Noções básicas de geomorfologia

Lucivânio Jatobá

1

GEOLOGIA, GEOMORFOLOGIA E GEOGRAFIA

A Geomorfologia é uma geociência que estuda, de forma racional e sistemática, as formas de relevo, tomando por base as leis que determinam a gênese e a evolução dessas formas.

O trabalho geomorfológico, que pressupõe do pesquisador uma série de conhecimentos de outras ciências, implica nas seguintes atividades: descrição, localização e dimensionamento dos diversos compartimentos e feições de relevo verificados na epigeoesfera. Além dessas preocupações, a Geomorfologia volta-se, principalmente, à gênese e à evolução do relevo terrestre. A Geomorfologia é, portanto, uma ciência descritiva e genética.

Será a Geomorfologia uma ciência geológica, geográfica ou geofísica? Onde se situa, portanto, a Geomorfologia no quadro geral das ciências da Terra?

O geocientista francês, Jean Goguel, apresentou uma classificação das geociências, bastante simples, que pode servir para subsidiar a resposta à questão anteriormente apresentada. Para este autor, as ciências da Terra podem ser agrupadas em três categorias distintas: a) Ciências da Geofísicas, b) Ciências Geológicas e c) Ciências Geográficas.

As Ciências Geofísicas compreendem aquelas que tratam de fenômenos terrestres, de natureza física, mas sob a ótica da Física. A Sismologia, a Meteorologia e a Hidrologia Fluvial exemplificam esse grupo de ciências.

As Ciências Geológicas se propõem à reconstituição da história física do planeta Terra, tal como ela pode ser vista ou lida nos diversos estratos rochosos presentes na epigeoesfera. As ciências geofísicas, em geral, prendem-se ao aspecto atual dos fenômenos físicos, quer os que têm uma evolução rápida, tais como os envoltórios fluidos e alguns fatos da litosfera, a exemplo dos abalos sísmicos e o magnetismo terrestre, quer os de caráter permanente, como a aceleração da gravidade.

Podem ser mencionados diversos exemplos de Ciências Geológicas, algumas das quais mantêm estreitos vínculos com a Geomorfologia. A Geotectônica, a Geologia Estrutural, a Paleontologia, a Sedimentologia e a Estratigrafia são os exemplos mais notáveis.

As ciências geológicas, quando se dedicam à descrição da natureza dos terrenos e ao estudo das distribuição da litomassa, fá-lo com vistas à interpretação de fenômenos passados, que são reconstituídos por métodos geohistóricos.

A Geologia, quando investiga a história da Terra, desempenha essa tarefa através, sobretudo, de uma analogia com o que a observação dos fatos naturais, feita de forma direta, pode proporcionar. Por exemplo, ao se constatar que no presente determinadas causas produzem tais efeitos, efeitos análogos pressupõem as mesmas causas.

A Geomorfologia estuda o passado para compreender o presente. A Geologia faz exatamente o inverso. A Geomorfologia procura explicar as formas atuais de relevo, que podem ser facilmente divisadas na paisagem, por sua gênese, por seu passado, às vezes muito distante. Porém, a exemplo da Geologia, a Geomorfologia não pode avançar, a não ser a partir de uma raciocínio analógico, que parte do presente. Essas idéias, na verdade, estão contidas no célebre Princípio do Atualismo, examinado mais adiante nestas Notas.

As Ciências Geográficas têm como objeto de estudo o fato geográfico. Assim ensina a Geografia Clássica. O fato geográfico é algo que possui uma estrutura extremamente complexa e resulta da combinação de elementos e fatores solidários ( Andrade, 1965) .

São três as escalas de complexidades da combinação geográfica: físicas, combinações físico-biológicas e físico-biológico-humanas.

O relevo terrestre, abstraindo-se a cobertura vegetal, é um bom exemplo da complexidade das combinações físicas. Estrutura geológica, condições climáticas atuais ou pretéritas e os processos erosivos materializam tais combinações.

A estrutura geológica compreende, dentre outros aspectos, as forças tectônicas, a natureza das rochas, a disposição das camadas rochosas e os graus de resistência da litomassa aos processos de meteorização e de erosão.

As condições climáticas determinam os efeitos da meteorização mecânica ou química e os processos morfoclimáticos esculturadores das paisagens geomorfológicas continentais. Tais processos definirão os vários sistemas de erosão encontrados na superfície terrestre.

As combinações físico-biológicas, que indicam o segundo nível da escala crescente da combinação geográfica, definem-se com a inclusão do elemento biológico, particularmente a vegetação.

