Por: Catherine Debelak, Letícia Dias e Marina Garcia

Publicado em 09 de novembro de 2015

Não se nasce mulher, morre-se

A cada hora e meia, uma mulher é assassinada por um homem no Brasil, apenas por ser mulher. Keila Pereira, Adenilde Guimarães, Lucilene Barbosa, Taciane dos Santos, Nathalia Silva: uma rápida busca em dois grandes portais de notícias nos traz cinco vítimas das últimas vinte e quatro horas (enquanto escrevemos esse texto) – e essas são apenas as que chegaram à grande mídia.

É a esse crime que dá-se o nome de feminicídio, tradução de femicide (femicídio) mais usada na América Latina. O termo passou a ser reconhecido principalmente em março desse ano, com a sanção da lei que o tornou uma qualificadora do homicídio, mas ainda é pouco discutido fora de círculos especializados, como os do Direito e da militância feminista, onde surgiu originalmente. Estima-se que, entre 2001 e 2011, tenham ocorrido mais de 50 mil homicídios motivados por misoginia: isso torna o Brasil o sétimo país que mais mata mulheres no mundo. Os números chocam e causam questionamento, e embora não haja uma origem única, podemos buscar respostas em nossa história: “Desde que fomos descobertos, tivemos a presença dos portugueses, que tentaram escravizar os índios e não conseguiram. Depois trouxeram os negros da África, que foram submetidos - as mulheres negras tinham que obedecer ou apanhar”, contextualiza a delegada Vilma Alves, de Teresina. “Segue-se os cafezais e seus senhores, sempre com o poder macho, o açúcar e os senhores de engenho, e a época dos grandes comerciantes, sempre o poder do homem ligado ao poder financeiro. Nessa época, o homem era dono da mulher ao casar, podia bater, surrar, até matar sem consequências. O machismo está arraigado na nossa cultura, onde o homem teve o poder durante toda nossa história”. A herança deste passado se reflete nos dados atuais da pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), que mostra que as mulheres negras representam 61% das vítimas de feminicídios no país. Stela Meneghel, pós-doutora em medicina de Porto Alegre com especialização em saúde pública e gênero e professora da UFRS, também relaciona essa violência, que tem como objetivo controlar as mulheres, com processos de colonização.

Além do contexto histórico do Brasil, Meneghel destaca as motivações da violência de gênero em si: “Não é por acaso que a violência contra a mulher existe. Não é por causa de distúrbios mentais dos homens ou de uma vontade incontrolável de sexo, por psicopatologias, ou mesmo, digamos, porque esses conflitos seriam comuns a relacionamentos” enfatiza. Segundo ela, a violência é uma maneira de se adestrar as mulheres para que elas se mantenham numa posição de inferioridade e de adestramento. Seria por isso que o ápice de um contínuo ou de uma escalada crescente de violência é a morte de algumas mulheres. “Os femicídios decorrem disso. Não acontecem por acaso e não são uma questão de relação interpessoal, mas uma questão política, uma questão social mais ampla”, completa.

Da caça às bruxas do passado ao crescente infanticídio de meninas em algumas sociedades e aos assassinatos de mulheres supostamente em defesa da honra, não há nada de novo no feminicídio. Na galeria abaixo, outros exemplos de diferentes situações do crime:

Dentro do próprio Brasil, é possível observar uma variação considerável dos números do crime: enquanto no Espírito Santo, em primeiro lugar no ranking pela pesquisa do Ipea, são assassinadas 11 mulheres a cada 100 mil, no Piauí o número cai para 5. Para investigar a realidade brasileira, nossa reportagem visitou pelo menos um estado em cada região, buscando singularidades regionais. Duas das cidades que visitamos foram as capitais dos estados nos extremos da lista, Vitória e Teresina, para tentar entender o que causa a disparidade entre elas. Na capital capixaba, a pergunta “por que vocês estão em primeiro lugar?” parece ser feita com frequência, mas segue sem resposta: “Todo mundo pergunta isso, mas nós não temos nenhum estudo de causa, nada que explique porque os números aqui são tão mais altos”, relata Bianca Barcelos Rodrigues, do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Espírito Santo. A violência, de forma geral, é alta no estado, que também está em segundo lugar em assassinatos de adolescentes entre 16 e 17 anos. Já na capital piauiense, as teorias sobre ocupar o último lugar da lista são diversas. Para a delegada Eugênia Villa, um dos fatores que contribuem é a subnotificação desses casos: “Desde março deste ano, nós começamos um banco de dados detalhado sobre feminicídio, que estamos preenchendo com todas as ocorrências do estado durante o ano. Em 2016, pode ter certeza que nós pularemos para o primeiro lugar da lista”. A socióloga recifense Ana Paula Portella, apesar de destacar que nunca estudou o Piauí em específico, especula com base em seu trabalho no interior de Pernambuco: “A violência contra a mulher ocorre quando ela desafia as ordens que estão impostas para ela. Em lugares conservadores, por elas não saberem ou não terem coragem de desafiar a sociedade ou os maridos, elas são violentadas e não reagem, então não são mortas”. Já para Dra. Vilma, o número seria resultado do trabalho histórico dos movimentos de mulheres piauienses: “O Piauí é o estado em que as políticas públicas tem maior atividade de ações integradas, que outros estados não tem. Por exemplo, assim que a lei Maria da Penha foi sancionada, os movimentos de mulheres se reuniram com a delegacia da mulher e com deputadas e exigiram a criação do Juizado Especial da Mulher, o que não foi feito em outros estados. Na década de 1980, fomos os primeiros a criar o Conselho Municipal de Defesa do Direito da Mulher, antes da Constituição. Nós fazemos um trabalho de conscientização”, defende.

Parte 1

Até que a morte nos separe

Um xingamento, um empurrão, um soco, uma facada. A violência doméstica conjugal tem uma relação muito íntima com o feminicídio.

Embora o feminicídio não aconteça somente como a expressão máxima de um ciclo de violência vivido pela mulher dentro de seu próprio lar, a relação entre eles é inegável: 43,4% dos assassinatos femininos cometidos em 2011 no Brasil tiveram autoria do parceiro ou ex-parceiro da vítima, segundo o Mapa da Violência publicado no ano de 2012 – pesquisa mais recente sobre o tema, que ainda é de difícil apuração em decorrência da subnotificação dos casos e da falta de um padrão nacional para o registro destes dados.

Aproximadamente uma em cada cinco brasileiras reconhece já ter sido vítima de violência doméstica ou familiar provocada por um homem, de acordo com o DataSenado. Isto, no entanto, não quer dizer que elas foram ou são violentadas fisicamente todos os dias. Este tipo de agressão costuma acontecer depois de uma série de investidas psicológicas contra sua integridade mental. "O homem diz coisas que colocam a autoestima dela lá para baixo, que fazem com que ela não se enxergue mais como gente, muito menos como detentora de direitos", diz Naiara Silva Oliveira, psicóloga do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) da Asa Sul, em Brasília.

Comentários machistas e humilhantes disfarçados de observações bem-humoradas e ciúme doentio com aparência de zelo e cuidado são armas frequentemente utilizadas por homens para violentar uma mulher, mas não são as únicas. Tirar dela o direito de ser, fazer ou ter algo também é uma grande violência. "Quando perdi meu avô eu estava grávida de sete meses e apresentava um quadro de depressão. Mesmo assim tinha de esperar o pai da minha filha sair de casa para que eu pudesse chorar em paz. Não foi fácil, eu não tive o direito de viver meu luto porque ele não deixava. Até isso ele tirou de mim", conta Stephanie*, 22 anos, que sofreu violência psicológica e física e uma tentativa de feminicídio depois de engravidar do ex-namorado e se mudar para a casa dele. "Hoje, já separados, ele continua com o terror psicológico: diz que sou louca, pois faço tratamento com antidepressivos e terapia, e alega que usará isso para tomar a guarda da minha filha. Me faz muito mal ficar perto dele", conta.

Outro aspecto comum a este tipo de violência emocional, que chega a representar 38% dos casos, é o agressor culpabilizar a parceira – seja por ter se colocado naquela situação de violência ou pelo fracasso do relacionamento, por exemplo. "Vivemos numa sociedade patriarcal em que a responsabilidade pelo sucesso do casamento é imposta à mulher desde que ela nasce, muito embora qualquer relacionamento precise do empenho de ambas as partes para ser bem-sucedido. Esta mentalidade é um dos fatores que corroboram para que a mulher não consiga sair de uma situação de violência dentro de sua própria casa", afirma Rosangela Penha Marques, técnica-administrativa e assistente social no Ceam de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. Stephanie* se sente responsável por ter se colocado numa situação de vulnerabilidade que a levou a ser vítima de uma tentativa de feminicídio.

