A passagem dos Romanos pela região de Castanheira de Pera – Parte II   As Vias Romanas

 

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A propósito da identificação do período de construção da ponte de Pedra Sarnadas/Coentral, vale a pena trazer para a discussão as referências às vias de origem romana, feitas por alguns estudiosos deste período de ocupação do território português, nomeadamente por Mário Saa e Jorge de Alarcão.

Na grandiosa obra “As Grandes Vias da Lusitânia – O Itinerário de Antonino Pio”, publicada entre 1957 e 1967, Mário Saa, faz alusão à passagem, pelo nosso concelho, da estrada de origem romana – Estrada Mourisca a Leste – ligando a cidade do Porto a Elvas e a Sevilha1. Segundo o autor esta estrada era, na verdade, uma estrada romana e só depois da evacuação dos mouros o povo passou a designá-la por aquele nome. A razão principal dessa designação estaria no facto dela ser uma estrada internacional que ligava a cidade do Porto aos reinos mouros da Andaluzia.

Na mesma obra o autor faz também referência à antiga “Estrada de Santarém”, que passava igualmente no nosso concelho e era assim designada desde o século XII. Embora Mário Saa não faça menção ao período da sua construção, tudo leva a crer que se tratava de uma velha estrada de origem romana.

Refere ele sobre estas vias:

ESTRADA MOURISCA A LESTE“A sul do Mondego notámos a sua presença em Miranda do Corvo; e também nos cimos da serra da Lousã; e ainda na travessia do Zêzere em Pedrogão Pequeno; e, mais além, na vila de Amêndoa, no Chão de Codes e em Alvega…”

Mário Saa, depois de ter efectuado exaustivas buscas no terreno, designadamente na nossa região como se depreende das suas conclusões, e depois de ter interpretado os topónimos do contorno do território das terras de Guidim Testa2, descreve-nos o segundo lanço desta estrada compreendido entre Coimbra e o Tejo e dá-nos, também, informações sobre outras vias existentes na região, designadamente sobre a antiga Estrada de Santarém. Refere ele, então:

“A Estrada Mourisca descia de Coimbra ao Mosteiro de S. Jorge, sito a sul da cidade, àquela mesma distância de 3,5 Km. Daqui ascendia à Portela do Gato, donde descia sobre Almalaguês… Continuava descendo de Almalaguês para Miranda do Corvo, onde passava o Dueça na sua zona de vaus tinda agora conhecida por Porto Mourisco, pequeno espaço compreendido entre Miranda e o seu suburbano bairro de Montouro… A ascenção à serra da Lousã era feita sobre a lomba do seu mais suave contraforte. A «Estrada da Serra» (assim chamam, agora, a este troço do caminho Mourismo) é a começo lançado em planície baixa, do sopé, até ao início da ascenção em Espinho, antiga localidade estalajadeira.

O sulco fundo da Estrada trepa ao sinal geodésico do Pecegueiro3 (2,5 Km); depois, mais suavemente, ao do Espigão (2,5 Km), já no alto da Serra.

À esquerda e em baixo fica a Lousã, com o seu castelo ou torre de Arouce, nome que se lhe dava, e de que veio – com a respectiva sílaba paragógica na – o de Arouçana, mais tarde transformado em Alouçana ou Lousã.

Da Lousã para a Estrada Mourisca há íngreme ramal, de 7 Km, que nesta ingressa, entre os sinais geodésicos de Espigão e Espinho, ao sítio da Catraia, no alto da Serra.

Catraia4 é pequena habitação, a única no planalto, no entroncamento do sobredito caminho da Lousã. E era também cruzamento da Estrada Mourisca com a antiga Estrada de Santarém, referida em documentos do séc. XIII, como o foral da vila de Pedrógão (Grande). Era limite ocidental do termo de Pedrógão.”

