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quinta-feira, 7 de março de 2019

RPG do Mês: Symbaroum - Fantasia Dark em um mundo assustador


Ambria é um reino jovem. Com apenas duas décadas de existência, ele foi fundado como o refúgio para os sobreviventes do Reino de Alberetor, pessoas que cruzaram perigosas montanhas para escapar da ameaça dos Senhores da Escuridão que devastaram seu lar.

Ao chegar ao seu destino, decidiram  construir sua nova vida sobre as ruínas de um império muito mais antigo e quase desconhecida chamado Symbaroum. Governado por uma Rainha jovem e justa chamada, Korinthia, os habitantes de Ambria enxergam a si mesma como o último bastão de civilização e que constitui seu dever conter as trevas que habitam a assustadora Floresta de Davokar que domina a terra onde hoje vivem e que se estende sem fim, rumo ao norte. A Capital de Andria, Yndaros é como um farol luminoso de cultura e civilização em meio a noite escura, mas pequenas cidades como Thistle Hold, talvez tenham se estabelecido perto demais das matas fechadas de Davokar. De lá, seus moradores conseguem ouvir os sussurros das coisas que habitam os ermos.

De Thistle Hold e pequenas aldeias adjacentes, caçadores de tesouros, teurgistas de Prios, o Deus do Sol, Místicos da Ordo Magica, e outros aventureiros se lançam para explorar a floresta, esperando revelar seus segredos, localizar ruínas perdidas de Symbaroum, e talvez retornar com riquezas e tesouros do passado que os tornarão ricos para sempre.

Na conquista das terras luxuriantes que se tornaram Ambria, o reino submeteu à força clãs de bárbaros e tribos goblins, que viviam na borda exterior de Davokar. Na ânsia de domar essas terras e fazer desse lugar seu novo lar, eles impuseram seu estilo de vida arranhando o Pacto de Ferro. Esse acordo firmado entre os homens e os elfos, o povo misterioso que vive na floresta, vigorou por séculos com a promessa de que a santidade de Davokar não seria conspurcada. Agora, a medida que os forasteiros que construíram Ambria exploram cada vez mais profundamente o que existe sob as copas das árvores ancestrais, os elfos reagem. Flechas voam na direção de invasores, aldeias ardem em chamas e bebês humanos são raptados na calada da noite e trocados por changelings.


Muitos dos anciões bárbaros e bruxas aconselharam os líderes dos clãs bárbaros a manter o Pacto de Ferro, mas alguns decidiram esquecer os antigos rituais. E de dentro da Floresta, de tempos em tempos, vem a lembrança de que coisas ainda mais implacáveis que a fúria dos elfos devem ser temidas. Lá, nas profundezas indevassáveis dos ermos, habitam criaturas e plantas aterrorizantes, existem lugares intocados que contaminam seus visitantes, corrompem suas almas e abrem as portas para as trevas. Tudo isso, além dos muitos perigos que fazem da floresta seu reduto, em especial magia que permeia esse terreno. Há magias e rituais poderosos ligados à floresta, mas abusar desse poder pode corromper a alma e custar muito mais do que a vida do mago e de seus aliados. As disciplinas teúrgicas, a feitiçaria primitiva e a magia arcana oferecem os meios conhecidos para canalizar essa energia, mas mesmo os magos mais talentosos se arriscam ao manipulá-la. E ainda há aqueles que não se importam com os efeitos desencadeados...     

Esta é, em linhas gerais a ambientação de Symbaroum, um RPG sueco publicado pela Järnringen que foi lançado em inglês após uma campanha de financiamento bem sucedida. Agora, distribuído pela Modiphius Entertainment ele está prestes a desembarcar no Brasil através de um Financiamento Coletivo nacional por intermédio da Pensamento Coletivo.

É surpreendente como esse jogo de fantasia, com uma proposta fincada n gênero dark encontrou rapidamente seu caminho para o público norte-americano. Ele foi publicado originalmente em 2014 e logo no ano seguite foi traduzido para atingir um número maior de jogadores. Em geral, leva alguns anos, ou mesmo décadas até que os jogos sejam devidamente traduzidos e convertidos para o mercado americano, que até pouco tempo era bem mais fechado a jogos estrangeiros. Parece que essa mentalidade está mudando e aos poucos, os jogadores americanos estão abrindo suas mentes e descobrindo que mundo afora existem jogos e ambientações que valem a pena ser exploradas.


O que Symbaroum apresenta é uma ambientação de fantasia pesada, com uma região bastante limitada, na fronteira entre civilização e selvageria, com um forte senso de maus agouros e presságios. Com base nessa ambientação, é possível traçar alguns paralelos entre Symbaroum e outros RPG. O primeiro que vem à mente é Dragon Age da Green Ronin (aqui no Brasil lançado pela Jambô), sobretudo pelo tema em comum envolvendo invasões demoníacas e pela estrutura de classes para criação dos personagens. A ambientação encontra ecos também em Numenera (da New Order), na qual antigas civilizações e seus tesouros esquecidos servem de catalizador para aventuras em terras antigas que pertenceram a povos muito poderosos. Entretanto, o jogo que Symbaroum talvez tenha mais em comum é o RPG francês, Shadows of Esteren (Les Ombres d'Esteren), em particular pelo estilo claustrofóbico e sombrio de seu background. Em ambos permeia uma aura de ameaça, isolamento e maldade invisível, que quando decide se manifestar arrasta bons e maus para um abismo profundo.

Em Symbaroum é justamente a noção de confinamento e limitação espacial o elemento que chama mais a atenção. Essencialmente o jogo se passa em um pequeno território mais ou menos desconhecido e inóspito. Enquanto várias ambientações se preocupam em apresentar diferentes áreas como uma forma de diversificar o mundo e oferecer um rico panorama de possibilidades, Symbaroum vai no caminho inverso. O livro descreve apenas duas regiões: A primeira é Ambria, o Reino erguido recentemente e a outra, a misteriosa Floresta de Davokar.

Isso não significa que o livro seja econômico ao descrever essas duas regiões. Pelo contrário! O primeiro quarto do Livro Básico do Symbaroum Livro de Ambientação é criterioso em suas descrições, pode-se dizer até obsessivo. Tudo é esmiuçado em detalhes: da história, às tradições, dos costumes passando pelas personalidades políticas, religiosas e sociedade. As principais localidades exploradas são a Capital de Ambria, Yndaros, com todos os seus segredos; Thistle Hold, o entreposto mais ao norte de onde parte a maioria das expedições para a perigosa Floresta, Karvosti, um grande penhasco que serve de casa para o maior dos líderes bárbaros e sua Huldra (Bruxa) e  Thingstead um entreposto mercantil que também é sede da Igreja de Prios.


Embora existam muitos deuses - e cada clã bárbaro reza para sua própria divindade que represneta um aspecto da natureza, em Ambria, Prios se tornou uma espécie de Deus Único pois foi graças a ele que a Rainha Korinthia teria encontrado o lugar onde a população se fixou. Prios também seria a única esperança de proteção contra os terrores de Davokar. Embora Yndaros seja a capital e maior assentamento do Reino, Thistle Hold tem um tratamento todo especial uma vez que sua localização estratégica permite que a floresta seja explorada. De fato, a paliçada que cerca Thistle está praticamente colada em Davokar e bastam alguns passos para dentro da mata para que o aventureiro devidamente licenciado para explorar o lugar, se veja mergulhando nos ermos.

A Descrição da Floresta de Davokar infelizmente é bem mais sucinta. Não é algo que chegue a comprometer, mas em comparação a descrição parece bem menor. É provável que a grandiosidade da floresta seja propositalmente disfarçada em comentários mais breves para conservar um véu de mistério e segredo em torno dela. É nessa floresta fechada que irão se desenrolar muitas das aventuras de exploração, com incontáveis lugares a serem vasculhados, clareiras misteriosas, árvores anciãs e grutas secretas, além de velhas construções dos tempos de Symbaroum - verdadeiros depositários de magia, riqueza e tesouros.

Cada personagem em Symbaroum é definido através de um Arquétipo, Atributos, Raça e Habilidades. O livro Básico oferece três Arquétipos básicos: Guerreiro, Místico e Ladino - que fazem as vezes de classes que são refinadas através de ocupações específicas. Dessa forma, existem quatro ocupações dentro de cada Arquétipo, cada um deles oferecendo sugestões para construção dos personagens e distribuição de atributos e habilidades, além é claro, das raças mais adequadas. Isso significa que um Guerreiro pode escolher uma ocupação dentre duelista, capitão, cavaleiro e mercenário, um Místico pode ser um bruxo, mago, feiticeiro ou teurgista e um Ladino pode ser um caçador de bruxas, de tesouros ou ranger. Esse sistema de escolha de arquétipo fornece um bom número de opções, mas é claro, o jogador é livre para definir seu personagem da maneira que quiser. Cada personagem possui um conjunto de oito atributos - Accurate (Acurácia), Cunning (Astúcia), Discreet (Discrição), Persuasive (Persuasão), Quick (Rapidez), Resolute (Decisão), Strong (Força), e Vigilant (Vigilância) - que são medidos em números que vão de 1 a 20.