Toda vez que eu penso no que ele fez comigo eu me sinto culpada por não ter visto quem ele era antes, por ter deixado minha casa para morar na dele e passar por tudo que eu passei

Assim como no caso da jovem que deixou a família para viver com o namorado, isolar esta mulher do convívio familiar e dos amigos é mais um artifício machista destinado a ferir o psicológico feminino. No momento em que ela sente necessidade de conversar com alguém próximo sobre as violências que vem sofrendo dentro do relacionamento, o parceiro já fez com que ela se isolasse, erguendo mais uma barreira a ser enfrentada e dificultando ainda mais o processo de denúncia.

Deixando o âmbito psicológico e passando para o físico, o processo de violência doméstica, geralmente, não acontece da noite para o dia, mas de forma progressiva. Durante uma discussão o homem segura o braço da companheira com mais força, em outro momento lhe da um empurrão... E são estas agressões que evoluem para um quadro de espancamento mais grave. Mais da metade das mulheres vítimas de violência doméstica já foram agredidas fisicamente.

O último passo do agressor, que fecha o ciclo da violência, é o suposto arrependimento. "Ele a agride fisicamente e ela, num momento de raiva, pensa em procurar por ajuda. Mas pouco tempo após espancá-la ele diz se arrepender e promete que aquilo não acontecerá novamente, assumindo o compromisso de mudar para não perdê-la. Daí, o casal faz as pazes e ele realmente passa um tempo sem agredi-la", conta Rosangela. Mas a promessa não dura muito e a violência psicológica começa novamente.

Tipos de Violência

Ainda segundo a assistente social, a intensidade das agressões aumenta de um ciclo para o outro. Neste contexto, o risco de um feminicídio cresce enquanto esta mulher não conseguir romper com a relação abusiva – mas ainda que ela seja capaz de buscar a separação, os riscos à sua vida só tendem a aumentar. “As mulheres ficam mais vulneráveis ao feminicídio íntimo, aquele que acontece nas relações conjugais, quando querem se separar e o companheiro não. O período de maior risco seria durante os meses que antecedem e sucedem a tentativa”, coloca a professora Stela Meneghel. As chances aumentam nesta situação pois o homem, que enxerga a mulher como sua posse, não aceita “perdê-la” – o que gera o clichê “se ela não é minha, não será de mais ninguém”. “A violência é uma maneira de adestrar as mulheres para que se mantenham em uma posição de inferioridade. Por isso, o ápice de um contínuo de agressões é a morte de algumas delas”, completa a professora.

Conseguimos identificar certa universalidade no perfil das vítimas de violência doméstica não letal cometida pelo companheiro: não importa se são pobres, ricas, negras, brancas, elas sofrem tal opressão exclusivamente pelo fato de serem mulheres. Quando a violência passa a ser letal, entretanto, essa universalidade deixa de ser real. "Se você for analisar o perfil das vítimas de feminicídio verá que elas são majoritariamente negras, pobres, jovens, de baixa escolaridade e vivem em áreas socialmente precárias. São justamente estes fatores, associados às condições socioeconômicas dessas mulheres, que concorrem para o agravamento da violência até que ela seja morta", revela a socióloga Ana Paula Portella, de Recife. "Se uma mulher de classe média e com maior escolaridade tem um parceiro que passa a abusar dela, ela perceberá rápido e terminará a relação antes que ele dê o primeiro murro. Agora, supondo que ela esteja em um momento de fragilidade e continue no relacionamento, quando percebe que existe um risco maior de morte ela tem um carro para fugir, um cartão de crédito para comprar uma passagem de avião, conhece um advogado, conhece um policial... Imediatamente ela aciona uma rede de apoio e de proteção que a tira daquela situação, o que a vítima mais comum de feminicídio não consegue fazer", conclui.

Formalizar uma denúncia, buscar por ajuda de familiares e amigos ou tentar a separação, no entanto, não são decisões imediatas nem fáceis de serem tomadas por qualquer mulher. "Elas sofrem vários episódios de violência até que consigam tomar coragem para romper o silêncio. Seja porque não dispõe de mecanismos emocionais, psicológicos ou financeiros para tal, ou porque é muito difícil para nós, mulheres, que crescemos com o ideal de casamento perfeito, do filho próximo aos pais, da família unida, deixar de lado todas essas representações sociais de um projeto de vida ideal e denunciar um homem que, na maioria das vezes, ela amou ou ainda ama, que é o pai dos seus filhos. Sem contar o medo, a vergonha de se expor e expor a privacidade da família, a falta de credibilidade na justiça, o desconhecimento de seus direitos e da compreensão dela, mulher, como sujeito de direitos", relata a promotora Dra. Silvia Chakian, secretária executiva e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (GEVID) do Ministério Público do Estado de São Paulo.

* O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua identidade.

A violência doméstica

Parte 2

Maria trouxe as outras

Da Penha é o sobrenome dela, que abriu portas para as outras tantas Marias.
A legislação, desde então, não pôde ficar inerte às políticas de gênero.

Recente: esta é a palavra que melhor define a legislação brasileira que pretende promover a igualdade entre gêneros no país. A primeira Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) – agora Ministério da Cidadania – foi criada somente em 2003; a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006; a Lei do Feminicídio, por sua vez, apenas em 2015. Apesar de as mulheres ainda estarem longe de ter os mesmos direitos que os homens na prática, as conquistas são bastante significantes para a luta feminista, a começar pela Lei Maria da Penha.

Considerada uma das três melhores leis do mundo sobre violência de gênero pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Lei 11.340 é baseada na história da cearense Maria da Penha Maia Fernandes. A farmacêutica sofreu duas tentativas de feminicídio por parte do marido e, na primeira delas, ficou paraplégica. Mesmo quinze anos após o primeiro julgamento dos crimes, a justiça brasileira não havia condenado o agressor. Foi só com a intervenção Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (OEA), em 2002, que ele foi preso e começaram a ser tomadas medidas judiciais visando a elaboração do Projeto de Lei.

A defensora pública e coordenadora auxiliar do Núcleo de Proteção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) do Estado de São Paulo, Ana Rita Souza Prata, acredita que a lei faz com que as mulheres em situação de violência doméstica reflitam sobre sua realidade, as encorajando a denunciar os ataques sofridos. Os números, no entanto, mostram que a prática não é tão otimista assim: quase 40% das mulheres que já sofreram algum tipo de agressão afirmam ter procurado alguma ajuda logo após a primeira vez, mas para as demais a tendência é dividir a história com alguém só do terceiro ataque em diante, ou então se manter calada – o que acontece em 32% e 21% dos casos, respectivamente. "Apesar de a lei ter dado visibilidade ao sofrimento de mulheres nesta situação, de ter rompido com a tradição histórica de tolerância à este tipo de violência e também com a ideia de que as agressões eram uma questão familiar sobre a qual a justiça não poderia intervir, ela ainda é passível de críticas", pontua a promotora de justiça Dra. Silvia Chakian.

Uma dessas críticas é que a Lei Maria da Penha contribui com a ideia de generalização da violência contra a mulher como exclusivamente doméstica. “A Lei Maria da Penha está muito aquém, deixa um déficit enorme”, afirma a delegada de polícia e ex-sub-secretária interina de Saúde Pública do Piauí Eugênia Villa. “Ela só estabelece relações interpessoais, quando o agressor é definido. A Convenção de Belém do Pará estabelece três níveis de violência [de gênero]: a doméstica e familiar, a que acontece na comunidade pelo fato de sermos mulheres e as que ocorrem em face da ineficácia do Estado. A Lei Maria da Penha só pega a primeira”. Stela também explica: “Você deixa de lado os espaços públicos, onde muitas mulheres são atacadas e mortas em função da violência sexual, por exemplo, e nesses casos são agressores desconhecidos". Ainda que esse não seja o propósito da lei, que foi criada especificamente para combater a violência doméstica e familiar, é urgente que pensemos na segurança física e psicológica da mulher nos espaços públicos, ainda dominados pelo machismo. Algumas iniciativas, tanto governamentais quanto coletivas, incitam o diálogo acerca do tema: em Curitiba, a Secretaria Extraordinária da Mulher investe em campanhas de conscientização que pensam na presença da mulher em diferentes espaços, como as ações "Não quer dizer não, respeite nossas mulheres" lançada em quatro idiomas durante a Copa do Mundo, e "Busão sem abuso" que, como nome já diz, pretende combater o assédio no transporte público. No segundo semestre deste ano, o Metrô de São Paulo iniciou uma campanha com objetivo parecido por pressão das usuárias, que tem como tema a frase "Você não está sozinha". Talvez a mais famosa dessas iniciativas é independente e encabeçada por mulheres: a campanha "Chega de fiu fiu" começou como uma pesquisa sobre assédio na rua e virou um mapa colaborativo e um documentário financiado coletivamente com lançamento ainda indefinido.