A vegetação decorre de combinações climáticas, relevo e tipos de solos. Mas ela também influencia o relevo, o clima e os solos. E´ a solidariedade do complexo geográfico (Andrade, op. cit).

O último nível da combinação geográfico está representado pelas combinações físico-biológico-humanas. Esse é o mais elevado grau de complexidade do fato geográfico. Ainda, segundo Andrade( op. cit, p. 328), "A Geografia se consuma assim, com a consideração do homem na cena da natureza. A natureza de uma parte, cujas condições e recursos impõem ao homem o esquema de seu destino. Introduzindo o homem nas ciências da Terra, o geógrafo se esforça por ver claramente essa síntese de condições naturais e da presença do homem. Supera, assim, a distância entre os fenômenos humanas. Essa a sua originalidade principal. Esse o seu "passaporte" legítimo com que penetra nas "áreas marginais", onde tantas outras ciências da Terra, da vida e do homem se exercitam".

A Geomorfologia , no quadro geral das Ciências da Terra, se situa na interface existente entre as Ciências Geológicas e as Ciências Geográficas, segundo a classificação de Goguel. Essa ciência mantém profundos vínculos, já assinalados, com a Geologia. Mas é também essencialmente geográfica, na medida em que depende dos conhecimentos de Climatologia, Paleogeografia, Fitogeografia, Pedologia e Hidrografia e se fornece substanciais informações necessárias ao entendimento da produção do espaço geográfico.

Segundo Kostenko (1975), a Geomorfologia funciona como uma ponte entre a Geografia e a Geologia, e estuda uma série de problemas complexos e heterogêneos, alguns dos quais resolvem-se através de métodos fisico-geográficos e outros mediante a aplicação de métodos geológicos.

2

ESTUDAR O PRESENTE PARA COMPREENDER O PASSADO

Henri Poincaré, no artigo " L’evolution des lois", publicado no ano de 1913, em Dernières Pensées, afirmou: " Nada poderemos saber do passado se não admitirmos que as leis não mudaram; se o admitirmos, a questão será insolúvel, como, de resto, todas as demais questões que se reportam ao passado." Eis o fundamento do Princípio do Atualismo ou Postulado do Atualismo.

Serão transcritos, a seguir, algumas anotações de aula feitas por Gilberto Osório de Andrade e Rachel Caldas Lins, sobre o Princípio do Atualismo, durante a disciplina Bases e Métodos da Geomorfologia, ministrada em 1978 por aqueles professores.

  1. "A Geologia reconstitui o passado a partir do presente. A geomorfologia explica desde logo o presente pelo passado. Uma e outra devem, portanto admitir o princípio do atualismo. De resto, esse princípio foi, sem dúvida, entrevisto desde que o espírito humano concebeu nitidamente a causalidade como encadeamento constante de fenômenos, permitindo remontar tão bem o curso do tempo, como descer nele.
  2. Ainda no século XIX, viva resistência era oposta a essas idéias. Antes de mais nada, graças à brevidade do tempo atribuído aos fenômenos geológicos. Brevidade admitida não somente pela cronologia deduzida do Gênesis, como também pelos primeiros experimentadores. Assim Buffon ensaiou calcular a idade da Terra segundo a velocidade de resfriamento duma esfera metálica aquecida ao rubro. Outros propuseram geocronologias fundadas no grau de salinidade dos oceanos, ou na velocidade da sedimentação, ou ainda no resfriamento presumido do globo. Nos domínios da Paleontologia, só prefigurando destruições instantâneas era possível explicar o fato de Ter havido tantas criações sucessivas que desapareceram. Cuvier defendia essa concepção com toda sua autoridade científica em 1820.

Beaumont estabeleceu a idade relativa das montanhas no pressuposto de que cada uma delas surgira bruscamente, como por uma espécie de cataclisma."

O Princípio do Uniformitarismo preconiza, portanto, que os mesmos processos e leis físicas que atuam no presente , agiram no passado, mas não necessariamente com a mesma intensidade. Assim, para os uniformitaristas, a Terra chegou a ser o que é mediante a ação de processos graduais e uniformes. Essa idéia se opõem, assim, aos conceitos catastrofistas.

