divisão de demarcação de limites da América Meridional, responsável pela demarcação das fronteiras da Região Sul, entre os rios Chuí e Igureí. Integraram a equipe portuguesa o governador da capitania do Rio Grande de São Pedro, Sebastião Xavier da Veiga Cabral, principal comissário; o coronel de infantaria com exercício de engenheiro, Francisco João Roscio, como segundo comissário; o engenheiro Alexandre Elói Portelli; o astrônomo e geógrafo José Saldanha, além do engenheiro Francisco das Chagas Santos e do astrônomo Joaquim Félix da Fonseca. A equipe que contava com matemáticos, astrônomos, engenheiros, oficiais, soldados e escravos deveria estabelecer marcos físicos a partir das indicações do Tratado. Os trabalhos tiveram início em 1784 e se estenderam por mais de uma década. A expedição produziu farto material cartográfico da região sul subsidiando a formulação de políticas de defesa das fronteiras, através da construção de fortificações, além de ter estabelecido núcleos de povoamento do território.  

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