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Irene Flunser Pimentel: O julgamento da Pide

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Irene Flunser Pimentel "A nossa democracia está naturalmente marcada pela ditadura, pela forma como caiu e por todo o processo que se seguiu"

JORNAL DE LETRAS Entrevista à historiadora, Irene Flunser, autora do livro O Caso da Pide/DGS

Maria Leonor Nunes

Nas paredes, havia ao tempo muitas inscrições que sentenciavam “Morte à Pide”. E terá sido uma palavra de ordem gritada em manifestações. Houve noticia de prisões, rendições, destruição de documentos, logo a seguir ao 25 de Abril. Porém, ficou um certo sentimento de impunidade ao nível do senso comum. “Se perguntarmos às pessoas, elas possivelmente vão dizer que os agentes da Pide/DGS não foram julgados e condenados”, adianta a historiadora Irene Flunser Pimentel. Ela própria tinha essa ideia, quando em 2013, com uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia, partiu para a investigação, no âmbito de um pós-doutoramento, que agora dá um livro, O Caso da Pide/DGS – Foram julgados os principais agentes da ditadura portuguesa?, uma edição da Temas e Debates/Círculo de Leitores. Uma obra em que recupera dos arquivos um processo com “muitos avanços e recuos”, em consonância com a própria evolução política portuguesa.
Irene Flunser Pimentel, 67 anos, historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, distinguida com o Prémio Pessoa em 2007, tem incidido o seu estudo sobre o Estado Novo e, de uma forma alargada, o século XX português. Assim, publicou títulos de referência como A História da Pide, A cada um o seu Lugar, Salazar, Portugal e o Holocausto, Mulheres Portuguesas, A Mocidade Portuguesa Feminina, Os Espiões em Portugal durante a Segunda Guerra ou O Comboio do Luxemburgo. Neste novo livro também analisa comparativamente outros processos de justiça transicional, na Grécia, Espanha, Argentina, Chile ou Brasil. E afere a singularidade do processo português, ainda no contexto da Guerra Fria. "É preciso olhar historicamente a justiça e a memória", diz ao JL, "para melhor compreendermos a democracia".

Jornal de Letras: Depois de ter feito A História da Pide, a sua tese de doutoramento, volta agora ao tema. O que lhe interessou ainda investigar?
Irene Flunser Pimentel: Este foi um trabalho de pós-doutoramento em que me interessou voltar a estudar a Pide/DGS, em particular a chamada justiça transicional, do ponto de vista histórico, uma vez que a politologia até tem pegado no tema. Ou seja, a justiça que tem lugar num processo de transição de uma ditadura, de uma guerra, para uma situação de paz ou de democracia. No caso de Portugal, há uma ideia muito difundida na opinião pública de que nada foi feito aos agentes do regime ditatorial, especialmente aos agentes da Pide.

Foi essa ideia que motivou o seu estudo?
Sim, quis estudar o que realmente tinha acontecido.

E fez-se ou não justiça em relação aos agentes da Pide?
A resposta, de um modo geral, pode ser a do copo meio cheio e meio vazio.

Depende do ponto de vista?
Houve detenções logo a seguir ao 25 de Abril e até 1975. Isto pela própria forma como a ditadura caiu, fazendo apenas quatro mortos, mas vários feridos, justamente ainda às mãos da Pide, o que causou impacto na opinião pública. E pela força das elites da oposição ao antigo regime. Tudo isso criou desde logo a impossibilidade da continuação da Pide, ainda que tenha continuado nas ex-colónias em guerra, outro aspeto que tento abordar – embora me ocupe sobretudo do que se passou no continente, procurando perceber como correu todo o processo –, desde que os agentes se entregaram ao MFA, muitos até para não sofrerem violência por parte da população.

Houve perseguições, tentativas de justiça popular?
Nas ruas, nas manifestações, gritava-se “Morte à Pide” e havia referências contra a Pide nos discursos políticos. É engraçado que no primeiro 1º de Maio, o discurso mais violento contra a Pide foi o de Mário Soares, embora posteriormente não fosse tão radical. Mas houve apenas uma ou outra tentativa de linchamento popular. Por isso, muitos pides se entregaram, porque tiveram medo. Também houve um suicídio de um informador. Foco esses casos, mas foram muito limitados, porque o processo esteve nas mãos das Forças Armadas. O curioso é que a Pide acabou por transformar-se no paradigma da ditadura.

Corporizou-se na polícia política a condenação à repressão do regime?
Exatamente. Digamos que foram considerados os inimigos principais, e criminalizados. No entanto, nada aconteceu ao presidente Américo Tomás ou ao chefe do governo, Marcelo Caetano, inicialmente enviados para a Madeira e depois para o exílio no Brasil. Tomás até acabaria por voltar muitos anos depois a Portugal. Marcelo nunca o quis. Nem se condenou os que mandavam nessa polícia política, sequer o ministro do Interior, que a tutelava: embora tivessem sido presos, foram libertados e depois absolvidos.