" Precisamente, o ritmo e a intensidade da atuação pretérita das causas atuais são os pontos sobre os quais se centra o ataque ao Princípio do Uniformitarismo. E´óbvio que existiram erupções vulcânicas mais violentas e extensas quaisquer das registradas na história humana; os testemunhos das ações glaciais antigas mostram que as geleiras de hoje são pequenas e fracas, quando comparadas com os de outras épocas, e as crateras da Lua são indícios de uma classe de atividade agora existente. No entanto, as leis físicas que regem as erupções vulcânicas, a ação dos gelos e queda de meteoritos não mudaram, mas apenas a sua intensidade variou."

(STOKES, 1969)

3

O PAPEL DA ESTRUTURA GEOLÓGICA NA DEFINIÇÃO DO RELEVO TERRESTRE

A estrutura geológica é um tema que não pode ser desprezado na análise da gênese e da evolução do relevo terrestre. Ela engloba diversos aspectos relacionados à crosta terrestre, alguns dos quais apresentam uma extrema complexidade. Boa parte dos aspectos estruturais da crosta terrestre é estudada por diversas geociências, como por exemplo a Geotectônica, a Geologia Estrutural, a Petrografia e a Geomorfologia Estrutural.

A Geomorfologia Estrutural foi, durante muitas décadas do século XX, a parte da Geomorfologia que recebeu a maior atenção dos pesquisadores, mas , atualmente, vem recebendo um peso menos nas matrizes curriculares dos cursos de Geografia, infelizmente. Esse importante ramo da Geomorfologia analisa a participação da estrutura geológica na definição de alguns compartimentos de relevo sob dois aspectos básicos. Em primeiro lugar, ela examina os elementos fundamentais do arcabouço estrutural, como por exemplo a constituição do globo terrestre, a estrutura e a dinâmica da crosta terrestre, as rochas e os grandes conjuntos estruturais, constituindo , assim, uma abordagem eminentemente geológica. Em segundo lugar, volta-se para aspectos mais exclusivamente geomorfológicos, tais como as diferenças litológicas numa paisagem e seus efeitos morfológicos ou o modelado do relevo em litomassas específicas ( calcário, por exemplo) , ou ainda as morfoestruturas em áreas de colisão de placas litosféricas etc.

Pierre Birot ( 1958) considerava que a explicação do relevo terrestre reduzia-se a dois princípios básicos: a) "toda região deprimida é composta de rochas tenras ou rebaixadas por esforços tectônicos, b) toda região elevada se compõe de rochas mais resistentes ou foram levantadas por processos tectônicos".

A estrutura geológica compreende, portanto, entre outros, os seguintes aspectos:

- diferenças de dureza das rochas

- disposição das camadas rochosas

- movimentos crustais

- falhas

-fraturas

-dobras

-litomassas específicas.

As diferenças de dureza das rochas vão desempenhar um papel fundamental num processos geomorfológico destacado, que é a erosão diferencial. A erosão diferencial é um processo erosivo eminentemente seletivo. Ela faz-se mais enérgica em rochas frágeis e mas "suave" em rochas mais resistentes. Essa modalidade de erosão seletiva tem como principal mérito ressaltar as diferenças de dureza do material rochoso.

A erosão diferencial depende dos seguintes fatores: a) a consistência da rocha mais ou menos compacta e de sua textura. Por exemplo, os calcários e as argilas são mais facilmente desagregáveis pelos filetes d’água do que os granitos; b) do estado de fraturamento da rocha; o sistema de diaclasamento facilita uma concentração da rede de drenagem e da infiltração das águas; c) o grau de permeabilidade da rocha.

As camadas rochosas, sobretudo as sedimentares, dispõem-se nas paisagens geomorfológicas horizontalmente ou de forma subhorizontal a inclinada. Na periferia de uma sinéclise, que não foi arqueada, as camadas são mais inclinadas do que no centro. Neste, as camadas são mais horizontais. Esse fato , de natureza estrutural, contribui para a existência de cuestas, na periferia da bacia sedimentar e de chapadas e chapadões no centro. Há notáveis exemplos dessa influência estrutural na bacia sedimentar do Meio Norte.

As áreas intensamente fraturadas, quando situadas nas imediações de corpos rochosos não fraturados, respondem, em geral, como áreas deprimidas. O intenso fraturamento colabora para que haja uma maior infiltração das águas e, conseqüentemente, uma maior intemperização química dos materiais rochosos. Esses materiais, assim alterados, tornam-se presa fácil para os processos erosivos subseqüentes.