Outra questão frequentemente levantada sobre a lei é o perfil da mulher que lhe cedeu o nome: "A Lei Maria da Penha é Barbie, pois ela traça bem o esteriótipo da mulher europeia. A Maria da Penha é uma mulher de classe média, autônoma e branca, mas será que no Brasil todas nós somos assim?", questiona Dra. Eugênia. "Não. Nós temos índias, negras, mulheres rurais, do campo e da floresta que não preenchem este esteriótipo. Então mesmo dentro da lei você vai ter conflitos". A delegada não se considera derrotista por este pensamento, apenas acredita ser um discurso que constata a realidade e demonstra a necessidade de elaborar estudos que ampliem o alcance da interpretação da lei. Ana Paula explica: "Sem a Lei Maria da Penha, a lei de homicídio era aplicada indistintamente para homens e mulheres. Com a criação dela os casos começam a diminuir, mas passa-se a aplicá-la indistintamente para qualquer tipo de mulher, e aí você favorece quem? Aquelas que estão em melhor condição. Então, dentro da própria lei você precisa ter uma linha que observe melhor o grupo mais vulnerável, e as mulheres negras são também as mulheres mais pobres, com menos escolaridade e que moram nas áreas com pior infraestrutura".

Além das críticas à lei em si, é preciso pensar melhor na viabilidade de sua aplicação jurídica. Dentre os cinco tipos de violência reconhecidos legalmente (veja o box na Parte 1), uma delas é especialmente complexa de se provar no tribunal. "Colher provas de violência psicológica é complicado. É preciso o laudo de um psicólogo comprovando que as ações do agressor impactaram a saúde mental da vítima, mas, pelo ritmo do processo judicial, essa avaliação muitas vezes só é feita após a mulher ter passado mais de um ano fora daquela situação de violência, então as consequências possivelmente não estão tão pronunciadas", explica a advogada especialista em direitos humanos Alichelly Ventura, de Manaus. Essa dificuldade tem um motivo para acontecer, de acordo com a Dra. Eugênia. "A lei é feita para o homem. O Código Penal estabelece somente a violência física, porque somos tidas como uma coisa em que o mais importante é o nosso corpo", ressalta. Os profissionais que lidam com a lei buscam outras maneiras de levar o caso adiante. "A questão da violência psicológica ainda é bem vulnerável, porque quando a Lei Maria da Penha conceitua os tipos de violência, ela não está estabelecendo crimes. Então você tem que tentar adequar aquela situação que a mulher narra a um crime já estabelecido na nossa legislação, e nós não temos nenhuma lei que criminaliza violência psicológica. Tentamos enquadrar como perturbação da liberdade individual, injúria, ou algum outro tipo penal", revela Ana Cristina Santiago, delegada-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) do Distrito Federal.

A delegacia, localizada na Asa Sul de Brasília, foi considerada pela Altus, uma aliança global formada pro seis ONGs, a melhor delegacia da mulher do Brasil. Não é por acaso: "Primeiro, eu tenho policiais experientes que estão aqui há muito tempo, principalmente no atendimento. Quando recebo policiais novos, tenho uma preocupação que vai além de falar sobre a lei, porque eles entendem sobre ela. Mais do que capacitação, acredito em sensibilização para que ele entenda como se desenrola essa violência, qual o seu papel como agente público e consiga se desvestir de seus valores pessoais. É essencial que eles compreendam que uma mulher, até chegar aqui no balcão da delegacia, rompeu diversos obstáculos internos – morais, religiosos, culturais, familiares – e ela não precisa sofrer qualquer tipo de revitimização aqui dentro", relata Ana Cristina.

Apesar de esses cuidados serem exceções, não regras, nas DEAMs do Brasil, as equipes são minimamente preparadas para lidar com a violência de gênero e têm uma compreensão do que ela significa politicamente – qualidades essenciais também para a investigação de um caso de feminicídio. Porém, infelizmente, isso não cabe à elas. Ao ligarmos para a delegacia da mulher de Vitória, informamos o tema da reportagem e logo fomos interrompidas: "Aqui é só mulher viva", nos informaram. "Vocês precisam ligar na delegacia de homicídio". Em Vitória, especialmente, há uma delegacia dedicada apenas aos homicídios de mulheres, criada em 2010 após uma pesquisa do Instituto Sangari colocar a capital capixaba como o primeiro lugar na ocorrência de tais crimes no país. "Dentre as nossas atribuições, além apurar o crime em si, a intenção é que se produzam dados a serem usados em pesquisas", conta o delegado titular Adroaldo Lopes Rodrigues.

Apenas criar uma delegacia especializada, entretanto, não é o bastante, visto a importância da sensibilização de seus funcionários. A Delegacia Especializada de Homicídio Contra a Mulher de Vitória (ES), como é chamada, divide suas ocorrências em três categorias: passionais, ligados ao tráfico de drogas e "outros", segundo Adroaldo. Além do uso da palavra "passional", terminologia antiquada e criticada por evocar a ideia do crime ter sido cometido por amor ou irracionalmente, por forte emoção, os crimes desta categoria são os únicos considerados como feminicídio – trata-se de um modo de pensar ainda comum, que observamos inclusive em várias DEAMs, de só compreender a violência como sendo de gênero quando o agressor é definido. É simplista considerar que todo homicídio feminino ligado ao tráfico, por exemplo, está livre de qualquer opressão de gênero, quando muitas vezes mulheres são assassinadas por serem mães, filhas, esposas ou companheiras de um traficante do qual outro homem quer se vingar – elas geralmente, por sua condição de mulher, não andam armadas e tem menos mobilidade que eles, tornando-se alvos mais fáceis. "Elas se tornam território de vingança neste tipo de situação", afirma Ana Paula.

Foi por entender que é preciso investigar os feminicídios como crime de natureza própria, com características que diferem do homicídio qualificado, que a Secretaria de Segurança Pública do Piauí criou, no dia 4 de março deste ano, o primeiro Núcleo Investigativo Policial de Feminicídio do país, sob a coordenação da delegada Tânia Oliveira. A primeira atuação do Núcleo foi no Dia Internacional da Mulher, em Picos, no interior do estado. Embora o caso não tenha sido contemplado pela lei, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff no dia seguinte, já foi investigado pela delegada Tânia e sua equipe. "Nos interessa demonstrar ao poder judiciário e ao Ministério Público essa vertente do gênero, das relações de poder, de que estão assassinando mulheres pelo simples fato de serem mulheres", explica dra. Eugenia, que na época da criação do Núcleo ocupava o cargo de subsecretária interina de Segurança Pública. Depois disso, foi baixada também uma portaria determinando a notificação compulsória de qualquer assassinato de mulher no Piauí ao Núcleo Investigativo, que, por sua vez, está fazendo um trabalho de coleta de dados, traçando perfis de vítimas e assassinos, além das características de cada crime. A Secretaria espera que esse material ajude a entender melhor como os feminicídios acontecem e, a partir disso, pensar em novas políticas públicas para combatê-lo. O Piauí, hoje, é o estado que registra menos mortes de mulheres por 100 mil habitantes, mas com essa captação de dados, espera-se que sua posição mude.

Mesmo sendo pioneiro na criação Núcleo Investigativo Policial de Feminicídio, o estado apresenta a mesma dificuldade vista em outros lugares em despir de ideologias patriarcais os funcionários públicos que lidam com casos de violência contra a mulher. Em maio de 2015, quando quatro adolescentes foram agredidas, violentadas e jogadas de um penhasco de 10 metros de altura em Castelo do Piauí, crime que teve repercussão internacional, Dra. Eugênia Villa pediu que apenas mulheres ficassem encarregadas de fazer a oitiva das vítimas e também que apenas médicas legistas executassem os exames de corpo delito, mas as investigações ficaram por conta de delegados homens. "Três dias depois eu reuni todos os delegados na delegacia geral para compreender como estava sendo a dinâmica da investigação. Alguns achavam que era homicídio torpe, fútil", relata. "Na ocasião eu tive de ter um discurso mais incisivo, pois não adianta colocar uma lei e achar que ela vai resolver a questão de desvelar o feminicídio".

Conheça alguns projetos públicos que buscam atender às demandas das mulheres vítimas de violência

Acolher

Acolher

Toda mulher que registra uma denúncia de violência doméstica em uma das delegacias da região oeste ou central da cidade de São Paulo é convidada a participar do projeto Acolher. Criado pelo GEVID do Ministério Público de São Paulo a partir da reivindicação delas mesmas, os encontros mensais têm por objetivo orientá-las jurídica, psico e socialmente logo no início do inquérito policial, antes da audiência.

Imagem: Divulgação

Mulher, vire a página

Mulher, vire a página

É uma cartilha voltada à orientação, conscientização e empoderamento da mulher adulta vítima de violência doméstica desenvolvida pelo GEVID do Ministério Público de São Paulo. A versão voltada para as imigrantes que se encontram na mesma situação, a Mujer, da vuelta la página, não foi somente traduzida para o espanhol, mas construída por elas sobre o aspecto da imagem feminina e da cultura machista que elas vivenciam.

