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[O Nosso Idioma] - Histórias de palavras

Da história da palavra burro à expressão «tijolo burro»

Gonçalo Neves*

Sobre as origens e a história do uso substantivo comum burro, o tradutor e latinista Gonçalo Neves elaborou o estudo aqui apresentado, que começou por ser a resposta à seguinte pergunta do consulente Rogério Monteiro (professor universitário, Senhora da Hora, Porto): «Nunca consegui que me explicassem a origem do termo tijolo burro (nem mesmo pelos guias, quando visito a Itália) – o que está em causa é o termo burro, para classificar o tipo de tijolo. Há dias, vi um programa apresentado por um astrofísico americano de renome (Neil Tyson) que referiu algo como: burro vem do termo «vermelho», que, em latim, seria burrus, de onde derivou burro (português). Isto porque os livros em Itália eram encapados com um material avermelhado. Como os livros eram símbolos de cultura e, tradicionalmente, o burro é considerado um animal pouco inteligente, houve uma associação entre burro (animal) e a cor vermelha do tijolo, como quem diz que o burro tem muito a aprender... Ora, em Itália, burro (animal) é asino, e em latim, asinus. Em italiano, burro = manteiga (em português) e rosso = vermelho. Em latim, vermelho = vermis. Em suma, as explicações não se adaptam, ou, como diria o bom povo português, "as botas não dão com as perdigotas"! Poderá dar alguma luz sobre um termo que me preocupa faz muitos anos? Já procurei horas na Internet, mas sem sucesso.»


 

 

A pergunta formulada pelo nosso consulente suscita diversas questões de índole filológica, histórica e até social, às quais não é possível dar uma resposta definitiva e cabal. Por isso mesmo, vou dividir este texto em várias secções procurando cobrir os diversos temas sem entrar em detalhes demasiado técnicos.

A expansão de asinus e a noção de estultícia

Os romanos chamavam asinus ao animal que os zoólogos atualmente denominam Equus africanus asinus. Em português, como é sabido, este equídeo, entre outros nomes, é conhecido por asno, burro ou jumento, embora no Brasil o termo burro sirva igualmente para designar outro animal, resultante do cruzamento entre um cavalo e uma jumenta, ou entre uma égua e um jumento, ao qual se dá o nome de mulo ou macho em Portugal, e cuja fêmea é a mula.

Dos três termos referidos, jumento é considerado o menos depreciativo, talvez por derivar de iumentum, que em latim designava qualquer animal de carga, incluindo o cavalo, aceção que o italiano giumento mantém, embora o feminino giumenta, tal como o francês jument, signifique «égua». Na verdade, quando alguém diz ou comete algum disparate, falamos em burrice, asneira ou asneirada, mas é pouco provável que alguém se lembre de chamar jumentada a tal dislate, embora este termo também se encontre dicionarizado. Aquando da sua entrada triunfal em Jerusalém, Jesus não vinha montado num asno ou num burro, mas num jumento ou jumentinho, de acordo com as versões portuguesas dos Evangelhos. Esta distinção qualitativa existe igualmente noutras línguas que possuem vários termos para designar o animal em questão: para um grego, por exemplo, seria impensável chamar γάιδαρος (gáidaros) ou γομάρι (gomári), em vez de όνος (ónos), ao animal em que o Messias vinha montado...

O vocábulo asinus pode considerar-se um verdadeiro “caso de sucesso”, se atendermos à quantidade de descendentes que deixou, de forma direta ou indireta (nalguns casos, provavelmente, através do diminutivo asellus), não só nas línguas românicas (castelhano, galego e português asno, catalão e lígure ase, corso asinu, emiliano èsen, francês âne, franco-provençal âno, italiano asino, ladino azno, lombardo àsen, occitano asne, romanche asen, romeno asin, sardo àinu, siciliano àsinu, veneziano àxeno), como também nas germânicas (alemão Esel, dinamarquês æsel, holandês ezel, inglês ass, islandês asni, norueguês esel, sueco åsna), nas eslavas (bielorrusso асёл (asjol), búlgaro осел (osel), esloveno e checo osel, polaco osioł, russo осёл (osjól), nas celtas (bretão azen, galês asyn, irlandês asal), nas urálicas (estónio eesel, finlandês aasi) e até, por via do castelhano, em duas línguas ameríndias (aimará e quíchua asnu) e em três línguas austronésias faladas nas Filipinas (bicolano central, tagalo e waray-waray asno), para não falar das línguas planeadas (esperanto azeno, ido asno, interlíngua asino, occidental ásino).