O autor faz aqui um parêntese para descrever a ESTRADA DE SANTARÉM “A Estrada de Santarém procedia de Viseu (e de mais longe), e corria pelos lugares de Oliveira do Conde, Bobadela (conc. Oliveira do Hospital), Arganil, Goes, cimos da serra da Lousã, Catraia. Depois, descendo a serra da Antiga (por sobre Castanheira de Pera), pelos sinais geodésicos de Chão do Bardo, Alge, Ortiga, até Figueiró dos Vinhos; e daqui em diante até Santarém…”

Um pouco mais à frente na sua obra, Mário Saa dá-nos outras informações sobre esta a antiga via de Santarém referindo, nomeadamente, o seguinte na página 327, do Volume 6 (Livro X):

“De Côja vai a Arganil, depois Goes, daqui trepando aos cimos da Lousã. Na subida encontra o penedo do Signo de Salomão, que algum tempo servia de estremadura ao concelho de Pedrógão Grande, e que hoje se chamará simplesmente o Penedo.

Na descida para Tomar sulca a lomba da serra da Antiga, que vai por cima de Castanheira de Pera, na direcção de Figueiró dos Vinhos. No século XII era esta a Estrada de Santarém, dividindo aqui os concelhos de Pedrógão e Penela.”

 

Voltando à descrição do traçado da Estrada Mourisca a Leste, o autor acrescenta:

“De Miranda do Corvo, ou seja, do Porto Mourisco, ao Espigão, assinalamos 10 Km de curso. Do alto da Serra, sobre a qual se eleva ainda a montanha do Trevim, desce a Estrada Mourisca, circunvalando o fundo e largo fosso da ribeira de Pera, que aflui ao Zêzere em Pedrógão Grande. A Estrada vem descendo pelos lugares de Bolo, Derreada Cimeira, Venda da Gaita (aqui já sobreposta pela EN Nº 2), ermida da Conceição, sita 2 Km a norte de Pedrógão Grande. Não vai para esta vila, mas baixa imediatamente da ermida ao Zêzere, por Vale do Barco.

O autor dá grande relevância à importância histórico-militar das Estradas Mouriscas5. Diz ele:

“É fácil conjecturar o valor das Estradas Mouriscas, referidas nos antigos documentos. Serviam a translacções militares, da Idade Média, cristãs e mahometanas, nos seus sucessivos avanços e recuos. Por ela passaram as últimas hostes sarracenas, no abandono da terra, sobre a qual se expandiu Portugal.”

 

Mário Saa é um dos investigadores do período de ocupação romana de Portugal cuja obra “As Grandes Vias da Lusitânia — O Itinerário de Antonino Pio”, não está isenta de polémicas. Jorge de Alarcão, no seu Portugal Romano, de 1973, adverte, a propósito desta obra, “a ler com muita cautela”. Contudo essa advertência, feita na bibliografia selecionada quando cita a obra de Mário Saa, é comum a outros autores, não se limitando a este. O próprio Jorge de Alarcão, para além de outras, usou-a como fonte quando escreveu aquele livro, bem como a sua obra mais recente “O Domínio Romano em Portugal”, de 1988. A propósito das referidas vias, que tenho vindo a analisar – Estrada Mourisca a Leste e antiga Estrada de Santarém – é importante sublinhar que Jorge de Alarcão não põem em causa as pesquisas e a descrição que delas faz Mário Saa o que, de certa forma, confirma a sua muito provável existência desde a época de ocupação romana do território português. De facto, quando Jorge de Alarcão, no Portugal Romano, se refere à via romana “De Emerita[Mérida] a Bracara[Braga] por Viseu”, escreve o seguinte: ”Desta comprida via saíam certamente outras, servindo Bobadela, Medobriga, etc6.” Ora, esta Bobadela é a mesma que Mário Saa refere quando descreve a antiga estrada de Santarém e que, segundo ele, procedia de Viseu passando por aquela cidade romana localizada nas proximidades do concelho de Oliveira do Hospital. O próprio, Jorge Alarcão, confirma a localização de Bobadela e a sua provável ligação a importantes vias romanas. Refere ele sobre esta civitas romana: “Bobadela, perto de Oliveira do Hospital, não se acha citada no Itinerário7 nem nos geógrafos antigos. Não obstante, foi civitas splendidíssima, como diz uma inscrição achada no local. … Esta cidade estava com certeza ligada à via de Emerita a Bracara8”.