Os quartzitos, rochas decorrentes da metamorfização do arenito, são, na maioria dos casos, mais resistentes ao intemperismo e à erosão do que diversas outras rochas. No caso de quartzitos mais homogêneos e fortemente cimentados pela cristalização da sílica, o relevo resultante é quase sempre representado por cristas elevadas e alongadas, segundo a orientação tectônica. Se esses quartzitos são friáveis, podem ocupar posição de vales ou regiões rebaixadas. E , no caso de se acharem dispostos de maneira horizontal, podem dar relevos tabulares. Os dois casos podem ser visualizados na Região Nordeste do Brasil.

Os diques de diabásio e de andesito, dependendo da qualidade das rochas encaixantes, possuem comportamentos geomorfológicos distintos. Se as rochas encaixantes são mais resistentes, os diques condicionam a formação de vales, em decorrência da remoção efetiva das rochas ígneas básicas. Se, por outro lado, as rochas encaixantes são menos resistentes e passíveis de desgaste rápido, os diques constituem elevações que se dispõem de forma grosseiramente paralela .

A superimposição de um rio sobre um núcleo de determinadas rochas, sem seguir alinhamentos tectônicos, é um indicador de movimento epirogenético ( soerguimento de massa continental).

Os fatores estruturais do relevo podem ser, de forma bastante sintética, agrupados em duas grandes categorias: fatores tectônicos e fatores litológicos.

Os fatores tectônicos correspondem às forças tectônicas, de caráter endógeno, que edificam o relevo mediante deformação da litomassa. Ocasionam intensos dobramentos, falhamentos, subsidências, basculamentos e exaltações. Para compreender esses fatores, faz-se necessário um conhecimento dos grandes traços da teoria da Tectônica de Placas, um dos mais importantes paradigmas da moderna Geologia.

Para a teoria da Tectônica de Placas, a litosfera encontras-se subdivida em fragmentos, que se movem entre si, denominados placas litosféricas. A zona de interação entre as placas litosféricas definem-se por convergência litosférica, divergência litosféricas e falhas de transformação.

As zonas de convergência são as áreas onde se dá a colisão de placas. Nestas áreas configuram-se morfoestruturas do tipo trincheira oceânica e/ou sistemas orogenéticos.

As zonas de divergência são aqueles limites onde se dá a separação de placas litosféricas. Exemplificam-na as morfoestruturas chamadas dorsais oceânicas, cujo exemplo mais próximo é a Dorsal do Atlântico.

As zonas de falha de transformação são os limites ao longo dos quais as placas "deslizam". No Oeste dos Estados Unidos, a falha de Santo André é um bom exemplo desse limite de placas litosféricas.

Os fatores litológicos resultam da maior ou menor resistência dos corpos rochosos aos processos erosivos, conforme foi anteriormente assinalado. Esses fatores podem determinar plataformas estruturais de relevo, como por exemplo o bordo de uma camada mais dura, destacada pela erosão diferencial. Na Figura 4, mostram-se esquemas ilustrativos de escarpas litológicas.

Os fenômenos tectônicos influenciam também, e de maneira significativa, os processos de sedimentação, que são importantes à análise morfoestrutural das paisagens geomorfológicas. Sobre esse assunto, há um interessante trabalho, escrito em 1974 por Benjamim Bley de Brito Neves, publicado no Boletim do Núcleo do Nordeste da Sociedade Brasileira de Geologia, n° 2. Encontram-se transcritos a seguir trechos desse artigo, seguidos de uma atividade prática, que poderá ser levada a efeito em sala de aula.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AB’SÁBER, A. N. Formas de Relevo. São Paulo: Edart, 1975

ANDRADE, G. O. DE Curso de iniciação ao estudo da Geografia em grau superior. Bol. Geogr., Rio de Janeiro, Ano XXIV, n° 185, IBGE, 1965.

BIROT, Pierre. Morphologie Structurale. França: Presses Universitaires de France, 1958.

CASTRO, Cláudio de . & JATOBÁ, Lucivânio. Litosfera. Minerais, Rochas, Relevo. Recife: Editora Universitária, 2004

DERRUAU, Max. Geomorfologia. Barcelona: Ariel, 1966.

HUBP, J.L. Las estructuras mayores del relieve. Mexico: UNAM, Facultad de Ingeneria, 1986.

KOSTENKO, N.P. Geomorfologia Estructural. México: UNAM, Facultad de Geografia, 1975.

THONRBURY, W.D. Princípios de Geomorfologia. Buenos Aires: ed. Kapelusz,1960


Para estabelecer contato com o autor, escrever para o seguinte endereço: 

luciobr2@yahoo.com.br

Lucivânio Jatobá

( Prof. Adjunto do Depto. De Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco,Brasil)

Recife, 2006


 
 
  Site Map