Já em latim apresentava este vocábulo o sentido pejorativo de «pessoa desprovida de inteligência», transversal a tantas culturas, como se depreende do anexim asinus asinum fricat («um asno coça outro»), referente a duas pessoas que se desfazem em elogios mútuos, ou da expressão asinus ad lyram («um asno junto a uma lira»), que corresponde ao nosso ditado olhar como boi para palácio. O comediógrafo Terêncio (c. 195/185-159 a. C.), por exemplo, pôs as seguintes palavras na boca do nobre ateniense Menedemo (Haut., 676–677):

In me quidvis harum rerum convenit / quae dica sunt in stulto: caudex, stipes, asinus, plumbeus («A mim assenta-me tudo o que se chama a um imbecil: bronco, cepo, asno, tosco»).

Falta, nesta lista de Terêncio, o termo truncus («tronco, cepo»), que também andava frequentemente associado à ideia de estultícia, como neste passo de Cícero (106-43 a. C.): Qui potest esse in eiusmodi trunco sapientia? (Nat., I, 84): «Como poderá haver sabedoria num cepo destes?» Foi também a este termo que recorreu Carolus Rubricastellanus (Karl Heinz Graf von Rothenburg, n. 1934), latinista alemão que já verteu para latim, de forma magistral, 23 volumes das aventuras de Astérix, ao traduzir a expressão Chut! Imbécile!!! proferida por um chefe godo em Astérix et les Goths («Astérix e os Godos»), na página 11: tacedum, trunce! («Chiu! Imbecil!!!» na tradução portuguesa de Maria Teresa Galvão, publicada em 1974 pela Livraria Bertrand).

Voltando a asinus, importa referir a expressão asinus germanus, que quer dizer «idiota chapado», com a ressalva de este germanus nada ter que ver com os germanos ou com a Germânia, sendo antes um adjetivo homónimo que significa «natural, verdadeiro, autêntico, genuíno» e que deu origem ao nosso vocábulo irmão, derivado de (frater) germanus, expressão que designava o irmão consanguíneo, ou seja, filho dos mesmos progenitores. Embora haja divergências nos códices, é frequente abonar-se asinus germanus com o seguinte passo de Cícero: (Att. 4, 5): Scio [...] me asinum germanum fuisse («Sei que me portei como um idiota chapado»). A expressão terá conhecido algum fulgor no tempo da Reforma Protestante, altura em que, ao que consta, os reformistas teriam cunhado o anexim doctor Romanus, asinus germanus para se referirem à fraca preparação dos clérigos romanos. Faltam, porém, referências sólidas a este respeito. Seja como for, asinus germanus consta numa curiosa mas pouco conhecida coletânea de coloquialismos latinos compilada por Thomas Elsaesser1, na qual aparece com a respetiva tradução francesa entre parêntesis (un grand sot, «um idiota chapado»). Esta obra, integralmente escrita em latim, é recomendada pelo Circulus Latinus Honcongensis («Grémio Latino de Hong Kong»).

A concorrência a asinus em latim tardio

Apesar do imparável êxito de asinus, apareceram em latim tardio outros termos que começaram a concorrer com o mesmo e acabaram por deixar descendência em algumas línguas românicas e não só. Do grego σάγμα («cobertura; albarda; pilha») derivou o latim sagma («albarda»), que aparece na Vulgata (Lev. 15, 9): Sagma, super quo sederit, immundum erit («A albarda em que se sentar ficará imunda»). De sagma, que deu origem ao italiano soma e ao francês somme, vocábulos usados nas expressões bestia da soma e bête de somme, respetivamente («besta de carga»), bem como ao occitano sauma («jumenta»), provêm sagmarium, que designava a carga transportada por esse tipo de animal, e o adjetivo sagmarius, que qualificava o próprio animal e que passou a usar-se igualmente como substantivo. É deste vocábulo, do qual estão registadas algumas variantes em latim vulgar, que deriva uma série de termos que atualmente designam o jumento: aragonês somer ou somero, catalão somer (usa-se mais o feminino somera, «jumenta»), corso sumere, istriota samèri, italiano somaro. Está o mesmo na origem do alto-alemão antigo saumāri («animal de carga»), de que provém o eslovaco somár («jumento»).