Curioso é constatar que Jorge de Alarcão, no livro mais recente O Domínio Romano em Portugal, embora mantenha alguma cautela quanto ao rigor da obra As Grandes Vias da Lusitânia, reconhece que Mário Saa, percorreu demoradamente o país, registando calçadas e pontes, miliários e centenas de outros vestígios arqueológicos, e, dessa forma, contribuiu de modo notável para a identificação das estradas romanas. As suas principais críticas centram-se agora nas propostas de localização de cidades, vici ou mansiones, o que revela algum refreamento, da sua opinião inicial sobre aquela obra. No que toca às estradas, Jorge de Alarcão considera que “o estudo completo das vias exige, porém, outras técnicas de análise, como a aerofoto-interpretação e o recurso aos documentos da Alta Idade Média, época na qual deveriam ainda utilizar-se muitos dos percursos romanos”.

Tal como outros autores também eu partilho a opinião de que, apesar das críticas que lhe são feitas, uma coisa é certa, Mário Saa teve o mérito de vaguear pelas terras portuguesas e registar na sua obra os vestígios de ruinas e de vias antigas, que foi encontrando ao longo do seu percurso, algumas das quais hoje irremediavelmente desaparecidas. Ele próprio, na introdução à sua obra, se refere a esse assunto.

“Este belo assunto tem sido de há muitos anos a minha preocupação constante. Com o direito que os muitos anos de pesquisa e estudo me conferem publico as conclusões a que cheguei”. E, mais à frente, prossegue: “Esta nossa obra, As Grandes Vias da Lusitânia, surge precisamente no momento em que se efectua o completo desfazimento da rede dos caminhos velhos, (nunca tal como hoje), rede que, por constância de circunstâncias naturais, trasladava para o nosso século a dos romanos. Estamos nos últimos dias dos sulcos viais da antiguidade. Em meia dúzia de anos tudo terá desaparecido. Esta nossa obra passará, então, a prova testemunhal do Passado, muito embora já distante dele…”.

 

Embora não haja absoluta certeza de que a Ponte de Pedra Sarnadas/Coentral tenha origem romana (por falta de estudos que possibilitem datá-la correctamente), há indícios que me fazem acreditar que por ela tenha passado uma antiga via romana. Suspeito mesmo que por ela passasse a antiga “Estrada de Santarém”. Por isso, sugiro que, até prova em contrário, passemos a designá-la “Ponte Romana Sarnadas/Coentral”.

E é, também, muito provável que existisse uma outra ponte de pedra, construída na mesma época, já na localidade do Coentral Grande, ligando as duas margens da Ribeira das Quelhas no sítio do “Porto”. De facto, na preciosa recolha feita por Jorge Bento no livro “Notícias da Freguesia do Coentral – até 1974”, edição do autor, de 2014, há uma nota sobre a actual ponte de pedra da qual se conclui que ela não é mais do que a reconstrução de uma outra mais antiga destruída, no ano de 1915, por uma enxurrada. Escreve ele sobre essa notícia desse ano: “Em Julho, é arrematada por 146$00 e começa a ser construída, uma ponte de pedra ao fundo do Coentral, uma vez que a anterior foi destruída por uma cheia”.

Nem sempre as estradas romanas obedecem às técnicas de construção tradicionalmente característica destas vias. Muitas delas não passavam de traçados rudimentares feitos ao longo das encostas serranas para atingir pontos estratégicos de defesa ou de transporte de matérias primas, com são exemplo os produtos de exploração mineira. Como diz Mário Saa as estradas romanas eram denominadas, por estes, “… vias militares”. Nas suas maiores extensões, eram sulcos abertos pelo trânsito das carretas, dos cavaleiros e dos peões.