No que diz respiro à raças jogáveis, temos cinco opções: Ambriano e Bárbaro (ambos humanos com algumas variações), Changeling, Goblin, e Ogre. Changelings são criaturas trocadas pelos elfos que sequestram crianças deixando para trás criaturas que assumem a forma humana. Eles parecem humanos quando bebês, mas crescem com peculiaridades élficas o que em geral significa ser desprezado pela família e forçado a viver por conta própria. Os Goblins tem uma expectativa de vida curta e também não são muito bem quistos pelos humanos, ainda que trabalhem em muitas cidades. Também possuem um gênio difícil com uma tendência a se meter em encrencas. Ogres também são pouco tolerados, mas eles são mais fortes e duros. Eles habitam florestas e sabem pouco a respeito de sua origem e papel, em geral são adotados por goblins e humanos que os encaixam em suas sociedades. Cada raça possui as suas próprias características inerentes à espécie, por exemplo, o povo de Ambria possui contatos e privilégios, Ogres tendem a ser robustos, enquanto Changelings conseguem mudar de forma.

Embora cada espécie tenha suas próprias características, todas personagens tem acesso a um conjunto de habilidades, onde cada qual representa um conjunto de capacidades e conhecimentos. O livro apresenta uma lista de trinta habilidades que vão de Acrobacia, Alquimia, e Emboscada até Feitiçaria, Visão de Bruxa e Magia. Também há habilidades atípicas como Berserker, Loremaster, Guerreiro de Escudo, Estrangular, e Ataque Duplo. Cada habilidade possui uma graduação de três níveis - Novato, Adepto, e Mestre - assim como algumas Características raciais. Então, por exemplo, no nível novato um personagem com a habilidade Man-at-Arms aprende como usar uma armadura adequadamente (aumentando sua eficiência em defesa); no nível Adepto, armadura deixa de impedir ações baseadas no atributo Rapidez; e na graduação Mestre, é possível adaptar a armadura para resistir ao efeito de certas armas que penetram a proteção. 

A criação dos personagens consiste em uma série de escolhas nas quais o jogador opta por um arquétipo e uma ocupação, seguido de uma raça. Pontuações são divididas entre os atributos ou um pacote de pontos pré-determinados são escolhidos e distribuídos em cada atributo. Seja qual for o método utilizado, um personagem não pode ter um atributo maior do que 15 ou menor do que 5. A seguir, ele tem 5 pontos para gastar em Habilidades (e algumas características), com nenhuma graduação sendo maior do que o nível de Adepto. Isso dá uma das seguintes opções: duas habilidades como novato e uma como adepto ou então cinco habilidades como novato. Por fim, cada jogador deve escolher dois aspectos a respeito de seu personagem. Um deles diz respeito ao objetivo do personagem, o outro trata de sua Sombra, uma expressão de sua essência espiritual e alinhamento. Por exemplo, personagens alinhados com a natureza possuem uma sombra com cores vibrantes, já aqueles devotados a civilização, possuem tons metálicos em sua sombra. Uma sombra corrompida ou conspurcada aparece escura ou manchada e assim por diante. A natureza e aparência da Sombra pode ser enxergada e interpretada por certas magias e habilidades como a Visão de Bruxa.


Symbaroum usa uma mecânica muito direta em seu sistema. Em essência, ele envolve um rolamento contra uma determinada dificuldade em um dado de 20 lados. Todos os rolamentos são realizados pelos jogadores e o Mestre sequer toca nos dados. Em uma cena, um jogador pode rolar seu atributo Vigilância para perceber a presença de um ladrão, e na cena seguinte testar seu atributo Discrição para não ser visto pelo mesmo ladrão. Esse sistema concentra nas ações dos jogadores todos os testes. Os modificadores tendem a ser estáticos ou opostos, ambos girando em torno de um espectro que vai de +5 a -5. Estes modificadores são inseridos de acordo com as circunstâncias, por exemplo, uma fechadura complexa impõe uma penalidade para ser aberta, enquanto uma parede com pontos seguros de escalada, garante um bônus. Tudo muito intuitivo e simples. Já nos testes opostos, um personagem com atributos superiores ao personagem que tenta a ação, impõe a ele uma penalidade, enquanto um com habilidades menores, garante um bônus.  

O combate utiliza uma mecânica similar. Acurácia é testada para fazer ataques e Defesa é rolada para evitá-los, mas ambos, o Dano e a Armadura - chamado dado de efeito - são rolados. O mais interessante é que não existe Iniciativa. Ao invés disso, a iniciativa é condicional. Portanto, um personagem com uma lança ou cajado podem atacar primeiro pois sua arma garante um alcance maior, mas apenas na primeira rodada pois depois o oponente consegue se aproximar para realizar seus ataques. Outros atributos também oferecem vantagens na iniciativa, como Sacar Rápido. Uma vez em combate, um personagem possui uma ação de movimento e uma ação de combate na mesma rodada. Qualquer dano sofrido pelo personagem é deduzido de sua Resistência. É importante notar que existe um Limiar de Dor, que se for ultrapassado em um único ataque acarreta na perda da consciência. A maioria dos monstros e NPCs morrerão ao perder todos os seus pontos de Resistência, já os jogadores estarão gravemente feridos e terão de fazer Testes de Morte até serem estabilizados, se recuperar ou morrerem em decorrência dos ferimentos sofridos.  


As Artes Místicas em Symbaroum são dividida em quatro tradições: Feitiçaria, Teurgia, Bruxaria e Magia, e cada tradição introduz sua própria lista de feitiços e rituais ainda que algumas sejam partilhadas por diferentes tradições. Cada Tradição, aliás, possui a sua ideologia e ponto de vista a respeito do uso da magia. Feiticeiros acreditam que o mundo já foi corrompido e abraçam essa corrupção através de magias profanas que visam escravizar ou impor sua vontade. Teurgistas são devotos do Deus Solar Prios, e utilizam as dádivas concedidas por Ele. Bruxas abraçam a natureza e, portanto, suas magias se refletem em efeitos sobre plantas, animais e elementos. Já os Magos trabalham seus encantamentos através de uma visão lógica e estruturada da magia como se ela fosse uma espécie de ciência. Em Ambria a Ordo Magica congrega os Magos em uma Sociedade que desenvolve suas próprias magias e rituais. Seriam estes os magos default.  


Em Symbaroum, magia faz parte do dia a dia e qualquer um pode aprender a lançar um encantamento ou realizar um ritual, mas mexer com essas forças pode ser perigoso. O risco da Corrupção está sempre próximo quando se aprende ou emprega uma magia. Tipicamente, a magia causa corrupção e personagens que a utilizam indiscriminadamente acabam sofrendo seus efeitos danosos o que atrai a atenção de caçadores de bruxas. É por isso que as tradições são tão importantes, uma vez que elas ensinam aos seus membros formas de lidar com a Corrupção e expurgar seus efeitos. Isso não impede que um Místico desenvolva Corrupção e se transforme numa aberração, mas ele saberá como proceder com maior segurança mitigando os danos. Em essência o uso indiscriminado (e prolongado) de magias e rituais é prejudicial e potencialmente perigoso. A Corrupção é insidiosa, ela vai aparecendo aos poucos em marcas pelo corpo e mudança de personalidade. A Corrupção, no entanto, não está restrita ao uso de Magia, pondendo ser adquirida pelo contato com lugares malditos ou criaturas impuras. Uma exploração da Floresta de Davokar, o combate contra algum monstro ou a descoberta de um artefato, podem disseminar Corrupção.

Mecanicamente, cada Tradição, cada Magia e cada Ritual são tratados como Habilidades com as mesmas três graduações. Com apenas três pontos para distribuir nessas Habilidades durante a criação dos personagens, um Místico irá dispor de um repertório de magias bastante enxuto. Symbaroum não possui uma diversidade muito grande de magias e rituais, mas de qualquer maneira, um Místico jamais irá possuir uma vasta quantidade dessas habilidades. As magias se enquadram bem nos temas das Tradições com boa descrição de seus efeitos, adicionalmente elas são mais práticas e discretas do que espetaculares e explosivas. 

Para o Mestre, há um capítulo com dicas e sugestões para criar as aventuras e regras opcionais que cobrem ataques críticos, falhas, morte por dano maciço e até permite aos jogadores criar personagens tomados pela Corrupção. Conselhos bem vindos a respeito de como lidar com situações inesperadas e aplicação de regras também podem ser encontrados nessa seção. Há um capítulo que trata especificamente de Monstros e Criaturas, que são divididos em níveis de desafio que vão de Fraco a Poderoso - o que permite escolher aqueles que mais se encaixam no nível do grupo. Os Monstros são Criaturas e Coisas - Seres de Horror e da Natureza Primeva - que habitam os Ermos e os Confins da Civilização. Há algo que remete às criaturas de One Ring, com terríveis aranhas, forças da natureza e seres bizarros que habitam o Coração da Floresta Davokar, espreitando os que invadem seus domínios. O tratamento de Symbaroum aos Elfos se destaca, colocando tais seres como uma raça incrivelmente alienígena para a humanidade, com tradições insondáveis e costumes bizarros. Antes que você pergunte, NÃO, Elfos não são uma raça jogável e nem adaptável para os jogadores.