Imagem: Divulgação

Casa da Mulher Brasileira

Casa da Mulher Brasileira

Parte da iniciativa Mulher: viver sem violência, a Casa pretende trazer para os 26 estados signatários um espaço que reúne todos os instrumentos públicos de atendimento à mulher: desde o apoio psicossocial, delegacia, Ministério Público, Defensoria Pública, até promoção de autonomia econômica. A crítica ressalta a generalização dos problemas enfrentados: cada estado tem suas peculiaridades, que não são respeitadas quando se cria um modelo genérico como este.

Imagem: Divulgacão/SPM

Mulher: viver sem violência

Mulher: viver sem violência

Com o objetivo de integrar e ampliar os serviços públicos já existentes voltados para o atendimento de mulheres em situação de violência, o Programa de Governo foi lançado pela presidenta Dilma Rousseff em março de 2013 e prevê a implementação da Casa da Mulher Brasileira, a humanização do atendimento às vítimas de violência sexual, disponibilização de unidades móveis para atendimento a mulheres no campo e na floresta, entre outros.

Imagem: Divulgação

Guardiã Maria da Penha

Guardiã Maria da Penha

Com o objetivo de fiscalizar se as medida protetivas estão sendo cumpridas, o projeto organiza visitas inesperadas às casas das mulheres contempladas pela Lei Maria da Penha. Também conhecida como Patrulha Maria da Penha, já é realizada em estados como Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo em parceria com órgãos de seguraça pública.

Imagem: Ulisses/SMSU

Educar em direito das mulheres

Educar em direito das mulheres

Encabeçado pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (NEVID) do Espírito Santo, o projeto é desenvolvido em parceria com as prefeituras, que mobilizam as mulheres que frequentam os CRAS, CREAS, escolas e unidades de saúde para que participem de debates sobre violência de gênero, leis, rede de serviços e também conheçam um pouco do processo histórico de conquista dos direitos das mulheres.

Imagem: Divulgação

Por ser muito recente, é difícil dizer se a Lei do Feminicídio vai "pegar", como aconteceu com a Lei Maria da Penha. O que se pode observar é que ainda há uma dificuldade da apropriação do termo e, pelo ritmo da justiça brasileira, poucos casos foram julgados sob o vigor da nova legislação – o que talvez contribua para esta situação.

De cunho punitivo, ela altera o Código Penal para prever o feminicídio como um tipo de homicídio qualificado e incluí-lo no rol de crimes hediondos. O período de reclusão passa a ser de 12 a 30 anos para o assassino, enquanto um homicídio simples pode ter penas de 6 a 20 anos. "No entanto, os crimes de homicídio em âmbito de violência doméstica, muitas vezes já eram julgados como hediondos, tendo penas muito parecidas com o que a lei estabeleceu agora", revela a defensora pública Ana Rita. "E, mesmo assim, eles não deixaram de existir". A opinião dela é compartilhada pelo delegado Adroaldo, que diz não ter visto muita mudança prática, pois nos casos "passionais", como ele se refere, buscava-se adicionar uma qualificadora ao homicídio, seja como fútil ou torpe. "A lei é uma grande conquista do movimento feminista pois estamos afirmando que não somos fúteis e nem torpes, nós estamos sendo mortas por sermos mulheres.", contrapõe Dra. Eugênia. “ É uma questão de tempo até mudarmos o caput do artigo de homicídio para assassinato. Pode parecer bobo, mas é muito importante”.

Para o promotor de justiça do III Tribunal do Júri da Capital do Ministério Público do Estado de São Paulo, Dr. Ivandil Dantas, que lida com casos de crimes praticados contra a vida na Zona Sul da capital há mais de vinte anos, o dia a dia no júri costumava ser bem diferente antes da sanção da lei – principalmente em cidades interioranas. "A lei diz que o homicídio simples, aquele que não é qualificado, pode ter uma redução de pena e se transformar em homicídio privilegiado quando a vítima, de algum modo, contribui para sua morte. Antes da Lei do Feminicídio era possível encontrar profissionais conservadores e machistas que entendiam que o assassino cometeu o crime porque a mulher o provocou, fazendo com que ele perdesse a cabeça e agisse dessa maneira. A partir deste viés surge o conhecido termo "homicídio passional", transferindo à vítima a responsabilidade de sua própria morte. Ou seja, ao invés do sujeito ter sua pena agravada, ela era diminuída e justificada pelo comportamento negativo da vítima. A Lei do Feminicídio diz que pouco importa o julgamento pessoal do promotor, se houve o assassinato de uma mulher dentro de uma relação doméstica por conta de sua condição feminina, isso já qualifica o homicídio. Neste sentido, ela veio agravar a pena para tentar impedir este tipo de subterfúgio, onde culpabiliza-se a vítima para justificar o crime", relata.

Aprovada às pressas para ter sua sanção anunciada no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a Lei do Feminicídio sofreu diversas concessões que resultaram em alterações no texto original, deixando-a extremamente ligada à violência doméstica. Perante a legislação brasileira, um feminicídio é um homicídio "contra a mulher por razões da condição de sexo feminino", quando o crime envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou descriminação à condição da mulher. A proposta, ainda, é descrita como uma continuação a Lei Maria da Penha na luta pela igualdade de gênero. "A Lei Maria da Penha foi ponto de partida e não de chegada na questão do enfrentamento à violência doméstica. Por isso, a Lei do Feminicídio vem como um aprimoramento legislativo necessário", opina a promotora Dra. Silvia. Os demais casos de feminicídio podem ter dificuldade em ser contemplados pela nova lei, que traz uma grande ambiguidade de interpretação quando especifica em seu primeiro artigo apenas aqueles derivados de relações conjugais ou familiares. "As fragilidades das leis, no entanto, não reduzem em nada a importância que elas tem", conclui a socióloga Ana Paula.

Parte 3

Outras Marias

Não se é assassinada apenas pelo companheiro. Um estranho também a mata apenas pelo fato de ela ser mulher.

Sob os holofotes está o feminicídio como o fim trágico de um ciclo de violência doméstica. Na penumbra, o estupro seguido de morte, o assassinato por lesbofobia, o gatilho puxado "em nome da honra". Tradicionalmente, a violência contra a mulher é reduzida ao âmbito doméstico e familiar. Ela é objeto de muitas pesquisas e estudos que culminam em leis e políticas públicas de contensão, talvez porque seja mais fácil diagnosticá-la, já que o agressor é conhecido. Por outro lado, qualquer ocorrência no espaço público perpetrada por um agressor desconhecido é vista como mero infortúnio da violência urbana. "Você continua vendo o problema como fruto de relações interpessoais, e não advindo de uma relação maior cujo fundo é político e tem a ver com o patriarcado", explica Stela Meneghel. "Desta forma você subestima as cifras, como se elas fossem muito menores do que de fato são".

Um dos possíveis motivos para este tipo de postura é o fato de ser muito mais fácil procurar maneiras de culpabilizar a vítima quando ela não está submetida a um quadro de violência contínua que a atinge dentro de seu lar. Questiona-se qual roupa ela estava vestindo, se ela estava acompanhada, se estava bêbada ou drogada, por onde ela andava. Tudo isso porque o espaço público não é considerado o lugar da mulher na sociedade. "Quando eu assumi, um jornalista escreveu que não adiantava ter uma mulher governadora se o chão não estivesse bem limpo. Com isso, ele quis dizer que o espaço da mulher é o espaço doméstico", confirma Margareth Coelho, vice-governadora do Piauí, que em julho deste ano foi empossada governadora em exercício em virtude de uma viagem do governador. A violência é tida como mais grave se ela acontece em casa porque este sim seria seu lugar de pertencimento.

O que este tipo de visão ignora são as relações de poder presentes em qualquer interação entre homens e mulheres, sejam elas íntimas ou não. No caso da tentativa de feminicídio das quatro meninas de Castelo do Piauí fica claro. O discurso de um dos agressores foi baseado no fato delas não estarem acompanhadas por nenhum homem. "Ou seja, se não estão com nenhum homem, elas estão vulneráveis", critica a delegada Eugênia Villa. "Mulheres não morrem todas na mesmas situação. Em Pernambuco, apenas metade delas são mortas dentro de uma relação conjugal, a outra metade morre em diferentes circunstâncias – o que, ainda assim, não quer dizer que o gênero não influencie", aponta Ana Paula.

Em 2003, Liana Friedenbach e seu namorado, Felipe Caffé, foram sequestrados enquanto acampavam na zona rural de Embu Guaçu (SP). O jovem, de então 19 anos, foi assassinado no segundo dia de cárcere com um tiro. A menina, de 16, ficou sob o domínio dos bandidos por cinco dias e foi estuprada por eles durante todo o período. Ao término do quinto dia, um deles a esfaqueou até matá-la. A diferença entre o tratamento dispensado à Liana e Felipe é muito clara: ele não foi torturado, violentado, nem tratado como posse. O feminicídio tem nuances que o diferem do homicídio e estão diretamente conectadas às relações de poder mencionadas. Isso se reflete, ainda, na arma usada no crime. Embora as armas de fogo continuem sendo o principal instrumento de assassinatos femininos – representando 49,2% deles –, o número fica pequeno quando comparados aos casos masculinos (72,4%). O interessante é observar que os outros tipos de armas utilizadas nos crimes, como objetos cortantes (facas, navalhas, giletes), perfurantes (pregos, garfos, chaves de fenda) ou contundentes (socos, bastões de madeira, pedaços de pedras), estrangulamento e sufocação somam 40% dos assassinatos de mulheres, contra apenas 20,4% dos masculinos, de acordo com o Mapa da Violência de 2012. "Geralmente a mulher é morta de forma violentíssima depois de muito agredida na face e na região da mama. Se ela não morrer, aquela agressão deixará uma cicatriz proposital para que não consiga se esquecer daquela agressão", coloca Margareth.

