Teatro

Consagração no palco de Shakespeare

O Grupo Galpão comemora trinta anos com apresentação aplaudidíssima no Globe Theatre, em Londres, e festa ao ar livre na Praça do Papa

Por: Isabella Grossi - Atualizado em

Guto Muniz
(Foto: Redação VejaBH)

A peça foi toda apresentada em português - sem legendas -, para uma plateia predominantemente inglesa. Mesmo assim, arrancou aplausos entusiasmados no final. Nos últimos dias 19 e 20, o Grupo Galpão foi ovacionado pelo público que lotou os 1 500 lugares do Globe Theatre, o mítico palco inaugurado em 1599 perto do Rio Tâmisa, em Londres, pela Chamberlain's Men, a companhia de William Shakespeare. É a segunda vez que o Romeu e Julieta do Galpão desembarca em solo britânico para participar do Globe to Globe, evento dedicado à obra do dramaturgo. Foram convidadas 37 companhias de diferentes países para encenar as peças do bardo, cada uma em sua língua. "Os ingleses amam de tal forma o teatro e Shakespeare que o idioma deixa de ser um entrave e o espetáculo funciona maravilhosamente bem", afirma Eduardo Moreira, que faz o papel de Romeu. Os ingressos para a famosa versão dos atores mineiros, apresentada quase 300 vezes em nove países, esgotaram-se com semanas de antecedência para as três apresentações.

A remontagem da universal e trágica história de amor marca o início das comemorações dos trinta anos do Galpão. Depois de Londres, a peça faz temporada em Belo Horizonte, onde reestreia no dia 9 de junho na Praça do Papa, no lançamento do 11º Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua (FIT). Em seguida, parte para São Paulo e Rio de Janeiro. O Galpão é um sucesso de público (suas vinte peças foram vistas por mais de 1,4 milhão de pessoas nesses trinta anos) e crítica. "O trabalho do grupo é incrível", afirma Barbara Heliodora, a mais respeitada tradutora brasileira de Shakespeare e temida crítica teatral do jornal O Globo. "A companhia faz tudo com uma dedicação de quem realmente se preocupa em levar para o povo essa expressão de arte." Segundo o crítico paulista Valmir Santos, que colabora para a revista BRAVO! e para o jornal Valor Econômico, a companhia representa um paradigma do teatro no Brasil. "Todos os grupos que nasceram nos últimos anos inevitavelmente têm o Galpão como referência", diz. "A mesma coisa vale para os que ainda vão nascer." Atores e diretores não poupam elogios. "O que faz da trupe a principal do Brasil é uma equação que leva em conta não só a qualidade das peças apresentadas", analisa a diretora Yara de Novaes. "Ela é a que mais viaja, e todos os seus artistas são investigativos e inspirados."

Fundado em 1982, o Grupo Galpão surgiu do encontro dos atores Wanda Fernandes, Teuda Bara, Antonio Edson, Eduardo Moreira e Fernando Linares. Depois de participar de uma oficina e de uma montagem com os diretores da companhia Teatro Livre de Munique, da Alemanha, a turma decidiu se unir para levar adiante o trabalho. Os atores criaram então uma companhia de teatro de rua, com elementos circenses e do folclore brasileiro. Foram quatro espetáculos com a primeira formação, até Fernando Linares se desligar. Em 1989, conseguiram comprar sua sede, no Horto. Cinco anos depois, Wanda Fernandes morreu em um acidente automobilístico, numa tragédia que abalou os pilares da companhia. Ao longo do tempo, outros artistas foram agregados, como Arildo de Barros, Fernanda Vianna, Paulo André, Chico Pelúcio, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Simone Ordones, Beto Franco e Rodolfo Vaz.

Não é difícil entender o que faz do Romeu e Julieta galponiano um dos espetáculos mais marcantes do teatro contemporâneo brasileiro. Apesar da forte carga do texto erudito, é um convite à poesia, ao lúdico e à ingenuidade das brincadeiras de criança. Da interpretação com pernas de pau à música tocada ao vivo pelos atores, com acordeão, um trio de violões, flauta, percussão e sax. Sem contar o charme da Veraneio 1974. O antigo carro que transportava os atores na década de 80 é marca registrada da montagem. Aliás, ele foi escolhido como cenário pelo diretor Gabriel Villela antes mesmo de definir como seria a montagem. Na temporada inglesa, a mascote foi substituída por uma perua Camper, da Volvo. "O mais curioso é perceber como as pessoas ficam surpresas com a liberdade que tomamos com a obra", conta Moreira. "Pouco a pouco, no entanto, elas vão entrando no jogo da encenação e percebendo que a montagem resgata o lado genuinamente popular do texto de Shakespeare." Barbara Heliodora explica que o grupo captou o espírito com o qual a peça foi escrita e encontrou uma linguagem preciosa para expressar a emoção do texto. "A plateia fica absolutamente tomada pela beleza, pelo encanto e pelo amor com que aquilo é feito", afirma. "Costumo dizer que existem dois tipos de artista, o dos que falam em Shakespeare e ficam de joelhos, o que eu acho horrível, e o dos que querem ser melhores e atrapalham tudo para fazer diferente. O Galpão simplesmente decidiu contar a história de um jeito brasileiro, mas com a essência, com fidelidade."