Symbaroum já vem com um cenário pronto chamado "A Terra Prometida" (The Promised Land) que ironicamente não se passa em Ambria (o local mais importante da ambientação), mas nas Titãs, uma cadeia montanhosa entre Ambria e Alberetor. Os personagens estão atravessando a região, fugindo de Alberetor em direção à segurança de Ambria - A Tal Terra Prometida. O roteiro da história é linear e a escolha da localização é um tanto curiosa, sobretudo para quem leu e se empolgou a respeito da Floresta e demais lugares descritos detalhadamente. Dividido em três atos, com uma forte narrativa, o cenário faz um trabalho decente ao introduzir o sistema e alguns temas. Eu compreendo que a opção dessa aventura introdutória seja para introduzir os personagens em um mundo novo a ser descoberto e explorado nas futuras sessões, afinal eles estão apenas chegando, ainda assim, parece uma opção um tanto equivocada.

Mecanicamente, Symbaroum apresenta um sistema em que o foco primário está nos jogadores e nos personagens que eles interpretam. É um jogo complexo que demanda conhecer com profundidade a ambientação e dominar as regras para tirar delas o necessário para o desenvolvimento e aprimoramento dos personagens. Da mesma forma, se os jogadores não comprarem a ideia da ambientação e aprenderem o mínimo sobre ela, a experiência do jogo ficará comprometida. 

Fisicamente, o livro é impressionante, com um layout limpo e elegante, agradável de ler e prazeroso de folhear. A escrita é fluida e em geral a leitura se desenvolve de maneira agradável que o compele a prosseguir. Alguns leitores americanos reclamaram um pouco da tradução de alguns termos e da construção das frases, em parte pelo livro ter sido escrito originalmente em sueco, mas isso não deve atrapalhar o trabalho de tradução para o português.

É preciso elogiar a arte de Symbaroum que é simplesmente deslumbrante! Não estou exagerando, que livro bonito e que trabalho gráfico primoroso. As ilustrações parecem se integrar perfeitamente ao texto e passam toda a dimensão de escuridão e isolamento do jogo. Apenas de olhar algumas imagens surgem ideias e inspiração para narrar aventuras. Quando o trabalho dos artistas é tão evocativo, a função do mestre fica mais fácil. O fato das dimensões do mundo serem tão contidas num espaço geográfico consideravelmente exíguo, também desperta estranheza à primeira vista, mas esse no meu entender é um dos charmes do jogo. Ele permite que os personagens explorem praticamente a ambientação toda, ainda que, ao longo de muitas aventuras, eles perceberão ter arranhado apenas superficialmente os segredos e mistérios da região. 

Symbaroum se destaca como um jogo de fantasia com algo a mais. 

É um jogo onde os personagens enfrentam mistérios e encaram uma atmosfera de ameaça perene. Imagine que você entra em uma floresta e tem a sensação de estar sendo observado por uma presença invisível que você sabe ser perigosa, mas que não é capaz de ver. Esse é o clima do jogo! Além disso, é um mundo ao mesmo tempo violento e majestoso, com beleza e horror na mesma proporção. Nesse ambiente hostil, os personagens rapidamente aprendem a temer o que vão encontrar em suas incursões pela Floresta e receiam cruzar o caminho de outros povos. Não há certezas, não há garantias...

Para quem ficou curioso e interessado, aqui está o link para o Financiamento Coletivo. Ele já está financiado, então corre lá para dar uma olhada.

SYMBAROUM - CATARSE


terça-feira, 4 de dezembro de 2018

RPG do Mês - Starfinder - Aventura e Fantasia no Espaço Profundo (Parte 2)


O capítulo de equipamento talvez seja o mais impressionante e completo do livro. Starfinder apresenta uma VASTIDÃO de armas de energia (pistolas, carabinas e rifles), além de armas de combate corpo a corpo (como espadas, machados e lanças). Também há uma coleção de armaduras que concedem proteção mais adequada a determinados tipos de dano.

Com uma ambientação que mistura alta tecnologia e magia, é possível inventar uma quantidade absurda de equipamentos, e Starfinder não decepciona nesse quesito. É MUITA COISA! Temos desde pistolas que disparam energia concentrada, até rifles de plasma, carabinas elétricas, disparadores de ácido, espadas com moto-serras acopladas, granadas criogênicas, explosivos de todos os tipos e coisas que são até difíceis de catalogar em uma única seção. São páginas e mais páginas de armas e armaduras, cada qual com seus devidos efeitos e descrições detalhadas. É possível se perder por horas lendo as descrições de como esses engenhos podem ser usados para exterminar os inimigos. Além disso, para acrescentar um flavor todo especial, as armas possuem efeitos críticos muito bacanas que são adicionados ao dano gerando efeitos inesperados e muito divertidos.


Cada peça de equipamento tem um nível associado a ela. Isso permite calcular quais os equipamentos que os personagens podem ter acesso e quais deveriam ficar além de suas possibilidades em determinado momento da campanha. Esse sistema permite que o Mestre escolha os itens para serem dados aos aventureiros calculando aqueles que são mais adequados ao seu nível de experiência. Uma regra que, sejamos francos, é bem prática e muito bem vinda.

Outro elemento novo é que as armas podem ser manipuladas e adaptadas, fazendo com que elas ganhem características diferentes e desencadeiem efeitos inesperados. Essa "fusão de armas" tende a aumentar não apenas o poder, mas garante versatilidade. Da mesma maneira, armaduras podem ser adaptadas e melhoradas com adaptações instaladas.

As adaptações e melhorias nas armas e armaduras, contudo são apenas a ponta do iceberg quando examinamos a incrível variedade de modificações cibernéticas. Os personagens tem à sua disposição vários implementos que podem ser comprados e instalados em seus corpos para garantir todo tipo de vantagem bizarra e efeito esquisito. Se o personagem tiver suficiente dinheiro e contatos poderá adquirir os aperfeiçoamento cibernético que lhe agradarem.

Também existem armas mágicas e artefatos imbuídos com magia, embora estes não sejam mais tão comuns. Ainda assim, magia é uma força importante que não pode ser desconsiderada, mesmo em um mundo com carabinas de plasma, uma bola de fogo, continua sendo mortífera.


É claro que um jogo de ficção científica que se preze, deve ter uma quantidade de veículos e uma generosa coleção de naves espaciais. Starfinder tem um capítulo inteiro dedicado a naves espaciais que tem um tratamento todo especial. Elas são tratadas como uma mistura de NPC e equipamento, com estatísticas e características que podem ser acrescentadas a elas, conferindo-lhes atributos únicos, quase como personagens. E isso tem uma razão muito importante de acontecer...

A quantidade de diferentes modelos de naves é notável: muitas delas são incrivelmente estranhas, beirando o bizarro, concedendo um senso de estranheza que é muito bem vindo numa ambientação com tantas raças e culturas alienígenas. Há naves de vários tamanhos, desde pequenos caças de ataque rápido até colossais astronaves que mais parecem luas artificiais. Uma coisa boa é que essas naves parecem realmente diferentes e não algo calcado em clássicos como Star Wars ou Star Trek.

Naves aliás, são parte essencial de Starfinder e é através da criação de uma tripulação que se formam os grupos de aventureiros. Cada grupo de aventureiros possui a sua própria nave, que é compartilhada por todos os membros como se fosse o mais importante tesouro do grupo. As naves não são apenas um meio de transporte que te levam de um canto do universo ao outro; elas representam a casa dos personagens, onde eles passam a maior parte de seu tempo e onde vivem. Portanto, as naves podem ser melhoradas, transformadas, aprimoradas e negociadas. As melhorias visam tornar a nave cada vez mais poderosa, mas também confortável e eficiente. Nesse sentido, comprar mísseis e motores pode ser tão interessante para o grupo quanto aprimorar um laboratório de ciências, expandir o compartimento de carga ou ainda adquirir naves menores para serem transportadas no hangar.

Aventuras inteiras podem acontecer à bordo de naves e toda a ação pode transcorrer em uma acidentada viagem espacial ou depois de um defeito dos motores.


Tendo em mente como as naves são importantes para a ambientação, parece lógico que combates espaciais sejam também bastante detalhados. Há um capítulo inteiro a respeito deles, explicando como transcorrem batalhas e como o mestre deve descrever esses combates da maneira mais emocionante e excitante.

Os combates envolvendo naves espaciais ocorrem em um mapa tático hexagonal onde distâncias e tamanhos são completamente abstratos. Quem gosta e conhece minimamente Star Trek vai reconhecer muitos elementos da série nessas simulações de batalha. Cada jogador que compõe a tripulação à bordo assume um diferente papel na batalha e se dedica a trabalhar nas questões relativas a essa função. São elas: Capitão que comanda e decide as ações, Engenheiro que trata das questões relativas a movimentação, maquinário e escudos, Artilheiro que opera o sistema de armas, o Piloto que conduz a nave e trata da navegação e o Oficial de Ciências que trata de funções relativas a proteção e fornece respostas a diferentes situações.