AVANÇOS E RECUOS
Ainda não tinha força a ideia da responsabilidade política?
Não só a ideia de responsabilidade política como a de Direitos Humanos. O caso português ocorreu ainda em plena Guerra Fria e analisando os vários processos de justiça de transição depois de Nuremberga, vemos que os baseados nos Direitos Humanos foram já depois desse período. Houve toda uma evolução, mas o processo português estava ainda baseado na lógica ideológica da Guerra Fria. O facto de terem escapado algumas figuras principais tem que ver, de resto, com a própria vontade do MFA de não haver, logo no início, uma grande clivagem. Até porque se tratou de um golpe de Estado e nunca se pensou que a população viesse para a rua. E houve a necessidade de não provocar um vazio de poder.

O que caracterizou a justiça transicional portuguesa?
O que concluí é, antes de mais, que existiu esse processo de julgamento dos pides, e daí o tal copo meio cheio… Isto embora tivesse tido avanços e recuos, consoante a própria evolução política portuguesa. Primeiro, a Junta de Salvação Nacional tentou controlar a questão, até porque tutelava a Comissão de Extinção da Pide, a seguir controlada pelo Conselho da Revolução. As coisas foram variando, mas eles estiveram presos, ainda que a maior parte das pessoas possa pensar que não. Com o 25 de Novembro, mudou-se, no entanto, a dinâmica que se tinha verificado até então.

Em que sentido?
Acompanhou-se a própria situação política, que tinha acabado com o PREC. Verificaram-se aí algumas alterações. Houve primeiro uma criminalização dos elementos da Pide/DGS, através de uma lei especial. Uma criminalização que seria limitada por dois diplomas, já no pós-25 de Novembro. Um deles, por exemplo, considerava atenuantes o facto de os elementos da Pide terem colaborado com as Forças Armadas no terreno da Guerra Colonial, antes e depois de 1974. E outras atenuantes, como terem mais de 70 anos. Finalmente, a partir de 1976, os pides começaram de facto a ser julgados, em Tribunal Militar. Isto depois de uma discussão sobre o tipo de tribunal que os iria julgar, se devia ser especial, se Nuremberga seria um modelo a seguir.

CONDENAÇÕES E ATENUANTES
Como foram os julgamentos?
De um modo geral, os juízes acabaram por tomar os anos de prisão preventiva como uma espécie de tabela para as penas. Por exemplo, se tinham estado presos preventivamente um ano e meio, eram condenados a um ano e meio de prisão, de modo a saírem logo em liberdade. Ou a um pouco mais, consoante as acusações. Aliás, a maior parte dos pides, depois do 25 de Novembro, aguardaram já em liberdade os julgamentos. Portanto, houve processos instruídos, condenações, embora muitas com perdões e atenuantes. Exceção feita a crimes de sangue, como o do agente que tinha morto o escultor José Dias Coelho, em 1961, ou o caso de Humberto Delgado, que também tento analisar.

As penas não foram em geral pesadas?
Não, não foram nada gravosas. Mais ou menos um ano e meio, dois no máximo. Prisão maior só em crimes de sangue ou a agentes conhecidos por serem grandes torturadores. Por exemplo, o Tinoco, o Mortágua ou a Madalena. Falo igualmente desses casos.

E o que se passou com os informadores da Pide?
Essa é uma outra questão muito interessante, porque se os pides se renderam ou foram presos, eles continuaram clandestinos, no seio da população. A Comissão de Extinção da Pide tentou apurá-lo, mas foi uma tarefa difícil. Até porque no próprio dia 25 de Abril, Álvaro Pereira de Carvalho, que era o diretor do serviço de informações da Pide, queimou uma série de papelada na sede, relativa precisamente aos informadores, o que dificultou as possíveis investigações futuras. De qualquer modo, também se prenderam informadores, numa fase inicial. E lembro que essa era, aliás, uma das figuras que as pessoas mais odiavam. Claro que se compreende, porque eram aqueles que estavam no meio dos grupos e traíam, enquanto os agentes eram 'funcionários públicos'. Mesmo quando se discutiram as penas, pensou-se que deviam ser como as dos agentes. Tentou-se desculpar mais os empregados de escritório, os motoristas. Mas é verdade que alguns também participavam na tortura do sono. A sociedade civil, que era na altura muito fraca, mas que teve, durante um ano, um movimento de politização radical muito forte, deixou, na verdade, todo esse processo nas mãos dos militares. É essa a minha interpretação. Se a questão da memória, da justiça estava presente, discutia-se a construção do novo presente e do futuro. Em nome disso, a própria questão da Pide foi aparecendo e desaparecendo da luz do dia.

Houve momentos em que esteve mais na ordem do dia.
Sim. Por exemplo, na altura da fuga de Alcoentre. Aí, as pessoas ficaram revoltadas, porque se percebeu que havia grandes cumplicidades que permitiram a fuga dos pides. Mas foi um momento em que, por outro lado, se acelerou a criminalização, a instrução dos processos.