É notável, além disso, que em áreas onde a violência contra o homem é mais elevada, como zonas de conflito, a contra a mulher também é. Nas favelas, por exemplo, quando uma mulher é assassinada por ligação com o tráfico de drogas, ela não é necessariamente traficante – muitas vezes a vítima é morta por ser considerada propriedade de um. Em outro cenário, quando uma usuária de drogas é assassinada por sua dívida, na maioria dos casos é após ela ter sido prostituída para pagá-la e seu corpo ter deixado de ser desejável para este homem à quem ela devia. Em situações de guerra, elas ficam ainda mais vulneráveis: "Nos locais em conflitos armados, as mulheres são as mais atingidas, então os níveis de feminicídio são muito elevados. Elas são estupradas e muitas são mortas em seguida", coloca Stela. Mais uma situação que merece atenção, principalmente com a atual crise de refugiados no mundo, são os locais de alto fluxo migratório. "É onde elas estão desamparadas, sozinhas, sem rede de apoio, e ficam a mercê de atravessadores e coiotes", explica a professora gaúcha. Neste contexto, o tráfico de mulheres as coloca na mesma situação de vulnerabilidade, com o agravante que, assim como na prostituição, essas mulheres são facilmente descartadas pelos mafiosos que as exploram quando reclamam, tentam fugir, adoecem, ou seja, não servem mais a eles.

Um exemplo infame é a Ciudad Juárez, no México, que faz fronteira com os Estados Unidos e é considerada pelo Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública a mais violenta do mundo. A cidade recebeu atenção internacional pelo número de feminicídios violentos que registra desde 1993 e pela inércia do governo na prevenção da violência contra meninas e mulheres e na punição de seus agressores. Tanto que essa realidade já foi retratada em documentários, filmes, séries de televisão, músicas e livros.

A Ciudad Juárez pode ser considerada uma amostra concentrada de como estes conceitos se manifestam: localizada numa das fronteiras mais conflituosas do mundo, controlada pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas.

Já nos casos de feminicídios perpetrados por lesbofobia, ou seja, a patir da rejeição às lésbicas, as nuances do gênero não são tão turvas. "As raízes mais profundas deste medo estão no receio de [o homem] perder o domínio e a posse das mulheres e seus corpos", afirma Tania Navarro Swain, autora do livro O que é lesbianismo, professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB) e fundadora do primeiro curso de pós graduação em Estudos Feministas do país. "As mulheres são definidas, convencidas e assujeitadas ao esquema esposa/mãe, considerado seu papel 'natural'. O 'natural' passa a ser a lei que exige delas sua subserviência aos homens, já que a instituição do feminino e do masculino é feita de forma hierárquica, com predominância deste último. Os homens, portanto, dominam, controlam, decidem, utilizam, compram, vendem, dispõem das mulheres a seu bel prazer. Ora, o lesbianismo escapa a este esquema", completa. Justamente por desafiar sua masculinidade, o homem acredita no estupro corretivo como uma maneira de quebrar qualquer tipo de resistência a seu domínio. "Não é preciso muito mais para que as lesbianas sejam objeto de feminicídio", conclui Tania.

Parte 4

Eu caí da escada

Mais do que um hematoma no rosto, muito além de uma dor nas costas, a mulher é um ser complexo
que exige um olhar acolhedor dos profissionais da saúde.

Raimunda Sousa Leite, 59 anos, trabalhadora rural, sindicalista, pobre e negra, foi estuprada na mata em Valença do Piauí, interior do estado. Conseguiu caminhar até a estrada, onde foi socorrida por um transeunte e levada para o Hospital de Urgência na capital, onde o Núcleo Investigativo de Feminicídios e o IML já estavam a sua espera. Foi ouvida de pronto pela polícia, fez o exame de corpo delito e conseguiu reconhecer seu agressor antes de falecer. “Essas coisas tem que ser imediatas. Nós não podemos esperar”, alerta a delegada Eugênia Villa. Apesar da urgência exigida no atendimento à mulheres nesta situação, em muitos dos casos a morte ainda chega mais rápido.

Estima-se que mais de um terço das mulheres do mundo seja ou tenha sido vítima de agressões sexuais ou físicas durante sua vida. Inevitavelmente, isso acarreta consequências sérias para a saúde delas, que podem se manifestar de imediato ou a longo prazo. Danos e ferimentos físicos, contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, pelo HIV, gravidez indesejada, problemas de saúde mental como depressão, stress, distúrbios alimentares, abuso de álcool e drogas, dores crônicas, dificuldade de locomoção, fibromialgia, problemas gastrointestinais e, claro, a morte – incluindo o suicídio, a mortalidade materna resultante de abortos inseguros ou de violência obstétrica e o feminicídio. “Mulheres que vivem em situação de violência durante um longo período de tempo desenvolvem vários problemas de saúde decorrentes das agressões”, confirma a socióloga Ana Paula Portella. É por isso que, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência contra as mulheres é um problema de saúde pública global e de proporções epidêmicas.

A principal preocupação, então, é pensar na capacitação e preparação de médicos e suas equipes para reconhecer, acolher e instruir as vítimas. “Infelizmente, no curso de formação dos profissionais, seja da saúde ou de qualquer outra área, essa temática sempre foi tida como algo menor. As pessoas tratam a mulher sem levar em consideração a sua integralidade. Um profissional da saúde, por exemplo, vai examinar o útero, a mama, e não um sujeito histórico, um sujeito que tem demandas”, explica Olgamir Amancia, professora da UnB e primeira Secretária da Mulher do Distrito Federal. “Embora a OMS considere a violência contra a mulher um problema de saúde pública desde os anos 1990, muitos profissionais da área não a tem como tal, isso eu observei na minha pesquisa aqui em Porto Alegre”, relata Stela Meneghel. Para ela, um especialista sensibilizado com o problema pode detectar, intervir e até prevenir um feminicídio. “Uma mulher leva o filho para uma consulta, a médica percebe hematomas no pescoço dela e pergunta o que houve. A mulher acaba contando que sofre violência e a médica entra em contato com uma casa de passagem, que infelizmente são pouquíssimas nesse país, consegue uma vaga para a mulher e a instrui a voltar com o filho e os documentos no dia seguinte, sem dizer nada ao companheiro, para que seja transferida para a casa”, exemplifica. Mas não é tão simples. “Nós nos deparamos com situações onde, na saúde, os profissionais olham a mulher e, ainda que possam identificar que aquele sofrimento traduzido, não o fazem, pois nosso sistema de saúde não está preparado para a escuta. A mulher tem muita dificuldade de chegar e se abrir se o profissional não lhe der este espaço para falar e, quando elas falam, eles não sabem como agir”, pontua Olgamir.

“O feminicídio, sem dúvida, é um problema de saúde pública, mas ele é o desfecho de uma situação anterior que impacta mais o sistema de saúde, que é a violência contra as mulheres”, explica Ana Paula. Da mesma forma que Stela, ela acredita que o papel da saúde se concentra na detecção de situações de violência a fim de evitar um possível feminicídio. E isso, além da sensibilidade de perceber uma vítima, também está no atendimento de mulheres que chegam espancadas ou violentadas sexualmente aos postos de atendimento, como Dona Raimunda. “Estupro, por exemplo, é uma situação em que você tem que atender a essa mulher em todos os sentidos. Tanto do ponto de vista de saúde mental, pelo trauma que ela sofreu, quanto do conjunto de medidas que temos que tomar no mais curto prazo, como tratamentos para prevenir a contração de DSTs e gravidez indesejada” conta Carmen Regina Ribeiro, chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba. “Aqui, desde 2001 temos três hospitais que oferecem esse serviço. O IML se desloca até eles, tanto para não perder provas periciais quanto para poupar a mulher de ter que repetir sua história ou passar pelo exame ginecológico várias vezes”, completa.