Uma das coisas mais interessantes é que o sistema permite que qualquer tipo de personagem desempenhe uma função útil no decorrer de uma batalha. Um diplomata carismático pode assumir a função de Capitão, comandando os seus companheiros e obtendo deles o melhor desempenho. Um personagem com inclinação intelectual pode operar os sensores e evitar possíveis danos como Oficial de Ciências. O piloto irá mover a nave e colocá-la na posição perfeita para acertar o inimigo ou ficar longe dos disparos deles. No curso da batalha há muito mais a fazer do que simplesmente atirar e esquivar.

Ainda no que diz respeito às regras, boa parte da mecânica será facilmente assimilada pelos que jogam o sistema D20. Uma diferença interessante diz respeito a classe de Armadura que se divide em Armadura Cinética e Armadura de Absorção Energética, permitindo que diferentes armas sejam empregadas para cada situação visando explorar fraquezas.


Magia também possui um sistema reminiscente do D&D/Pathfinder, com a maioria das magias possuindo o mesmo nome e efeito. Com apenas duas classes de personagens com acesso a magia, estas são divididas em listas de nível zero a seis. O repertório é mais enxuto e menos intimidador. Ainda é possível usar magia para curar, controlar oponentes, encantar, ganhar vantagens, fulminar oponentes com raios e efeitos pirotécnicos etc.

O Livro Básico trás cerca de 100 páginas com informações gerais sobre a ambientação. O livro oferece um panorama geral de temas como o que torna esse universo único, os deuses, o comércio, as facções mais poderosas e ideias para criar suas histórias. Starfinder oferece inúmeras possibilidades narrativas e abre um vasto leque de opções para explorar um universo repleto de aventura e perigos.   

O Livro Básico apresenta planetas, luas, asteroides e estações que podem ser visitadas pelas tripulações em busca de ação, fortuna e glória. Esses lugares, no entanto, são descritos de maneira bastante econômica, sem aprofundar excessivamente os detalhes sobre localidades tão interessantes. O suplemento Mundos do Pacto (Pact Worlds) irá se concentrar justamente em descrever mais detalhadamente cada uma desses lugares e suas peculiaridades únicas.

Um dos lugares mais interessantes é a Estação Absolom, uma cidadela orbital que lembra muito a do jogo Mass Effect e que é um típico ponto de início de uma campanha graças a sua quantidade de opções. Verces também é muito atraente, um planeta sem translação com hemisférios fixos em dia e noite. Já Akaton, é um mundo à beira da catástrofe ambiental com um clima que remete a Athas (o mundo de Dark Sun) pela escassez e brutalidade. E esses são apenas alguns dos lugares a serem conhecidos.


A vastidão do espaço exterior contém uma infinidade de sistemas solares e de outros tantos mundos que podem ser facilmente construídos pelo narrador. Arquanad é um planeta consciente que mexe com a mente das pessoas que o visitam. Embroi, é um posto avançado de um plano infernal. Preluria é um gigante gasoso habitado por criaturas amorfas psíquicas.

Starfinder é basicamente Pathfinder em um futuro muito, muito distante, possivelmente alguns milhares de anos no futuro. O Planeta Golarion (o mundo base de Pathfinder) desapareceu, junto com a lembrança dele e arquivos a respeito de sua existência. Essa explicação ocorre por uma questão de cronologia, afim de que uma ambientação não esteja subordinada à outra e obrigue um jogo a se conformar os acontecimentos do outro. Há no entanto, enorme influência de Pathfinder na ambientação, criando um estilo de Space Opera com direito a Impérios Galáticos malignos, criaturas insectóides, piratas espaciais e outros elementos clássicos da fantasia misturados ao cenário espacial.

Uma vez que as ambientações estão tão próximas e acessíveis uma da outra, há um capítulo final que permite adaptar os personagens de sua mesa tradicional de Pathfinder para o universo de Starfinder. Isso abre algumas possibilidades interessantes relativas não apenas a viagens pelo espaço, mas pelo tempo, permitindo crossovers que podem justificar uma campanha inteira. Além disso, misturar elementos das ambientações aumenta consideravelmente a quantidade de perigos, ameaças e principalmente monstros, já que as criaturas de um, podem surgir na do outros aproveitando as mesmas estatísticas.

Se o mestre quiser alterar a perspectiva e chocar os jogadores que tal fazer com que eles viagem milhares de anos no futuro em uma época com naves e alta tecnologia? Ou o inverso, fazendo viajantes do espaço ter de lidar com perigos em terra firme num mundo de fantasia?

Eu gosto especialmente do fato de Spellfinder não ser uma ambientação Hard Sci-Fi, onde as leis da física e da natureza precisam ser respeitadas a todo momento. Uma vez que o universo de Spellfinder possui magia, tudo, literalmente tudo pode acontecer sem que pareça excessivamente forçado ou absurdo.


O livro tem o elevado padrão de qualidade presente nas publicações da Paizo. Quem já teve em suas mãos o Livro Básico ou algum suplemento de Pathfinder não vai estranhar o estilo da arte e da diagramação que recorre frequentemente a caixas de texto com informações complementares ao texto principal. As ilustrações seguem um padrão consagrado dos livros de Fantasia, com aventureiros em enfrentando situações de risco e ação. Há algumas boas imagens com paisagens alienígenas em planetas exóticos e do interior de naves e estações. O que não falta são imagens esquemáticas de armas e tecnologia que adornam páginas e mais páginas dedicadas ao capítulo de equipamentos. As ilustrações empolgam e mantém o padrão elevado que deve agradar.

Do ponto de vista do jogador, o Livro Básico de Starfinder possui tudo o que você necessita para construir seus personagens e mergulhar de cabeça nas aventuras. Da perspectiva do Mestre, falta algum suporte, nada que seja muito grave, já que muito pode ser construído, mas para a experiência completa, será preciso acompanhar lançamentos e buscar o Livro da Ambientação e de Monstros afim de expandir os horizontes.

Para fãs de Pathfinder, ouso dizer que Starfinder é praticamente obrigatório! Para aqueles que jogaram e/ou ainda jogam D&D em sua terceira edição, Starfinder será uma boa aquisição, visto que as regras são bastante próximas e não vão causar qualquer estranheza.

Além disso, Starfinder é um jogo incrivelmente divertido e com uma proposta alternativa que vale a pena conhecer. Afinal, o que pode ser mais divertido do que pilotar uma nave através de um cinturão de asteroides, enfrentar hordas de goblins ou repelir uma abordagem de piratas espaciais orcs?

*     *     *

Esse incrível jogo está desembarcando no Brasil através de um Financiamento Coletivo da Editora New Order que tudo indica será um grande sucesso - de fato, ele está indo bem demais! O projeto, realizado através da plataforma Catarse possui vários níveis e contempla dezenas de recomendas bastante atraentes.

Eu convido quem achou interessante a proposta, a dar uma boa olhada no Financiamento e conhecer esse excelente jogo de aventura e fantasia.

STARFINDER FINANCIAMENTO


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

RPG do Mês - A Bandeira do Elefante e da Arara - Um jogo com o DNA do Brasil




Uma coisa que sempre me incomodou profundamente no cenário de RPG brasileiro é o fato de que muita gente considera nosso país um lugar pouco interessante para criar ambientações de jogos.

É sério... não estou inventando.

Não foram poucas as pessoas que encontrei nesse tempo todo jogando RPG que disseram que o Brasil não possui "nada de interessante" para ser aproveitado em suas mesas de jogo. Francamente, acho que o problema vai muito além de desconhecer o folclore nacional e nossas tradições. Desmerecer o que é nosso, para alguns é uma maneira de ser descolado. Vai entender... Muitos jogadores preferem incorporar elementos de outras culturas, preterindo o folclore brasileiro como um todo, o que é bastante injusto.

Calma! Antes que digam que eu sou um desses defensores da proibição da Comemoração do Halloween no Brasil ou da implantação de aulas de tupi-guarani em escolas públicas, é bom traçar uma linha. Eu amo conhecer outras culturas e claro, como jogador de RPG, adoro explorar mundos inspirados pela Europa Medieval, me aventurar pela América Colonial, pelo Japão dos Samurais, por ambientações típicas dos povos nórdicos ou baseadas nas ricas tradições árabes como as mil e uma Noites. Existem RPG que usam essas culturas e suas tradições mais profundas como base para aventuras e que envolvem os jogadores de tal maneira que tornam a experiência de jogar muito mais do que uma brincadeira de "contar história". Fazem do simples ato de sentar em  uma mesa e rolar dados, uma forma de conhecer e aprender sobre esses povos e suas culturas.


Existe alguma dúvida de que quando jogamos num cenário se passando no Velho Oeste aprendemos a respeito da vida na fronteira? Quando nos aventuramos em um Cenário de Guerra, não conhecemos detalhes históricos que quase valem por uma aula? E o que dizer das histórias que bebem da fonte da mitologia apresentando para nós minotauros, medusas, rackshasas, golens, krakens e outras criaturas que estão enraizadas no folclore de outros povos. Tudo isso nos permite aprender, e que melhor maneira de aprender senão nos divertindo?

A pergunta central é: "Onde está o rico folclore brasileiro e nossas tradições quando se fala de RPG"?