Em latim tardio, estão igualmente atestadas as formas buricus, burichus, burricus, que designavam um cavalo de pequeno porte. Destes vocábulos, por derivação semântica, provém uma série de termos que atualmente significam «jumento» em várias línguas e dialetos românicos: castelhano e napolitano borrico, friulano buricj, italiano buricco, lombardo burìch, occitano borric, português burrico, sardo burricu, valão bourike. Também em tagalo, nas Filipinas, por via do castelhano, se diz boriko.

A noção de «vermelho» em latim

Nem sempre é fácil encontrar o equivalente vernáculo para as cores em latim, não só porque, na sensibilidade dos antigos, o conceito de brilho andava indissociavelmente ligado ao de cor, como pela considerável profusão de termos. No que diz respeito ao vermelho, o latim dispunha de inúmeros vocábulos para expressar os vários matizes desta cor: ruber, rufus, rubens, russus, rubicundus, purpureus, punicus, rutilus, coccinus, mineus, sanguineus, flammeus, etc. De todos estes, ruber pode considerar-se o mais genérico, pois indicava todos matizes de vermelho e ainda a zona vizinha do azul (purpura). De acordo com um notável estudo de Michel Brouillard, apresentado como tese de licenciatura em 15 de dezembro de 20122, Horácio (65-8 a. C.) ter‑se‑á servido de 42 termos, Virgílio (70-19 a. C.) de 53 e Ovídio (43 a. C.–17/18 d. C.), imagine‑se, de 56, o que torna esta cor a mais representada, sobretudo devido aos inúmeros vocábulos utilizados para descrever a coloração do sangue e do vinho. Descontando estes dois campos semânticos tão específicos, o vermelho, ainda assim, figura como a terceira cor mais representada, logo a seguir ao branco e ao amarelo. O nosso vermelho, porém, apesar desta riqueza vocabular, seguiu um caminho mais tortuoso, pois provém de vermiliu- (abonado em várias crónicas em latim tardio), que por sua vez descende de vermiculu-, diminutivo de vermis («verme»), isto porque a cor carmim era então extraída (e continua a sê-lo) de uma cochonilha a que os a zoólogos chamam Dactylopius coccus.

Quanto a burrus, trata-se de um empréstimo popular antigo, provavelmente por via indireta, ao grego πυρρός (pyrrhós, «da cor do fogo», de πῦρ, pỹr, «fogo»): Cícero escreveu (Or., 160) que Burrum semper Ennius, numquam PyrrhumÉnio dizia sempre burrus e nunca pyrrhus»). O termo pertencia à linguagem rústica e coloquial e teria o mesmo significado de rufus («vermelho, avermelhado»), a crer nas palavras de Paulo, o Diácono (c. 720-c. 799), um monge beneditino e historiador, em cuja obra De verborum significatu («O significado das palavras»), publicada por volta do ano 785, e que compendia outra com o mesmo título, da autoria do gramático Sexto Pompeu Festo (final do séc. II), podemos ler o seguinte:

Burrum dicebant antiqui, quod nunc dicimus rufum («Os antigos chamavam burrus ao que hoje chamamos rufus»).

A seguir acrescenta que unde rustici burram appellant buculam, quae rostrum habet rufum («é por isso que a gente do campo chama burra à vitela, pois esta tem o focinho avermelhado»).

Por último faculta ainda um pormenor deveras interessante:

Pari modo rubens cibo ac potione ex prandio burrus appellatur («Do mesmo modo, chama-se burrus a alguém que fica ruborizado no final de uma refeição, por efeito da comida e da bebida»).

A etimologia de «burro»

De acordo com o Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico (edição eletrónica, 2012), da autoria do filólogo catalão Joan Coromines (1905-1997), o castelhano burro é um «derivado regressivo» de borrico.