Carmen também destaca outra dificuldade dos profissionais da área: “O aborto legal em caso de estupro é uma conquista que vai e volta. Muitos profissionais têm medo, exigem o boletim de ocorrência ou a ordem judicial. Todo tempo temos de estar indo atrás e monitorando. Muda o chefe de serviço, começamos tudo de novo. É um trabalho constante e é o principal que podemos fazer”, afirma. Infelizmente, a conquista deste direito parece perdida novamente: a Comissão de Cidadania e Justiça da Câmara Nacional aprovou o texto do Projeto de Lei nº 5.069, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que prevê impor ainda mais obstáculos às vítimas de violência sexual. De acordo com a proposta, o oferecimento de pílula do dia seguinte para mulheres vítimas de estupro será prerrogativa retirada da norma vigente, assim como sairá da lei a obrigação de fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais que possuem e sobre todos os serviços sanitários disponíveis. O movimento feminista se manifestou contra a aprovação através da campanha “Pílula fica, Cunha sai!”, à qual várias organizações de mulheres aderiram.

Parte 5

Cidades para Mulheres

Os elementos urbanos também fazem parte dos fatores que precisam ser pensados a partir de uma perspectiva de gênero.

Foto: Marina Garcia

Existem outros fatores além do fato de ser mulher que agravam a violência até o ponto de ela se tornar letal, e eles estão ligados às condições socioeconômicas e de moradia dessas mulheres. O território onde elas vivem e o espaço público que ocupam estão associados à violência que sofrem, mesmo nos casos domésticos. É garantido pela Constituição nosso direito de ir e vir, mas o medo muitas vezes impede que mulheres façam algum trajeto ou frequentem certo espaço. Há um conjunto de características urbanas que facilitam sua proteção, que seriam levadas em conta se o espaço urbano fosse pensado também a partir do gênero. Bairros onde você tem muita circulação, em que as ruas são largas e é possível passar uma ambulância ou um carro da polícia se necessário, onde há facilidade de acessar a internet e os telefones funcionam e onde existem pontos de ônibus são mais seguros, porque as mulheres vivem num ambiente onde elas podem pedir socorro.“Se eu sofrer ameaça de agressão do meu namorado dentro de casa, primeiro eu posso interfonar para o porteiro, porque eu moro num prédio e existe um porteiro a quem eu posso pedir ajuda. Se ele não me atender, posso sair de casa e bater na porta da vizinha. Se ela não estiver em casa, eu posso descer e ir de apartamento em apartamento, porque são vários. Se ninguém me atender, posso ir pra calçada e gritar, porque moro num bairro movimentado. O quartel da polícia militar fica a duas quadras da minha casa, então num perigo eu posso ir correndo até lá, e moro ao lado de um hospital. Então tem um conjunto de elementos urbanos que protegem a mulher”, exemplifica Ana Paula. “Medidas de urbanização são necessárias em áreas precárias onde a mulher está mais vulnerável”, afirma.

É preciso identificar como as estruturas urbanas favorecem e dificultam a proteção das mulheres, e entender que elas não se dividem necessariamente entre bairros ricos e pobres. “Eu dei o exemplo das Graças, onde moro, que é um bairro com características de urbanidade que metade do Recife já perdeu”, diz Ana Paula, “mas um bairro como Setúbal ou como o Espinheiro oferece muito menos proteção geral e pras mulheres do que as Graças, porque as ruas são aqueles corredores de muralhas dos prédios, não tem gente na rua, não tem ponto de ônibus, é muito escuro, e eles são bairros ricos”. O planejamento precisa ir além, criar uma concepção de cidade que favoreça o encontro e permanência das pessoas na rua, que misture comércio e residência, diferentes formas de locomoção como carro, ônibus, bicicleta. “Essas são medidas que diminuem os riscos de violência, tanto de assalto quanto de assassinato e violência doméstica. O isolamento em casa ou dentro do carro, isso é o que produz risco”, completa.

Antes de assumir o cargo de chefe de gabinete da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba, Carmen Regina Ribeiro trabalhou por 25 anos no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba: “Lá nós discutíamos muito essa questão da relação entre a violência e os espaços urbanos favoráveis a ela. Quanto mais escuro é, quanto mais precária a infraestutura urbana, mais fácil a proliferação da criminalidade. Se você urbaniza a área, asfalta a rua, faz calçada, passa linhas de ônibus, inibe um certo tipo de violência”, explica. “Claro que o centro de Curitiba tem todas essas características, mas é o lugar onde mais se bate carteira, porque é um tipo de crime específico. Mas não é um beco escuro, onde a mulher tem mais chances de ser estuprada”. Para Carmen, precisamos pensar a saúde e a segurança pública e o urbanismo, entre outros fatores, de forma global, e não de forma setorizada, como se costuma trabalhá-las. A setorização faz que com se cometam erros que poderiam ser evitados se todas as variáveis e particularidades fossem consideradas. “Aqui em Curitiba, foi instalada uma trincheira para facilitar a locomoção de um lado a outro de uma comunidade. A escola ficava de um dos lados e as adolescentes que trabalhavam durante o dia e estudavam no período da noite precisavam atravessá-la. Aquele acabou virando um local diagnosticado como propício para o estupro. Os pais relatavam que iam toda noite até a boca da trincheira para esperar suas filhas e levá-las para casa. Então, às que não tinham pai ou mãe para acompanhá-las restava ou deixavar de estudar ou se arriscar todas as noites”, conta Carmen. “Muitas vezes uma medida que traz uma solução de logística causa uma situação dessas. Quando você pensa em planejamento urbano, você tem que pensar todas essas coisas ao mesmo tempo”.

O pensamento do espaço urbano a partir da perspectiva de gênero é considerado por muitas organizações e estudiosas um dos principais passos para prevenir a violência contra as mulheres a longo prazo, aliado a medidas como aumento do acesso delas à renda, maior escolaridade e acesso à informação. Para isso, iniciativas como Cidades Seguras para as Mulheres, coordenada pela Action Aid, lutam internacionalmente por serviços públicos de melhor qualidade, como transporte, iluminação de vias públicas, educação, policiamento e moradia.

Parte 6

Feminicídio em pauta

No maior estilo “espreme que sai sangue”, o sensacionalismo parece ser parte integrante das coberturas jornalísticas de feminicídios.

"A Sônia Abrão ligava na minha casa quase todo dia", desabafa Suzane Jardim, jovem de 24 anos que, em 2013, foi jogada do quarto andar depois de discutir com o homem com quem tinha ficado poucas vezes. Ainda na UTI sem nenhuma garantia de sobrevivência, ela e sua família foram assediados pela imprensa, que os procurou afirmando a intenção de ajudar. Dormindo sob o efeito de sedativos 20 horas por dia, Suzane recebeu um homem que acompanhava seu pai durante o horário de visitas, em que era medicada com altas doses de morfina para aguentar o período acordada. Ela não sabia que conversava, na verdade, com um jornalista e, muito menos, que ele a gravava. No dia seguinte, sua história estava em todos os lugares: Cidade Alerta, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, G1. "A primeira matéria com que eu tive contato foi a do Estadão. O repórter foi falar com o meu pai, fez todo aquele discurso de ‘quero te ajudar’. Meu pai conversou com ele, abriu a casa e, quando saiu a matéria, a manchete era 'Ativista feminista cai do quarto andar e diz que foi vítima de machismo'. Eu fiquei em choque e me senti idiota, ridícula", desabafa. "Não tive coragem de contar ao meu pai até hoje, porque ele vinha todo dia no hospital e me falava: 'Tem um repórter, ele está ajudando o papai, vai dar tudo certo, ele vai por foto do rapaz no jornal'. Nunca teve foto do rapaz no jornal. Eles riram da cara do meu pai e ele até hoje não sabe."

parte 5

Não se pode negar que a mídia tem a capacidade de pressionar as investigações. Depois da repercussão de seu caso, Suzane, por exemplo, foi ouvida pelo delegado ainda no hospital. Mas até que ponto expor a vítima e sua família vale à pena? Qual é o limite ético da reportagem? "É inevitável dizer que se tu for lá falar com a família e mostrar a mãe da menina chorando, o filho da mulher desesperado, o pessoal vai ver. Mas eu não acho que isso vale à pena. Que contribuição a gente vai trazer para a segurança pública se formos mostrar a família dela? A gente vai comover? Vai, mas a troco que dê? A troco da desgraça alheia e isso está cheio, infelizmente", problematiza Dante Graça, editor-executivo do portal D24AM do Diário do Amazonas, baseado em Manaus. "Eu acho que é muito mais importante, útil e vai colaborar muito mais se, ao invés de dissecarmos toda a história da tragédia daquela família, formos em cima das investigações para acompanhá-las com essa dedicação que muita gente tem para chupar a lágrima até a última gota da família que está desesperada", conclui. Por outro lado, há jornalistas que defendam o uso de depoimentos de parentes e fotos para enriquecer as reportagens. "A gente busca fazer uma matéria com a família da vítima, mostrando como era a vida dela, quais eram os planos para o futuro, se ela já tinha sofrido ameaças, para humanizar um pouco. Por isso, eu oriento os repórteres a pedirem fotos", relata Camila Henriques, editora do G1 Amazonas. "A polícia acaba se interessando mais pelo caso na hora de investigar". De maneira geral, os jornalistas se aproveitam da falta de informação que as pessoas têm sobre o funcionamento da mídia para explorar a imagem delas, intimidando-as a participar da reportagem mesmo que contra sua vontade – principalmente daquelas com baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo, cujo perfil corresponde ao da maior parte das mulheres mortas por feminicídio. "Claro que tem alguns casos em que os familiares estão mais abertos e querem participar, então eu acho que aí já muda um pouco de figura", contrapõe Dante.