Eu sei o que os jogadores mais antigos vão dizer: "E quanto aquele jogo que se passava no Brasil colônia"?

Sim, vocês estão certos! Décadas atrás existiu um sistema/ambientação 100% nacional chamado "Desafio dos Bandeirantes - Aventuras nas Terras de Santa Cruz"  que até onde sei, foi o primeiro RPG a abordar essa questão. Lançado no início dos anos 90, escrito por Carlos K. Pereira, Flávio Andrade e Luiz Eduardo Ricon, Desafio foi editado pela GSA e conquistou um lugar no coração da velha guarda dos jogadores brazucas.


As aventuras de Desafio dos Bandeirantes se passavam nas míticas Terras de Santa Cruz, um lugar que embora não fosse exatamente o Brasil Colônia guardava com ele enormes similaridades. Era um jogo muito interessante e com uma proposta incrível para a época!

Mas como todo empreendimento pioneiro, Desafio teve de lidar com alguns problemas que iam desde as regras - consideradas por alguns "pouco práticas", a produção tida por outros como desleixada, até a dificuldade de encontrá-lo para venda. Se RPG é uma mídia de nicho hoje em dia, que dizer dos anos 1990 quando o boca a boca era tudo que existia para divulgação e propaganda. Eu devo ter jogado Desafio umas duas, talvez três vezes em eventos, adorei o jogo, mas depois de um tempo ele simplesmente sumiu de circulação. Os rumores davam conta de que ele tinha sido descontinuado e que os autores não tinham interesse de trazê-lo de volta.

De lá para cá, o hiato foi extremamente longo.


Jogos com a temática "folclore nacional" praticamente sumiram no Brasil. Apesar de ter havido um fôlego aqui e ali, com GURPS e mais alguns jogos, não havia nada de muita expressão. Nesse período cansei de ouvir frases como: "não existe porque ninguém quer jogar isso", "essas coisas não interessam", "Saci, Cuca e Mula sem Cabeça são muito bobos" e tome blá, blá, blá...

Esse artigo a respeito de RPG com Temática Nacional terminaria aqui, não fosse uma reviravolta ocorrida em 2017.

Entra em cena um sujeito chamado Christopher Kastensmidt cujo nome indica claramente a sua origem estrangeira. Nascido em Houston, a bem sucedida carreira desse texano estava intimamente ligada ao mundo digital através do desenvolvimento de games, ao menos até ele resolver se dedicar exclusivamente a literatura. Casado com uma brasileira, ele se radicou no Brasil em 2001 e nesse período começou a se interessar pelo Folclore do país onde decidiu viver.

Sessão de autógrafos na Livraria Cultura no Centro do Rio de Janeiro. 
Foto ao lado do autor Christopher Kastensmidt e do ilustrador Rodrigo Camilo
A série "A Bandeira do Elefante e da Arara" se tornou rapidamente sua obra mais conhecida. O reconhecimento veio através da indicação de seu conto "O Encontro Fortuito de Gerard van Oost e Oludara", para o importante Prêmio Nebula

Passando-se no Brasil do século XVI, os livros da série "A Bandeira do Elefante e da Arara" saíram aqui pela Devir. A série narra as aventuras e desventuras de um holandês (Gehard Von Oorst) e de um Guerreiro africano (Oludara) durante o Período Colonial. Além de ter como pano de fundo as relações e conflitos entre nativos e colonizadores, as histórias se concentram no folclore nacional  e apresentam inúmeros seres mágicos como a Cuca, o Boitatá e o Saci habitando um mundo que mistura fatos históricos e fantasia.

Com todos esses elementos, não é de causar surpresa que a série "A Bandeira do Elefante e da Arara"  encontraria seu caminho e faria a transição do mundo da literatura para o Reino dos RPG de maneira quase natural. Obviamente, em nada atrapalha o fato da Devir por muito tempo ter sido quase que a única editora nacional, responsável por RPG no Brasil. Mas o elemento fundamental para que o livro se tornasse um jogo de mesa é o fato dele se encaixar perfeitamente nessa mídia. Sendo bem claro, "A Bandeira do Elefante e da Arara" possui todos os elementos de uma típica ambientação de RPG.


O RPG "A Bandeira do Elefante e da Arara" (doravante ABEA, por questões de economia e sanidade) se passa no mesmo mundo da série de livros de mesmo nome. Diferente de Desafio dos Bandeirantes, que utilizava um continente fictício, ABEA tem lugar no bom e velho Brasil de 1576, uma terra cheia de mistérios. 

Ainda em processo de exploração e ocupação pela metrópole portuguesa, a Colônia do Brasil constituía um enigma praticamente indecifrável para os exploradores e aventureiros que vinham dar por estas bandas. Os forasteiros que chegavam em busca de aventura e riqueza, em nome da fé ou da glória, nem imaginam o que encontrariam nessas paragens de beleza luxuriante. Até então, apenas uma pequena parte do litoral havia sido mapeada pelos homens brancos, pequenos assentamentos pontilhavam a costa recortada - com plantações, fortes e povoados simples. Seus moradores eram pessoas corajosas e endurecidas, vindas da cinzenta e fria Europa que se surpreendiam com o calor e as cores vibrantes do Novo Mundo. 

Enquanto isso, o interior, fascinante e incrivelmente perigoso, ainda era pouco conhecido. Nas florestas indevassáveis, com sua rica fauna e flora, diferente de tudo visto até então, habitavam orgulhosas tribos de nativos. Divididos em grupos étnicos e linguísticos, os índios - como eram chamados de maneira genérica, viviam em contato com a natureza, habitando grandes aldeias, tendo suas próprias tradições orais e costumes tribais, fazendo guerra ou celebrando a paz com seus vizinhos. Na marcha para o interior, em busca de ouro e pedras preciosas, os colonizadores cruzariam o caminho desses povos nativos, na maioria das vezes resultando em estranhamento, em outras tantas, em violência.


Finalmente, um terceiro elemento cultural se juntaria a esse cenário. Os negros africanos trazidos da África como escravos, tinham seus próprios costumes e crenças que passariam a ser, com o tempo, parte indissolúvel da mistura de raças, povos, línguas e tradições que dariam origem ao país. Dessas três raças básicas, nasceria uma miscigenação que marcaria para sempre o perfil do povo brasileiro. 

Mas além dos tipos humanos, o cenário é rico em habitantes fantásticos. EM ABEA as florestas fervilham com animais e vegetação selvagem além de seres míticos saídos direto do nosso folclore. Estão lá a Cuca, Curupiras, Capelobos, Mulas sem Cabeça e tantas outras lendas conhecidas e obscuras. Assim como acontece em outros RPG, esses monstros e seres mágicos se apresentam como os desafios e ameaças a serem superados pelos personagens dos jogadores.

Os jogadores assumem o papel de exploradores, bandeirantes, guerreiros indígenas, pagés, sacerdotes africanos e outros aventureiros. Não existem classes de personagem, os jogadores tem ampla liberdade para criar o tipo de personagem que bem entenderem, sem estarem ligados a pacotes de habilidades ou requisitos. Isso concede grande liberdade para a construção dos personagens, tornando o background mais importante do que combinações de números. Diferente de outros RPG, a ficha também não possui atributos básicos - não há Força, Destreza ou Inteligência, todas as características fundamentais são fornecidas pela lista de habilidades compradas pelo jogador durante a criação do personagem.


Criar um herói em ABEA é extremamente fácil. Todo o processo não demora mais do que alguns minutos, sendo que escolher um "Histórico" para o personagem é a etapa mais importante. O jogador escolhe aquilo que define seu personagem em poucas palavras - em geral, uma ocupação ou ramo de atividade seguido por ele. Com base nisso, escolhe sua raça, nacionalidade, natureza, comportamento e quais as suas motivações e código de conduta. O exercício de criação do histórico pode ser amplo e cheio de perguntas a serem respondidas (por exemplo quem são seus pais, qual a sua cultura, o que ele conhece do mundo etc.) ou mais rápido, se restringindo a alguns poucos pontos chave que ajudam a compor o perfil de seu aventureiro.

Uma vez definida a história, a etapa seguinte define o que o seu herói sabe fazer e o quão bem ele desempenha essas tarefas. Durante a escolha das habilidades, o jogador tem que escolher entre várias opções reunidas em uma longa lista que inclui desde perícias com Armas de Fogo e Esgrima, até Cartografia e Medicina de Campo. Existem três níveis ascendentes de conhecimento das habilidades - Aprendiz, Praticante e Mestre, cada um deles concedendo bonificações nos testes realizados.

Durante a criação do personagem, o jogador deve escolher UMA habilidade em que ele é Mestre, DUAS de nível intermediário em que ele é Praticante e SEIS habilidades em que ele é aprendiz, além de uma língua nativa. A ficha é bastante simples e funcional, ideal para quem está começando a jogar compreender seu funcionamento e dinâmica. O nome de cada habilidade é listado e o grau de conhecimento nela assinalado em círculos.