Ora, como sabemos, existia uma estrada a norte do Coentral da Cruz que conduzia ao Cabeço do Pereiro, passando pelas Almas Cimeiras, da qual ainda existem vestígios junto deste conhecido nicho, assim como, um pouco mais acima, nas imediações da chamada “mina”, como documentou fotograficamente Filipe Lopo. Foi certamente por aqui que se fez, durante mais de dois séculos, o transporte da neve, nos ronceiros carros de bois, usando o velho troço da antiga Estrada de Santarém. Como também sabemos, bem perto do Coentral, no concelho de Arganil e de Góis, existem vestígios de um acampamento militar romano e de explorações mineiras, designadamente na Escádia Grande/Roda Cimeira, exploradas desde o período de ocupação romana do território nacional. Assim, não será descabido considerar que a Estrada de Santarém por aqui passasse e que a Ponte Sarnadas /Coentral constituísse uma das infraestruturas dessa via.

 

Deste modo, parece-me haver condições para encarar a possibilidade de propor, à Direcção-Geral do Património Cultural, a atribuição da classificação de Monumento Nacional à Ponte Sarnadas/Coentral.

 

 

Notas:

[1] O autor identifica também uma outra Estrada Mourisca a Oeste, de percurso mais reduzido ligando Montemor-o-Velho a Tancos e Barquinha. As duas vias mouriscas seguiam a par e a pequena distância uma da outra.

2 Terras situadas junto à linha do Tejo, doadas por D. Sancho I à Ordem do Hospital no ano de 1194. Nessa zona, de acordo com a doação régia, foi edificado o Castelo de Belver, assim chamado a pedido do monarca. O Ordem do Hospital teve na sua posse as terras de Pedrógão Pequeno, sendo plausível que em algum tempo possuíssem também as terras do termo de Pedrógão Grande. Contudo, não encontrei referências documentais dessa eventual ligação.

3 “Pecegueiro se diz, por Passagueiro.”

4 “Chama-se Catraia uma humilde venda ou taberna à beira dum caminho.”

5 A Leste, cujo percurso reproduzi nos parágrafos anteriores, particularmente no traçado que passava pela nossa região e, a de Oeste, ligando Montemor-o-Velho a Tancos e Barquinha.

6 Alarcão, Jorge de, Portugal Romano, Lisboa, Março de 1973, página 96, obra editada pela Verbo, no âmbito da colecção “Historia Mundi”.

7 O autor refere-se ao “Itinerário de Antonino”. Esta obra consiste num roteiro das vias do Império Romano, com indicação das cidades ou estações de muda (mansiones) por onde essas vias passavam, e as distâncias entre elas, tendo sido redigida, ao que parece, no início do século III d.C.

O “Itinerário de Antonino” foi baseado em documentos oficiais, provavelmente resultantes do levantamento efectuado na época de Júlio César e continuado na de Augusto. Dada a inexistência de outras obras tão exaustivas, este roteiro é considerado uma fonte fundamental para o conhecimento das vias e lugares do vasto Império Romano. Porém, desconhecem-se os seus autores, bem como a data precisa da sua redacção e publicação.

8 Idem, Alarcão, Jorge de, Portugal Romano, Lisboa, Março de 1973, página 99.

Contudo, de acordo com a mais recente obra de Jorge de Alarcão, Bobadela é o nome da povoação onde existiu uma importante civitas romana, desconhecendo-se ainda hoje a que cidade romana ela corresponde. Refere ele na página 47, do livro O Domínio Romano em Portugal: “Até agora, porém, não se achou a lápide que possa esclarecer o nome da cidade. Plínio, IV, 118, cita, entre as cidades stipendiariae da Lusitânia, três que não foi possível localizar: Cibilitani, Concordienses, Elbocori. Ptolomeu menciona, em posição central na Lusitânia, Elbocoris, Velladis e Verurium. Talvez alguma destas corresponda a Bobadela, mas só o achado de uma inscrição nos poderá um dia revelar o nome da cidade”.

 

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