É o caso de Ari Friedenbach, pai de Liana Friedenbach e vereador da cidade de São Paulo. Quando um menor de idade assassinou sua filha de 16 anos, ele se manteve aberto para dialogar com a imprensa e não se incomodou com o assédio. "Eu sempre faço questão de ressaltar que os jornalistas foram extremamente respeitosos comigo, desde o mais sensacionalista ao mais elitizado, ajudando muito na época das buscas. Do dia 30 de outubro até o dia 10 de novembro [de 2003], quando foi encontrado o corpo, a participação da imprensa foi intensíssima. Mas que ela estava preocupada em vender notícia, isso é óbvio, tanto que a Liana apareceu durante 10 dias, 24 horas por dia, em quase todos os canais de televisão – não porque eles estavam preocupados em encontrá-la, mas porque eles estavam preocupados em vender", diz. "Minha filha era uma menina de classe média, era toda bonitinha, de olho azul, então dá uma bela capa de revista". Se o caso não soa familiar, talvez lhe ajude saber que o assassino de Liana é o Champinha.

Quando para-se para observar, em muitos dos casos o assassino fica tão ou mais conhecido do que a vítima. Champinha, Lindenberg Alves, o Maníaco do Parque, Chico Picadinho, Doca Street: a projeção que todos eles ganharam na mídia os tornou amplamente conhecidos – quem nunca ouviu falar em um destes assassinos? – e os crimes que cometeram são quase exclusivamente associados aos seus nomes, não ao das mulheres que mataram, com a exceção, talvez, de Eloá Pimentel. "Trata-se outra face da cultura de violência contra as mulheres que é estruturante na nossa sociedade, em que até mesmo nos casos emblemáticos o direito à história, memória e justiça à mulher vítima de assassinato é esquecido", coloca Marilia Kayano, membro do conselho editorial e coordenadora editorial da Agência Patricia Galvão, uma iniciativa do Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos para atuar na produção de notícias e conteúdos sobre os direitos das mulheres brasileiras, criada em 2009.

Outro ponto a ser questionado é a escolha de termos feita pela mídia. "Existe uma preocupação jornalística de que você precisa fazer as pessoas compreenderem o que está sendo dito. 'Elas não sabem o que é um feminicídio, mas sabem o que é um assassinato, então vamos de assassinato mesmo'. Isso é um erro, porque você está subestimando a capacidade de compreensão e cognição do seu telespectador, além de não estar colaborando para a formação da ideia de que criminosos que matam mulheres pela condição de serem mulheres estão cometendo um crime específico e, portanto, precisam ser tratados de maneira específica", aponta Joelson Giordani, editor-chefe e âncora do Jornal Cidade Verde, da TV Cidade Verde, de Teresina. Em detrimento de feminicídio, os jornalistas optam pelo termo genérico homicídio ou ainda assassinato, como também relata o jornalista Dante. "A gente conhece o termo, sabe o que é, mas procurando no nosso arquivo eu encontrei vários casos de feminicídio e em nenhum o usamos. Eu me senti até um pouco mal por entender a necessidade de se debater mais o tema, de abordá-lo com a seriedade que merece e, no exercício diário, não conseguir fazer ou nem tentar fazer às vezes, o que é pior. E aí eu vou assumir a culpa, eu acho que a gente nunca tentou fazer", afirma. Ele ainda lembra que, como nos casos de latrocínio, em que se explica o termo em poucas palavras logo depois de citá-lo, seria possível transportar para as reportagens sobre feminicídio a mesma prática. Assim, mesmo que o leitor nunca tenha ouvido tal designação antes, ele consegue compreender do que se trata e começa a se familiarizar com ela.

Além dos comunicadores ainda não terem se apropriado do termo mais novo, existe uma relutância em deixar de lado o antiquado "crime passional". A estudante de jornalismo Ana Júlia Gennari estagiou por 3 meses na rádio escuta da Rede Record e conta que lá a palavra feminicídio nunca foi usada. "Na primeira semana eu dei o meu primeiro furo: em uma das várias ligações diárias que recebíamos eu ouvi uma denúncia de um crime de feminicídio. Quando fui passar o caso para a redação, o redator disse que eu era muito sortuda por ter dado um furo desses na primeira semana, e perguntou se eu estava feliz com isso. E eu disse não. É difícil ficar feliz com um fato desses", desabafa. Ela afirma que os casos eram tratados da maneira mais leviana e sensacionalista possível, sempre com a denominação "passional".

"O feminicídio ainda é uma palavra pouco usada no jornalismo como um todo e na própria polícia", problematiza a editora Camila. Nas saídas diárias de um repórter de polícia – como são conhecidos aqueles que cobrem este tipo de fato – em busca dos boletins de ocorrência do dia, muitas vezes eles recebem da própria delegacia um documento que traz o termo “crime passional” e, sem questionar seu uso ou refletir sobre o que ele significa, o reproduz em sua matéria. "A gente faz uma cobertura policial que é quase industrial, uma linha de produção de notícia. O repórter vai para a rua e ele é determinado pelo editor a pegar quase tudo: o cara que foi pego com 20 trouxinhas de maconha, o cara que matou o vizinho dele por causa de uma briga de terreno e o cara que deu 30 facadas na mulher porque ela era mulher e estava incomodando a vida dele. Eu acho que isso atrapalha muito", reflete Dante. Para a diretora de jornalismo da TV Cidade Verde e apresentadora do jornal Notícias da Manhã, Nadja Rodrigues, pode ser uma questão de tempo até que aconteça uma adaptação do sistema da justiça e ele passe a adotar o termo. "A partir do próprio tratamento que a polícia dá, que o Ministério Público dá, a gente da imprensa vai acompanhando", afirma. Marilia concorda: "O sistema de justiça nem sempre ajuda a imprensa na identificação dos casos porque como a mídia se informa em geral por meio da polícia e dos operadores dos sistemas de justiça e segurança, se os profissionais não dão ao crime o nome que ele tem, muitas vezes o profissional de comunicação receia identificar erroneamente um caso".

Culpabilizar a vítima é outro erro recorrente. Busca-se justificar a ação do assassino construindo uma narrativa verossímil, como no caso de Elisângela Biffi, morta pelo ex-companheiro em outubro deste ano. Algumas matérias, inclusive de grandes veículos, afirmaram que a moça era lutadora de karatê e que seu parceiro já havia registrado contra ela dois boletins de ocorrência, enquanto ela só havia formalizado uma única denúncia. Com isso, insinuaram que Elisângela era violenta e buscaram encontrar neste fato uma justificava para o crime. "Para informar sobre um feminicídio, pode ser importante relatar detalhes do crime que evidenciem o ódio, o menosprezo à mulher e à sua condição humana, mas em nenhuma hipótese associá-lo a 'motivos' que a mulher tenha dado", afirma Marilia. "Nada justifica a violência e menos ainda o assassinato. Um crime é um crime e deve ser tratado conforme previsto nos dispositivos legais e de proteção aos direitos humanos", conclui.

lutadora é morta por facada pelo marido, ele se matou em sequência

Além da falsa relação de causa e consequência traçada, a apuração ainda foi rasa: "A minha tia nunca foi lutadora na vida. Meus priminhos [filhos de Elisângela], de 9 e 13 anos, participam de uma escolinha de karatê e acredito que a confusão veio daí", conta Bruna Biffi, estudante de 19 anos e sobrinha da vítima. "E realmente, ela chegou a ter um boletim de ocorrência contra ela, registrado por ele, alegando que ela havia o agredido. Mas o que aconteceu é que minha tia não era de ficar apanhando, quando ele batia ela revidava para tentar se defender, tanto que o corpo dele tinha duas facadas, sinal de que ela tentou sair daquela situação, mas não conseguiu", lamenta Bruna. A jovem ainda conta que Elisângela já havia feito inúmeras denúncias contra o agressor, com quem manteve uma "relação estável" por 17 anos, e chegou a cogitar sair de casa depois de sofrer uma tentativa de feminicídio anterior a esta que tirou sua vida. "No dia em que ela pensou, meu primo de 9 anos começou a ficar depressivo e ela decidiu, pelos filhos, a continuar na casa mesmo não estando mais em um relacionamento com ele. Por isso, todas as noites ela dormia no quarto das crianças e rezava com eles para que acordassem no dia seguinte", relata a sobrinha.

Uma outra forma de culpabilizar a mulher é através da escolha errada de palavras: “Mulher é assassinada”, “Mulher é jogada da janela”, “Mulher é morta à facadas”. Muito frequentemente, omite-se o homem da história, colocando a mulher como sujeito das ações e dando a entender que há uma "ameaça fantasma" a colocando em perigo.