O modelo de um personagem de ABEA
A etapa seguinte é escolher as características do personagem. Cabe ao jogador escolher duas ou três características básicas de seu personagem que vão ajudar na interpretação. Essas características são vantagens, desvantagens ou traços de personalidade marcantes que  tornam o personagem mais interessante e real. Não existe uma mecânica de jogo por trás disso, são apenas diretrizes para conhecer melhor seu personagem. Acredito, no entanto, que o narrador pode usar boa interpretação desses traços como forma de recompensar o jogador no final de uma sessão. A lista de características também é bem longa e completa, incluindo traços como Honesto, Rancoroso, Repulsivo, Romântico entre muitos outros.

A etapa final envolve definir os Bens Iniciais do Personagem, aquilo que ele carrega consigo e leva em suas aventuras. Dependendo das habilidades e de seu nível nelas, o personagem pode iniciar o jogo já com alguns objetos vitais para o desempenho de sua profissão. Por exemplo, um carpinteiro já tem ferramentas adequadas e um soldado possui uma arma. Fora isso, cada aventureiro em início de carreira tem acesso a uma determinada quantidade de dinheiro que pode converter em bens e objetos. Novamente, existe uma lista com várias opções de armas e itens a serem adquiridos.

A facilidade na construção do personagem é proposital. ABEA não se propõe a ser um RPG muito elaborado no que diz respeito a mecânica, tampouco carece de uma longa reflexão para definir a progressão do personagem.


A mecânica do jogo é simples e direta, algo que para mestres e jogadores iniciantes será muito bem vindo. Ao meu ver essa simplicidade não estraga a diversão, mesmo para jogadores mais experientes, exceto os entusiastas hardcore de estratégia e mecânicas elaboradas. É bom deixar claro que ABEA foi concebido como um jogo de regras leves. Ele não tem pretensão alguma de ser denso ou colocar sua ênfase nos aspectos táticos. Interpretação e relações entre os personagens estão acima de tudo.  

O sistema utiliza três dados comuns de seis lados para definir os sucessos ou fracassos nos testes. Estes são lançados buscando igualar ou superar o grau de dificuldade definido pelo mestre. Dependendo da complexidade da tarefa a ser executada o número alvo pode ser 12 (Tarefa Fácil), 15 (Tarefa Intermediária), 18 (tarefa Difícil) e 21 (Tarefa Lendária). As habilidades em seus diferentes níveis de aprendizado fornecem bônus ao rolamento adicionando +3, +6 e +9 ao total obtido. Não há sucessos ou fracassos críticos. Mesmo não dispondo de conhecimento em certas habilidades é possível realizar testes, mas só em tarefas de grau de dificuldade fácil ou intermediário.

E é basicamente isso!


As lutas são parte importante de ABEA, mas não são o fio condutor das histórias: negociação e diplomacia são essenciais para evitar combates potencialmente perigosos. Um grupo muito beligerante pode ser facilmente derrotado depois de dois ou três confrontos.

O combate é bastante fluido e rápido, atendendo à mesma premissa das regras de teste de habilidades contra um número alvo. Existem algumas manobras e ações especiais que permitem causar mais dano, acertar com mais acurácia ou aumentar a defesa contra as investidas dos oponentes. São regras de fácil compreensão e bastante intuitivas. Os combates tendem a ser acelerados, definidos em poucas rodadas com o dano de cada arma já definido (sem a necessidade de ser rolado). A dificuldade para acertar o alvo é ajustada pela armadura, pelas defesas, pela velocidade do personagem e outros fatores a serem calculados. Todo personagem tem uma reserva de dez pontos de resistência e quando esta é reduzida a zero ele passa a sofrer danos críticos que ameaçam sua vida. As armas convencionais provocam uma determinada quantidade de dano: floretes, por exemplo, produzem 2 pontos de dano, enquanto um tiro de mosquete faz um estrago de 4 pontos. Parece muito, mas é consideravelmente menos dano do que o produzido por monstros e criaturas fantásticas que conseguem causar um dano maciço. Enfrentar monstros como o Bicho Papão ou o Labatut sem um plano ou preparação, pode ser letal. Além disso, certas criaturas possuem ataques especiais que causam medo, envenenam, paralisam ou afetam os aventureiros de maneira única. 

O bestiário de ABEA reúne uma boa quantidade de seres mitológicos extraídos de nosso folclore e é um dos pontos altos do Livro. Há Animais selvagens normais (onças, cobras, jacarés), Animais de grande porte (Serpentes gigantes, Morcegos Imensos), Criaturas Fantástica (Mapinguari, Arranca Língua, Boitatá), Bestas Sobrenaturais (Mula sem Cabeça, Lobisomens, Corpo Seco) e Entidades Gigantescas, chamados de Treme-Terras (Minhocão, Pai do Mato). Pinçados do folclore lusitano, da cultura indígena e das tradições negras, a coleção de seres mitológicos é bem numerosa.


O trabalho de pesquisa dessas criaturas foi muito bem conduzido, a descrição delas fornece uma boa ideia de como elas são, onde são encontradas e como agem em combate. Comparativamente o formato remete ao antigo D&D com as estatísticas em bloco fornecendo as informações listadas para serem usadas em jogo.

Em ABEA existe magia e poderes sobrenaturais que podem ser empregados pelos personagens dos jogadores que decidam seguir as carreiras adequadas. Há três tipos distintos de poder sobrenatural: a Fé (dos padres e religiosos europeus), o Fôlego (dos pagés indígenas) e o Ifá (dos Sacerdotes Africanos). Personagens com inclinação para o paranormal devem atender a certos requisitos, entre os quais jamais utilizar armas ou armaduras. O rol de magias é bastante restrito, são poderes canalizados através de testes de habilidade (com graduações) e que dependendo do resultado podem ter maior ou menor impacto - ou podem simplesmente não funcionar. Cada grupo possui seu próprio repertório de magias, que em geral são bem discretas e carecem de preparativo e elaborados rituais. 

Para alimentar a magia cada tradição dispõe de uma energia canalizada pelo realizador. Se essa energia for totalmente consumida ele não será mais capaz de usar seus poderes, o que em termos de jogo reduz muito as capacidades dos utilizadores de magia. Boa parte dos poderes servem para curar ou obter informações, há também poderes que encantam armas e concedem vantagens, contudo, não espere nada semelhante a bolas de fogo para fulminar seus oponentes.

O Livro Básico faz um trabalho adequado de pesquisa e apresentação. Não se trata, é claro, de um livro de História do Brasil, e portanto ele não busca ser uma fonte completa de informações sobre o tema. O que ele traz é suficiente para que o mestre e jogadores conheçam o necessário da história e ambiente no qual transcorre o jogo. Para saber mais, ele convida os participantes a pesquisar e conhecer à fundo a nossa história. Nesse contexto, ABEA é uma ferramenta educacional valiosa para professores e educadores.


Um dos apêndices, escrito pelo Prof. Rafael Jacques da IFRS, sugere aos educadores maneiras de utilizar o livro em sala de aula. Como empregá-lo como forma de incentivo à leitura e escrita criativa, como ferramenta de pesquisa acadêmica, meio de sociabilização, na promoção do raciocínio lógico, estímulo a comunicação e expressão, experimentação etc. 

O potencial a ser explorado é imenso! Nada melhor do que aprender de maneira divertida, contando com o incentivo de um hobby envolvente como o RPG. Não é de hoje que se propõe uma interação estrita dos RPG com a Educação; ABEA talvez seja o passo mais concreto nesse caminho. Tanto é verdade que o livro contou com apoio do Ministério da Cultura e da Lei de Incentivo à Cultura - como resultado possui um preço incrivelmente acessível para um livro dessa qualidade.

Fisicamente, ABEA é notável no que tange a qualidade gráfica, acabamento e diagramação. Totalmente colorido, o livro está no mesmo patamar de muitas publicações internacionais de RPG. Mas talvez seja na arte que se concentra um dos grandes atrativos do livro. Contando com um time de talentosos artistas nacionais - alguns deles já conhecidos mundo afora, ABEA tem uma seleção de ilustrações de encher os olhos. Muitos dos trabalhos remetem diretamente ao estilo e conceito dos livros de Dungeons and Dragons e acreditem, não ficam devendo absolutamente nada a eles. As ilustrações que estão espalhadas ao longo dessa resenha foram retiradas do próprio livro e é possível perceber a qualidade dos trabalhos. Julguem por si mesmos! 

Em imagens de página inteira mostrando aventureiros corajosos enfrentando monstros e paisagens naturais deslumbrantes, a exuberância do Brasil ganha uma paleta notável de cores. Eu fiquei de queixo caído com o que vi.


O Livro Básico já vem com uma aventura introdutória chamada "Fogos de Bertioga" que apresenta de maneira bastante didática os elementos principais do jogo: aventura, conhecimento e exploração. A aventura é explicada em detalhes e mesmo o menos experiente dos narradores encontrará poucos contra-tempos em rolar a história para seu grupo. Além dessa história, a página oficial disponibilizou algumas aventuras em formato de PDF para os mestres que querem ter menos trabalho. Eu ainda não testei as aventuras, mas estou ansioso para descobrir como jogadores iniciantes e veteranos irão se comportar.