RELATÓRIOS E ARQUIVOS
Como foi o trabalho da Comissão de Extinção?
Foi muito importante e ao mesmo tempo marcado politicamente, consoante as pessoas que a integravam. Houve debate, fizeram-se muitos interrogatórios para perceber como a Pide tinha funcionado. Como os militares não sabiam muito sobre esse funcionamento, recorreram a pessoas do Partido Comunista ou da antiga oposição ao regime. E fizeram-se relatórios muito interessantes.

Recorda algum em particular?
Por exemplo, sobre o relacionamento, ao longo dos anos, entre a Pide/DGS e as empresas.

As empresas?
Exatamente. Muitas empresas públicas e privadas solicitavam a Pide para montar sistemas de informação lá dentro, como forma de controlar os trabalhadores, para não haver greves, que aliás eram proibidas. E pagavam à Pide por esse serviço. Esse relatório foi feito por Pereira de Carvalho, que inicialmente deu consultadoria à comissão, em liberdade, tendo sido preso depois. Para quem queira estudar a Pide, os arquivos da comissão são muito interessantes. Ainda não estão completamente abertos, mas, além do arquivo da Pide, na Torre do Tombo, permitirão aprofundar mais a História dessa polícia política.

Ainda há muito por aprofundar?
Claro. Haverá sempre. A investigação da História nunca termina. Até porque consoante as épocas e as pessoas, as interpretações vão variar. E é preciso continuar a estudar, até porque essa polícia e esse período marcaram muito a nossa História recente, durante muito tempo.

Depois de ter feito a sua História, o que a surpreendeu nesta nova investigação?
Eu própria tinha as minhas ideias feitas sobre o assunto, pensava que muito pouco tinha acontecido em matéria de julgamentos dos pides, sabia vagamente que tinha havido uma comissão de extinção. À medida que fui investigando, fiquei surpreendida com o modo como eram mesmo ideias feitas. Aliás, quando estudei a Pide, também as tinha, algumas das quais acabei por pôr em causa. Por exemplo, que a Pide prendia toda a gente, mas na verdade prendia as pessoas que atuavam. Por isso, quis investigar mais sobre os mecanismos de repressão e depois sobre o julgamento desses protagonistas. Também procurei ver, embora brevemente, como foi a discussão sobre a justiça, na Constituinte. Como historiadora, não me abalanço para os tempos atuais, mas parece-me que isso também terá tido alguma influência no modo como a justiça hoje funciona. Porque antes havia juízes nomeados pelo governo, dependentes, e depois houve a preocupação de garantir a independência dos juízes. A ditadura serviu como modelo do que não se queria fazer no futuro. E também se aboliu qualquer possibilidade de uma justiça especial, política. A nossa democracia está naturalmente marcada pela ditadura, pela forma como caiu e por todo o processo que se seguiu.

UM PROCESSO ORIGINAL
Concentrou o seu estudo no período até 2000.
Exaustivamente, até ao início dos anos 80, à extinção da Comissão e ao fim do caso Delgado. Depois de Nuremberga ou do julgamento de Eichmann, em Jerusalém, em 1961, o caso português foi dos primeiros processos de transicional, juntamente com o da Grécia.

Faz, de resto, a comparação com o que se passou noutros países.
Sim. Sobretudo com os casos que ocorreram no mesmo período, na Grécia e em Espanha, procurando perceber as diferenças e as semelhanças. E a verdade é que, por exemplo, na Grécia, até há pouco tempo ainda havia pessoas presas que tinham sido agentes da ditadura militar. Alguns foram mesmo condenados à morte e essas penas foram comutadas para prisão perpétua. Aliás, os próprios presos políticos gregos e seus familiares tiveram a iniciativa de processar esses agentes. Em Portugal, não aconteceu nada disso.

O que não deixa de ser surpreendente.
Pois é, dá a impressão que estamos sempre à espera do que de cima venha… A própria Comissão chegou a culpar alguns presos políticos por não testemunharem contra os elementos da Pide, não fornecendo provas. E os presos políticos diziam que não estavam disponíveis para estar ao mesmo nível que os torturadores. Isso fez com que, a partir de determinada altura, não houvesse tantos testemunhos.

Tivemos, em seu entender, um processo de justiça transicional singular?
Sem dúvida. Marcado pela própria opinião pública e pela evolução política. Foi muito original e não havia estudos sobre isso. Comparei também o caso português com os casos mais emblemáticos da Argentina, onde foi levado mais longe esse processo de justiça, já baseado nos Direitos Humanos, e do Chile. Também do Brasil, um pouco pelas questões da língua, onde houve tardiamente uma Comissão Nacional da Verdade, que apurou muita coisa, embora sem efeitos judiciais, um pouco antes de Dilma Rousseff, que a tinha criado, ter sido destituída. Estudei igualmente um pouco da África do Sul. Tentei compreender fundamentalmente de que forma esses processos tiveram repercussões sobre a própria memória das ditaduras e sobre a construção da democracia.JL