O espetáculo estreou há vinte anos na Praça do Papa, em Belo Horizonte. Na época, Julieta era vivida por Wanda Fernandes. Hoje, Fernanda Vianna é quem contracena com Eduardo Moreira. Nesta versão, Chico Pelúcio foi substituído por Paulo André, que interpreta Teobaldo e Frei Lourenço. Tirando a troca de atores, nada está diferente, a não ser o incontestável peso do correr dos anos. "Ainda bem que meu joelho está aguentando e eu também", brinca Teuda Bara, que faz a ama de Julieta. A remontagem com Gabriel Villela só foi possível após o desenlace de um mal-entendido que custou o rompimento da bem-sucedida parceria: em viagem de férias aos Estados Unidos, Villela deu de cara com o anúncio da apresentação de sua adaptação de Romeu e Julieta. Como ele não sabia de nada, criou-se a saia justa. O ressentimento passou e os laços entre o Galpão e Villela, que dirigiu ainda A Rua da Amargura, de 1994, acabaram mais fortes que o desacordo.

A exemplo do diretor, outros profissionais de renome fizeram parte da trajetória da companhia. Das vinte peças do repertório, treze foram dirigidas por convidados como Eid Ribeiro, Cacá Carvalho e Paulo José. A falta de um diretorzão, que sempre puxasse as rédeas da companhia, nunca foi um problema para o Galpão. Aliás, há quem diga que é exatamente esse rodízio constante de diretores o responsável pelo fôlego de tantos anos. "Geralmente identificamos o grupo pelo chefe, pelo pai da família", diz Paulo José. "No Galpão, não. Eles experimentam a cada momento algo novo, que não havia sido desenvolvido."

Os últimos trabalhos do Galpão refletem uma nova fase de amadurecimento: Eclipse, dirigido pelo russo Jurij Alschitz, e Tio Vânia — Aos que Vierem Depois de Nós, por Yara de Novaes, ambos de 2011, são resultado do projeto Viagem a Tchecov, que propôs uma imersão na obra do escritor russo Anton Tchecov (1860-1904). O passeio pelos contos do dramaturgo também rendeu um importante marco na história do grupo, quando o documentarista Eduardo Coutinho, de Edifício Master, Peões e Jogo de Cena, o procurou com a intenção de filmar o processo de criação de uma peça teatral. Durante três semanas, Coutinho registrou os ensaios de As Três Irmãs, com direção de Enrique Diaz. O trabalho serviu exclusivamente para o filme Moscou (2009) e nunca chegou aos palcos.

Depois de três décadas de pesquisa, busca de linguagem, troca de experiências, imersões e renovações, era possível apostar em uma pausa ou mesmo no enfraquecimento da companhia. Principalmente com a queda no orçamento. Em 2001, o grupo fechou um patrocínio exclusivo com a Petrobras, pelo qual recebia 3 milhões de reais por ano. Ao longo da última década, a empresa foi diminuindo esse valor, até que, no ano passado, o Galpão rompeu o contrato de exclusividade. Ainda recebe 1,5 milhão de reais, mas busca complementar a receita com outras ações. "Desde o rompimento do contrato de exclusividade estamos procurando um novo parceiro", conta Beto Franco. "Temos a manutenção, mas precisamos assegurar as turnês do grupo."

O Galpão está definitivamente a mil. Depois de abrir uma exposição com os figurinos restaurados de A Rua da Amargura (1994), Partido (1999) e O Inspetor Geral (2003) e pôr à venda os DVDs dos espetáculos Um Molière Imaginário (1997), Pequenos Milagres (2007) e Till, a Saga de um Herói Torto (2009), o grupo pretende lançar mais quatro livros da série Diários de Montagem. Completam os oito volumes Encontros com Paulo José (2002), O Inspetor Geral (2003), Um Homem É um Homem (2005) e Till. Para o cinema, haverá a adaptação de seis contos de Tchecov e o lançamento do documentário com os bastidores da apresentação de Till no festival Santiago a Mil, em 2011, no Chile.

A maior novidade, porém, é o novo espetáculo de rua que está sendo preparado. Em novembro próximo começam os ensaios de Os Gigantes da Montanha, baseado na obra do italiano Luigi Pirandello (1867-1936). Mais uma vez Gabriel Villela estará à frente da montagem, incrementada com a participação da musicista italiana Francesca dela Monica e do maestro Ernani Maletta. A estreia está prevista para 2013. "É o último texto escrito pelo autor, e ele foi deixado incompleto, com um possível final ditado ao filho em seu leito de morte", explica Eduardo Moreira. Os planos do Galpão não terminam a curto prazo. Até 2014, eles têm um desafio e tanto: concluir as obras de construção da nova sede, que vai reunir todas as suas atividades e também as do Galpão Cine Horto, espaço em que são ministrados cursos livres de teatro e oficinas. No terreno de 2 055 metros quadrados na Avenida Andradas, cedido pelo governo do estado, será erguido um prédio de quatro andares, totalmente projetado nos conceitos de arquitetura sustentável. "Temos um comodato de 25 anos, o que nos obriga a pensar um longo período para a frente", afirma Chico Pelúcio. Um dos nomes cogitados para futuras encenações é o do diretor Felipe Hirsch, responsável por espetáculos como A Vida É Cheia de Som e Fúria (2000), inspirado no livro Alta Fidelidade, do inglês Nick Hornby, e Avenida Dropsie (2005), baseado na obra do quadrinista Will Eisner. "Há tempos conversamos sobre essa parceria. É um namoro que dura uns oito, nove anos", revela Hirsch, que já pensa até no texto. "Sugeri Murilo Mendes e Ciro dos Anjos, dois autores que eu amo muito." Enquanto a parceria não sai, Hirsch se derrete: "Eles são os Beatles do teatro brasileiro. Existem grandes companhias, mas o Galpão é maior que qualquer outra". Os ingleses assinam embaixo.

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Fonte: VEJA BELO HORIZONTE