A Bandeira do Elefante e da Arara sem dúvida constitui uma excelente introdução ao mundo fantástico do RPG ou Jogos de interpretação de Papéis (como ele identifica). Sabe a sua sobrinha ou seu afilhado que sempre perguntaram o que são aqueles livros na sua casa? Seu filho e os amigos dele, que sempre quiseram aprender a rolar dados? Pois é... esse é uma ótima oportunidade para quem quer compartilhar seu interesse pelos jogos de interpretação com iniciantes. A proposta de conciliar história com diversão, aprendizado com entretenimento é sensacional. E se ele ajudar a enterrar preconceitos com os quais nosso Hobby conviveu por tempo demasiado, melhor ainda. Mostrar de um vez por todas que RPG não precisa ser visto com reservas ou se tornar alvo de campanhas difamatórias. Pelo contrário, ele pode e deve, ser abraçado como o passatempo inteligente e estímulo a criatividade que é.  

Com todos esses méritos, eu não poderia indicar mais esse livro.


Link para a página oficial: https://www.eamb.org/brasil/

OBS: No dia em que esse artigo ia entrar no ar, o amigo Marco Poli de Araújo publicou no Facebook uma excelente resenha a respeito de A Bandeira do Elefante e da Arara. Vale a pena dar uma lida para obter mais impressões do jogo, mas também para conhecer outros dois RPG baseados no Brasil Colonial - Santa Cruz e Jaguarete, que eu francamente desconhecia e que me parecem interessantes dentro de suas propostas. 

Resenha ABEA - Marco Poli

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

RPG do Mês: Tales from the Loop - Concluindo a Resenha


E estamos de volta com a resenha completa de Tales from the Loop, o RPG que leva os jogadores aos "anos 80 que nunca existiram". Nessa segunda e última parte da resenha vamos falar das regras e do sistema da ambientação.

Pra começar, o sistema de Loop é bastante simples. A ideia por trás dessa simplicidade é permitir que as ações dos jogadores e sua criatividade ao interpretar os personagens seja o fio condutor da trama, mais do que rolamentos e os números expressos na ficha. Eu acho isso bastante louvável, sobretudo porque essa não é uma ambientação que deva ter um sistema pesado prevendo cada ação e cada resolução. Se assim fosse, o jogo sem dúvida perderia muito de sua leveza e encanto.

Quem conhece o sistema de Mutant: Year Zero vai reconhecer uma série de elementos presentes aqui que remetem diretamente a esse jogo. Loop usa uma simplificação do sistema, que por sua vez já é bem simples e direcionado. Mas antes de mergulhar no crunchy, vou falar dos personagens e como se dá a sua criação.


Os personagens são definidos através de Estereótipos bem claros que vão conceder as linhas gerais para criação do personagem. Esses estereótipos se concentram em arquétipos básicos de crianças/adolescentes em filmes do gênero. Qualquer pessoa que assistiu Goonies ou Strange Things vai facilmente ser capaz de identificar os heróis desses filmes dentro dos estereótipos apresentados no livro. No momento de criação dos personagens, a primeira coisa que o jogador faz é escolher um dos oito estereótipos oferecidos. Em linhas gerais, os estereótipos são os seguintes:

Bookworm (o Leitor) - Que é basicamente uma criança curiosa e inventiva, que se deixa envolver pelo estudo e pela vontade de aprender e compreender o mundo a sua volta. Em geral são pequenos gênios em alguma área. Nos anos 80 - ainda sem a internet, o conhecimento vem de livros e bibliotecas.

Computer Geek (Nerd de computadores) - Computadores, aparelhos eletrônicos e máquinas em geral desempenham um papel muito importante no mundo do Loop. Eles fazem arte do dia a dia de adultos e crianças. O Computer Geek é uma criança genial quando o assunto é entender como máquinas funcionam e adaptá-las para que funcionem como ele deseja. 


Hick (Caipira) - São crianças que vivem em áreas afastadas do ambiente urbano, geralmente no campo, em fazendas e propriedades rurais. Elas tem que dividir seus dias na sala de aula com tarefas vitais para o funcionamento de sua casa. Isso faz deles crianças mais focadas e adaptadas ao mundo adulto de responsabilidades e compromissos.

Jock (Esportista) - O ambiente dessas crianças são os campos e as quadras esportivas. Eles vivem aprimorando suas capacidades atléticas e refinando suas habilidades físicas até atingir a perfeição. São os heróis dos times do colégio. Em geral são competitivos, mas ótimos companheiros sempre dispostos a fazer tudo pelo time.

Popular Kid (Criança Popular) - Esses são os meninos e meninas que todos querem ser ou ter como amigos. Eles ditam as tendências e tudo o que fazem acaba sendo copiado ou virando moda para os outros. Os populares possuem um charme natural e uma capacidade inerente de convencer e liderar os demais, isso se não tiverem cedido ao próprio egocentrismo.


Rocker (Roqueiro) - Muito mais do que o sujeito de preto, com cabelo comprido e descolorido, o roqueiro adota um estilo de vida que prima pela liberdade. Ele é o rebelde que encontra na música uma forma de expressão que lhe permite escapar da dura monotonia em que as crianças estão geralmente confinadas.

Troublemaker (Criança Problema) - Nem todas crianças são obedientes e ordeiras, existem aquelas que não baixam a cabeça para nada e ninguém. Os adultos encontram dificuldades para lidar com essas crianças, e as chamam de "problemáticas". Essas são as crianças que se metem em confusões, brigam, praticam delinquência, furto, bully e todo tipo de transgressão das regras.

Weirdo (Esquisito) - Todo colégio tem um aluno que não se adapta e parece sobreviver por conta própria. O Esquisito parece viver em seu próprio mundo e não se importa com as convenções ditadas pela maioria. Ele não se vê como um rebelde, ele apenas expressa quem realmente é, e que se dane quem não gostou do que viu.


Uma vez escolhendo um desses estereótipos, o jogador define a idade de seu personagem. Isso é essencial uma vez que a idade concede o número de pontos que o personagem tem para ser distribuído nos atributos básicos. Portanto, se o seu Esportista tem 12 anos, ele terá exatamente 12 pontos para distribuir nos atributos. Em Tales from the Loop, os personagens devem ter qualquer idade entre 10 e 15 anos. A razão disso é muito bacana, o livro explica que depois dos 16 anos, os personagens deixam de ser crianças e suas preocupações passam a ser outras além de resolver mistérios e se meter em confusão com seus melhores amigos. É também a idade em que eles podem pegar um carro e fugir do perigo... portanto, quando um personagem completa seus 16 anos, ele se aposenta e está na hora de criar uma nova criança. Ah sim, não há nenhuma injustiça em receber menos pontos de atributos, optando por criar uma criança mais nova, digamos, de 10 anos. Embora nesse caso, seu personagem tenha menos pontos para distribuir, ele contará com uma quantidade maior de Pontos de Sorte que são essenciais para o jogo e que serão explicados mais adiante.

A ficha de Tales from the Loop apresenta quatro Atributos (attributes) distintos que englobam uma vasta gama de características:

Body (Corpo) diz respeito a todos os traços físicos e atléticos;
Tech (Técnico) se refere a conhecimento técnico e discernimento quanto a tecnologia em geral;
Heart (Coração) engloba as habilidades sociais de carisma e comunicação;
Mind (Mente) envolve a inteligência, sabedoria e senso comum.


Os jogadores devem distribuir entre 1 e 5 pontos em cada atributo, sendo que dois pontos é considerado a média e cinco o ápice que uma criança é capaz de atingir. É interessante que cada vez que o personagem faz aniversário, ele ganha um ponto extra e perde consequentemente um ponto de sorte. Cada atributo governa um conjunto de três Habilidades (skills), totalizando, portanto, 12. Quando o jogador escolhe um estereótipo, ele é informado de quais são suas Habilidades Chave inseridas no tipo de personagem: Um Esportista, por exemplo, tem como Habilidades Chave Força (Force), Movimento (Move) e Contato (Contact). Durante a criação do personagem, o jogador deve distribuir 10 pontos nas habilidades, sendo que naquelas que são definidas como chave ele pode alocar até três pontos, em todas as demais, o máximo é apenas um ponto.

Tudo é bem fácil e tranquilo e a customização depende apenas do que o jogador quer personificar entre os interesses da criança por ele criada. Para concluir o personagem, é preciso definir uma série de elementos que fazem o personagem ser único. Esses elementos incluem um problema, uma motivação, um orgulho e uma âncora.

O Problema (Problem) é algo que atormenta e assombra seu personagem e tira dele o sono. Os problemas servem para ser enfrentados e permitem o crescimento e aprendizado da criança.
A Motivação (Drive) é o que torna a criança apta a investigar um Mistério e tentar resolver um caso.
O Orgulho (Pride)  é algo que define a criança e faz dela um pequeno herói capaz de enfrentar as dificuldades quando estas se apresentam.
A Âncora (Anchor) é geralmente uma pessoa que serve como porto seguro para a criança quando as coisas estão ruins e que vai ajudá-la sem julgar ou bancar a condescendente.