José Pedro Machado (1914-2005), no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, vol. I, 4.ª ed., 1987, p. 475-476) segue a mesma linha: «Creio também que burro se deve deduzir de burrico [...], não só por se documentar antes de burro (entre 1188-1230 [...]), mas também porque alguns derivados de burro pressupõem um radical burric-: burricada, burrical, burriqueiro, burriquete.» No entanto, ao contrário de Coromines, José Pedro Machado admite igualmente que burro «deve estar relacionado com o latim burru-», chamando a atenção para o facto de o burro ser «vulgar e frequentemente denominado “ruço”» e acrescenta mesmo ser «possível que já em latim o substantivo burrus tivesse o sentido de “asno”, sentido que depois se alargou, para designar outros animais, como se pode verificar, pelo menos no caso português, com alguns vocábulos da série borr-». José Pedro Machado não especifica de que animais se trata, mas é natural que estivesse a pensar em borracho e borrego, entre outros. Não consegui, porém, encontrar nenhuma abonação em latim, mesmo tardio, que sustente esta última hipótese. Como se viu, aliás, na obra de Paulo, o Diácono, burra, na linguagem rústica, significava «bezerra», e não «burra».

O linguista francês Antoine Meillet (1866-1936), no seu Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine (Tomo I, 4.ª ed., 1959, p. 78-79), referindo-se ao francês bourrique e aos vocábulos cognatos já mencionados neste estudo, admite que as formas românicas «remontam a *burriccus [...] e talvez também a *burrus».

Outras obras de referência (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2004, p. 248-249; Antônio Geraldo da Cunha: Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2.ª ed., 2001, p. 128-129; dicionário eletrónico Michaelis) indicam burru- como étimo direto de burro.

O Dicionário Eletrônico Houaiss apresenta a seguinte explicação etimológica de burro: «derivado regressivo do diminutivo latino bur(r)ĭc(h)us, “cavalinho”, que daria a acepção “jumento” e, por extensão, “indivíduo estúpido, pouco inteligente, teimoso”; pouco provavelmente originário do latim burrus, a, um, “ruço, vermelho, após comer e beber”, que daria a acepção “estúpido” e daí, por extensão, “jumento”».

Esta explicação é interessante por admitir, embora com a ressalva de fraca probabilidade, a hipótese de a aceção «pessoa pouco inteligente» poder ser anterior à de «jumento». O raciocínio poderia ser mais ou menos o seguinte: depois de comer e beber, o comensal, certamente mais devido à bebida do que à comida, ficaria burrus, ou seja, com a face ruborizada, e, provavelmente já com o grão na asa, comportar-se-ia de forma insensata, o que justificaria a deriva etimológica. Creio tratar-se de uma hipótese que merece consideração e estudo.

Refira-se ainda que o Online Etymological Dictionary, compilado por Douglas Harper com base em reputadas fontes, também opina sobre a origem de burro, pois este vocábulo existe igualmente em inglês, com a aceção de small donkey («burrinho»): «burro 1800, do espanhol burrico “burro”, do latim tardio burricus “cavalo pequeno e felpudo”, provavelmente de burrus “ruivo”, do grego pyrros “da cor do fogo, vermelho amarelado”, de pyr (genitivo pyros) “fogo”[...]. Ou, devido à pelagem felpuda, do latim tardio burra “lã”». A principal novidade desta explicação está no fim, como vemos, pois admite burra como possível étimo. Acrescente‑se, porém, que burra designava um tecido grosseiro, não necessariamente de lã.

As anteriores hipóteses ou explicações etimológicas podem resumir-se da seguinte forma:

burra- («tecido grosseiro») > burro

burru- («vermelho») > burro («jumento») > burro («estúpido»)

burru- («vermelho») > burro («estúpido») > burro («jumento»)