Buscando minimizar os erros de apuração, ao menos no que diz respeito aos dados, o Instituto Patrícia Galvão disponibilizou online o Dossiê Violência Contra as Mulheres. Trata-se de uma plataforma multimídia que conta com fontes, dados, recomendações à imprensa e uma ferramenta para pesquisa de temas específicos de uso aberto para qualquer um, mas tendo profissionais da comunicação e ativistas digitais como público alvo. O dossiê foi criado buscando contribuir para o aprofundamento do debate sobre o tema, pois apesar de ter cada vez mais espaço, a cobertura jornalística da violência contra as mulheres, com todos os recortes e dimensões que lhe cabem, segue descontextualizada, tratando na maioria das vezes os casos como apenas um problema individual, e não como uma questão social muito mais grave e ampla. “Em relação às mulheres negras, não se discute como machismo e racismo se entrelaçam inclusive nas relações afetivas, tendo em vista que são parte de uma ideologia constitutiva da sociedade brasileira”, exemplifica Marilia.

Onde está o fim?

Nenhuma mulher está a salvo da violência de gênero e nós precisamos falar sobre isso. Se você é ou foi vítima ou, ainda, se conhece uma mulher que passou por um quadro de violência, pode procurar por ajuda ligando para o 180. A Central de Atendimento à Mulher está disponível 24 horas, todos os dias e em todos os estados do país. Através de uma ligação gratuita você obtém orientações específicas sobre quais medidas tomar de acordo com o seu caso e pode, ainda, protocolar uma denúncia contra o agressor – tenha ele agredido à você ou à alguém que você conheça. É possível também acessar a rede de atendimento à mulher disponível online, que busca mapear os serviços de auxílio em cada estado. Ainda que sua atuação não seja a ideal, é um primeiro passo e uma forma acessível de procurar ajuda e proteção.

Traçar um panorama desta violência em nosso país é impossível: além de ser um assunto complexo por si só, com causas diversas, também não podemos assumir que um ou dois estados representem uma região, ou ainda que a capital represente o estado. Da mesma forma, buscar soluções a curto ou longo prazo não é simples. Por todo Brasil, bate-se na tecla de inserir o tema na educação desde cedo, ressaltando a importância do debate de gênero nas escolas, mas não podemos ser simplistas e acreditar que isso seria o bastante para apagar anos de violência sistemática, institucional, física e simbólica – haja visto que desde janeiro de 2003 a disciplina História e Cultura Afro-brasileira integra o currículo obrigatório de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio e, ainda assim, o racismo continua visivelmente presente na sociedade e nas instituições brasileiras.

A verdade é que essa reportagem poderia não ter fim nunca. Sandra Elena, Ana Gleide, Benedita, Maria Izabela, Patrícia: mais uma busca rápida, mais cinco vítimas de feminicídio entre tantas que nós nunca sequer saberemos o nome.

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foram vítimas de feminicídio no Brasil

Expediente

Catherine Debelak

Catherine Debelak

Nasceu em São Paulo e voltou para a capital quando iniciou o curso de Jornalismo na faculdade, mas seu coração sempre morou em Atibaia. Hoje, aos 22 anos, trabalha com conteúdo customizado e se considera feminista, apesar de não ter tido muito contato com o movimento.

Letícia Dias

Letícia Dias

Recifense, 21 anos, veio para São Paulo em 2012 para estudar Jornalismo. No ano seguinte, foi uma das fundadoras da Frente Feminista Casperiana Lisandra, coletivo feminista da faculdade, do qual faz parte até hoje. Já trabalhou com conteúdo customizado, mas encontrou sua paixão no jornalismo sobre Direitos Humanos e na área acadêmica da Comunicação.

Marina Garcia

Marina Garcia

21 anos, nascida e criada em São Paulo. Está concluindo o curso de Rádio e Televisão e aliou a paixão por audiovisual à vontade de retratar problemas sociais. Atualmente trabalha com pós-produção. É feminista, vegana e militante.

Essa reportagem foi produzida como trabalho de conclusão de curso de Jornalismo e Rádio e Televisão da Faculdade Cásper Líbero, sob a orientação da Prof. Dr. Michelle Prazeres.
O site foi programado por Juliana Reis.

Agradecimentos


Agradecemos à Soraya Bussiki pela ajuda, pela confiança de deixar sua câmera viajar pelo Brasil com a gente e por todas as ideias e opinões que contribuiram para a reportagem ser o que é.

Obrigada a Osvaldo e Petinha Mendes, Hermano e Fátima Carvalho e Gilmar e Luzia Borges, que nos abrigaram em Teresina, Brasília e Vitória respectivamente. A Hermano, de novo, Rita Lopes, Marina Sérvio e Bárbara Nascimento, que nos ajudaram a conseguir contatos em suas cidades.

Catherine gostaria de agradecer, em especial, aos seus pais, Carla e Edson, que deram todo o suporte, incentivo e amor necessários para que ela cumprisse esta jornada e à irmã, Beatriz, pela paciência nas madrugadas de reunião em casa.

Letícia agradece, antes de qualquer um, seus pais, Amadeu e Gardênia, que tornaram o sonho de estudar em São Paulo possível, pelo apoio e a compreensão nesse ano tão importante. Também às mulheres que constroem a Frente Feminista Casperiana Lisandra com ela, pelo aprendizado e pelo suporte ao longo desses dois anos e meio.

Marina agradece a seus pais, Heloisa e José Carlos, pelo apoio durante todos os anos do curso, a Ivan, o chefe mais compreensivo do mundo, à Luíza Fazio, pelas opiniões sinceras e por todo o auxílio, e especialmente à Soraya Bussiki, pela confiança e companheirismo. Obrigada.

Pela coragem de enfrentar barreiras e dividir conosco suas histórias sem sequer nos conhecer, confiando em nosso trabalho, agradecemos também à Stephanie*, Suzane Jardim e Bruna Biffi.

Um muito obrigada à Prof. Michelle Prazeres, pela orientação e interesse genuíno em nosso projeto, além da compreensão integral da delicadeza do tema.

Finalmente, obrigada a todos que, de uma forma ou de outra, ajudaram a realizar a matéria como tínhamos idealizado, incluindo a megalomania de ir a sete estados brasileiros. A todos conhecidos e desconhecidos que acreditaram na gente e contribuíram com nosso projeto no Catarse:


Amadeu de Souza Dias

Ana Paula Carvalho Sérvio

Alessandra Parelho

Alexandre Wilian Leonardo

Alice Luiz Roberto

Alyne Rangel

Amanda Mattos Della Lucia

Ana Bardella

Ana Júlia Gennari

Anna Líssia

Beatriz Debelak Cordeiro

Beatriz Garcia Damasceno

Cynthia P. Barros

Camila Batista de Araujo

Camilla Marques

Carla Debelak

Carina Santos Xavier

Caroline Moreira

Claudia Ratti

Claudia Ottoni

Denise de Oliveira Nobre Aguiar

Diego Borin Reeberg

Edson Alvaro Cordeiro

Eduarda Fellows Maia Gueiros de Freitas

Érica Camillo Azzellini

Evelyne Ramos Massulo

Fabrício Tavares

Felipe Milhomens Barretto

Fernanda Siqueira

Flavia Gianini

Flavio Beraldo de Paiva

Francine Cavalcante Alves

Funcionários da Debelak Serviços Automotivos de Atibaia e São Paulo

Gabriel Lima Acevedo Alves

Gardênia Sérvio Mendes

Grazielle Cardoso Corapi

Iara Baptista Pasta

Íris Lopes

Isabel Dias

Isabel Furtado

José Carlos Damasceno

Jose Luiz de Oliveira

Julia Ramos de Oliveira

Juliana Matsuoka Pasta

Juliana Ortega

Jéssica Fateiga

Júlio Paschoal

Laura Neves

Leonardo Paraiso Vilela Carvalho

Liana Holanda Nepomuceno Nobre

Luccas Franklin Martins

Luciana Veloso Baruki

Luíza Fazio

Lívia Ferreira Leite

Marcelino Lopes Neto

Maria Cecilia de Souza

Maria Luiza Agrelli Paschoal

Maria Luiza Steinmann

Mariana Aros da Silva

Mariana Moreira

Mariana Teixeira

Maysa Bernardo Souza Almeida

Melina Adissi Sternberg

Paulo Rogério Moutinho Coelho

Paiva Junior

Petinha Mendes

Priscila Kesselring

Renata Octaviani

Ricardo Araripe

Rita de Cássia Sérvio Mendes Lopes

Rodrigo Marques

Rodrigo Ortiz Vinholo

Rodrigo de Oliveira Martins

Sergio Eduardo Caiado Pereira

Simone Cordeiro

Simone Uriartt

Tarik Luis Maia da Silva

Thiago Taranto Alvim

Tiago Cordeiro

Urias Bolzan

Vani Chiari Cordeiro

Valeria Fazio

Vivi Costa

Wilton Rossi Rodrigues

Yvonne Leoni Baptista Pasta

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