Esses elementos ajudam a definir os traços de personalidade de sua criança e aquilo que a torna única durante as aventuras de Loop. Em seguida, cada jogador escolhe uma criança do grupo com quem tem maior afinidade e define secretamente o motivo pelo qual ele/ela é seu melhor amigo. Isso é interessante para formar a dinâmica do grupo no decorrer das sessões. Outro elemento interessante diz respeito a definir relacionamentos com NPCs criados pelo próprio jogador. Com isso, o "chapéu de mestre" passa momentaneamente para os jogadores e esses criam pessoas importantes que podem ser introduzidos no decorrer dos Mistérios como indivíduos que fazem parte da vida do personagem e que fornecem subsídios para o narrador escrever futuras aventuras.  

O jogador também precisa definir um Item Icônico para sua criança, um objeto que ele sempre está usando e que é de alguma forma importante para o personagem. Esse item icônico pode ser mudado no decorrer das aventuras, mas nunca pode ser perdido ou destruído. Ele sempre está ao seu alcance e quando empregado em um teste, concede uma bonificação.

Finalmente, resta escolher um nome, descrever a aparência e escolher sua música favorita. Pronto, seu personagem está pronto para enfrentar os Mistérios do Loop. O livro oferece mais uma série de perguntas que podem ser respondidas pelos jogadores para aprofundar o background de seu personagem, coisas como quem são os seus pais, como é seu quarto, se a família tem dinheiro e como é estudar no colégio ou viver na cidade. Essas questões ajudam bastante a construir seu personagem e é altamente recomendado responder ao menos algumas delas para se entrosar. Da mesma maneira, há uma lista de perguntas que podem ser feitas para o grupo que define a dinâmica e funcionamento deles como equipe, perguntas como: onde vocês se conheceram, onde vocês costumam brincar, quais são suas brincadeiras favoritas, onde vocês se reúnem, etc...


A criação de personagens é bem rápida e permite que os jogadores dediquem mais tempo a construir a personalidade de seu personagem do que combos mirabolantes. Como resultado, as características psicológicas de sua criança serão mais bem definidas e ela será bem mais do que uma série de números numa folha de papel.

O Sistema de Tales from the Loop utiliza apenas dados de seis faces. Estes são utilizados apenas quando surge uma Dificuldade (Trouble) que precisa ser enfrentada e superada. Este é um sistema de formação de Dice Pool, ou seja, o jogador soma o atributo e a habilidade mais adequados para superar a Dificuldade e rola um número de dados. O Número que deve ser obtido para obter sucesso é sempre SEIS. Todos os outros números são um fracasso. A primeira vista pode parecer muito difícil e especialmente cruel para os personagens, mas a ideia é que elas são crianças e como tal, as coisas tendem a ser mais difíceis. Em contrapartida, um sucesso obtido, geralmente é o suficiente para superar a Dificuldade encontrada.

Por exemplo, se o personagem precisa saltar um buraco para atingir o outro lado de uma sala, ele deverá rolar um número de dados igual a Corpo + Força. Ele rola todos esses dados e tenta obter pelo menos um seis, oq ue permite a ele transpor o buraco e vencer a Dificuldade.


Para ajudar a superar essas Dificuldades, os personagens possuem uma série de trunfos que aumentam o número de dados rolados ou incluem ao menos um sucesso automático. Utilizar objetos especialmente adequados para uma situação, por exemplo uma corda para uma ação de escalada, fornece dados extras (o mestre define de 1 a 3 dados). Usar o Item Icônico sempre concede +2 dados. Recorrer ao seu motivo de orgulho concede um sucesso automático e assim por diante. Em caso de uma falha, sempre é possível recorrer à Sorte e rolar novamente todos os dados para dessa ver conseguir resolver uma situação.

As regras permitem também Fazer uma Nova Tentativa (Pushing the Roll). Com isso, o personagem tenta superar a Dificuldade novamente buscando uma nova abordagem ou simplesmente sendo teimoso e não se dando por vencido. O problema é que tentar novamente pode ter consequências desagradáveis caso ocorra uma nova falha.

Em termos de jogo, as crianças não possuem "Pontos de Vida", ao invés disso, temos quatro condições que definem o estado de ânimo do personagem. Se uma dessas condições for obtida como resultado de uma circunstância (digamos levar uma bronca de um professor ou tomar um cuecão de um Bully) a caixa mais adequada deve ser checada e imediatamente o personagem tem um dado a menos para seus testes. As condições negativas incluem estados como chateado, assustado, exausto e ferido. Quando todas as quatro forem marcadas, o personagem está "quebrado", ou seja, não é mais capaz de agir e precisa ser levado até sua Âncora, para um lugar onde seus amigos o ajudarão a se recuperar ou até um local seguro onde ela possa descansar. Alguns personagens, sobretudo, os melhores amigos, podem ajudar a curar as condições e recuperar esse "dano" sofrido. É interessante notar que raramente as crianças em uma aventura de Tales from the Loop irão morrer, isso até pode acontecer, mas na maioria das vezes, elas apenas ficarão assustadas ou frustradas, raramente feridas com severidade.


Existe uma mecânica de grau de sucesso que permite ao personagem, no caso de múltiplos resultados positivos atingir uma proeza superior. Com vários sucessos, o personagem é capaz de ajudar seus companheiros ou realizar a tarefa com maior desenvoltura, graça e aptidão. Efeitos extras ajudam a resolver as situações de modo satisfatório com um resultado superior.

O sistema de Tales from the Loop é tranquilo de ser aprendido e fácil de ser transmitido para os jogadores. Uma breve explicação é suficiente para apresentar a mecânica, o que torna o jogo uma excelente opção para levar em Encontros e Eventos de RPG.

O livro dedica dois grandes capítulos a criação da Paisagem do Mistério, a cidade onde as aventuras de Loop irão se passar. Há dois cenários prontos, um na Suécia (as Ilhas Mälaren) e um nos Estados Unidos (na cidade de Boulder) que oferecem ótimas opções para centrar sua campanha. Francamente, no meu entender, o segundo é uma opção muito mais acessível. As duas cidades são bem parecidas, com cerca de 70 mil habitantes, casas suburbanas com cercas brancas, shoppings, lojas de conveniência, estradas e parques públicos. O grande diferencial da cidade para as demais é justamente a presença quase onipresente do Loop. As imensas torres, as instalações cercadas por muros altos e as luzes criam uma aura permanente de mistério. O que estaria acontecendo lá dentro?


A Paisagem do Mistério oferece um breve panorama de cada localidade, alguns habitantes que podem ser usados como NPCs e pessoas que podem aparecer na sua história como o delegado, médico, diretor do colégio são apresentados. No entanto, o capítulo não vai muito fundo nessas descrições, o objetivo é que os próprios jogadores contribuam para a construção das cidades e da população residente. Eu gosto dessa ideia de dar aos jogadores a oportunidade de desenvolver a cidade de acordo com suas próprias expectativas, sem falar que isso também desafoga o Narrador. Com base nessa contribuição dos jogadores, fica mais fácil para o mestre criar suas histórias e desenvolver as tramas centradas nos personagens.

Campanhas em Loop podem ser um pouco mais complicadas, já que os personagens tem um "prazo de validade" que abrange no máximo 5 anos de suas vidas. Em um primeiro momento Loop parece mais adequado para one-shots ou no máximo campanhas curtas. De fato, a proposta do jogo sinaliza com algo nesse sentido, contudo por se tratar de um mundo de fantasia e imaginação, tudo é possível. Penso em uma campanha se passando ao longo de um ano tratando de espionagem e guerra fria com agentes tentando roubar os segredos do Loop ou quem sabe uma campanha centrada em uma invasão silenciosa de alienígenas que planejam dominar a cidade e usar as instalações científica em seus planos. Há muitas opções e folhear o livro é o bastante para ter altas idéias para aventuras dentro de gêneros tão variados quanto fantasia, ficção científica, investigação e até horror.

Para ajudar o mestre a entender qual a pegada do jogo, o livro básico oferece não apenas aventuras prontas, mas uma mini-campanha composta de quatro episódios chamada "Four Seasons of Weird Science" (Quatro Estações da Ciência Bizarra). Como diz o próprio título, a campanha se passa ao longo de um ano com aventuras acontecendo cada uma em uma estação diferente. O título também dá uma pista do que trata a campanha ao mencionar "Ciência Bizarra". A trama é justamente sobre invenções estranhas, criações esquisitas e projetos científicos que saem do controle e ameaçam a população da cidade.


Eu gostei da campanha, mas é claro, as histórias precisam de uma pequena adaptação (um toque pessoal) para funcionar corretamente. Algumas são mais interessantes que outras, mas no geral, cada uma delas possui seus atrativos, a campanha é uma excelente maneira de introduzir os jogadores no universo de Tales from the Loop.

Caras, eu não tenho palavras suficientes para elogiar esse livro.

Não foi por acaso que Tales from the Loop abocanhou os principais prêmios do Ennies Awards (o Oscar dos RPG) em 2017. É um livro lindo, com uma arte e diagramação incríveis, texto fluido e gostoso de ler, ideias sensacionais e um sistema que casa perfeitamente bem na proposta. Para quem gosta do tema, ficou animado com séries no estilo Stranger Things e que sente uma onda de saudosismo cada vez que ouve os acordes iniciais de Beat It ou Thriller, esse pode muito bem ser o RPG que você estava esperando faz tempo.