burru- («vermelho») > bur(r)ic(h)us («cavalinho») > burrico > burro

bur(r)ic(h)us («cavalinho») > burrico > burro

Sem querer complicar ainda mais a questão, não posso deixar de referir a expressão burrae vatroniae, que o glosador Pseudo-Placidus registou e interpretou como fatuae ac stupidae («imbecis e estúpidas»), explicando que provinha «duma comédia da autoria de Vatronius, intitulada Burra, ou da meretriz Burra» (a fabula quadam Vatroni auctoris, quam Burra inscripsit, vel a meretrice Burra)3. Sobre este comediógrafo nada se sabe além do que consta nesta glosa. No mesmo fragmento deste glosador, figura ainda o substantivo baburra, que Pseudo-Placidus interpreta como stultitia, ineptia («estupidez, inépcia»)4, o que, aliás, coincide com a interpretação que Isidoro de Sevilha (c. 560-636) dá ao adjetivo baburrus, que regista nas suas Etymologiae (X, 31): stultus, ineptus («estúpido, inepto»)...

No que diz respeito ao vocábulo italiano burro («manteiga»), apontado pelo consulente, trata‑se de uma carta fora do baralho, pois provém do latim butyrum («manteiga»), tal como o francês beurre, nada tendo que ver com os asininos...

O caso do tijolo burro

Chama-se tijolo burro a um tipo de tijolo maciço, de elevada resistência mecânica, com um volume de argila cozida superior a 85%, que normalmente apresenta medidas padronizadas (22 x 11 x 7 cm) e é utilizado sobretudo em trabalhos de alvenaria à vista (pilares, arcos de verga de portas e janelas, chaminés, churrasqueiras, etc.), onde pode ser disposto de diversas formas, dando origem a vários tipos de aparelho. Também se encontra a designação tijolo de burro, que possivelmente provém da primeira, embora não seja de excluir a hipótese contrária.

O já referido Dicionário Eletrônico Houaiss apresenta, como quadragésima (!) aceção de burro, a seguinte:

«adjetivo (1877) Regionalismo: Alentejo.

não cozido em forno (diz-se de certo tipo de tijolo).»

Ao contrário do que afirma o lexicógrafo, a designação tijolo burro não se circunscreve ao Alentejo, região onde, aliás, por vezes é designado por lambaz, embora, de acordo com um dicionário de engenharia civil em linha, um lambaz seja «um tijolo ou uma lajeta de cerâmica de barro vermelho, cujo processo construtivo é artesanal e possui dimensões superiores às normais em construção». Por outro lado, o tijolo burro é cozido em forno a altas temperaturas, ao contrário do que se afirma no verbete. Quanto à datação, peca a mesma por escassa, pois este tipo de tijolo é utilizado desde tempos imemoriais, embora possa ter tido outras designações.

No que diz respeito à origem desta designação, não encontrei qualquer explicação, pelo que me limito a apresentar aqui algumas hipóteses da minha lavra:

a) Caso burro seja entendido como um adjetivo, como sugere o Dicionário Houaiss, a hipótese mais plausível será considerá-lo diretamente derivado do latim burru- («vermelho»). Tal como o comensal ficava burrus («ruborizado») após a refeição, este tijolo também sairia burrus do forno, e daí a designação. Levantam-se, porém, dois problemas. Por um lado, não se conhece mais nenhum caso em que burro seja usado na aceção de «vermelho», o que é de estranhar. Por outro lado, este tipo de tijolo caracteriza-se por grande diversidade de texturas e cores. Ou seja, o que define um tijolo burro é o facto de ser maciço e resistente, e não o facto de ser vermelho. Há-os de outras cores, tal como há tijolos vermelhos que não são tijolo burro...

b) Continuando a considerar burro como adjetivo, poderá este ser corruptela de outro vocábulo, formado por via popular, e entretanto desaparecido ou irreconhecível.

c) Considerando burro como um substantivo aposto, poderá entender-se, tendo em conta as características deste tipo de tijolo, que aquele faz alusão à resistência e capacidade de carga do conhecido quadrúpede.

d) Se considerarmos que tijolo burro deriva de tijolo de burro, poderá burro referir-se a algum tipo de material originalmente utilizado no fabrico deste género de tijolo (lembremo-nos do latim tardio burra, anteriormente referido), a algum acessório empregado na elaboração do mesmo (por exemplo, o tipo de molde) ou mesmo ao local de fabrico (existem alguns topónimos com o nome Burro).

Seja como for, trata-se de uma questão envolta na névoa do tempo, que só poderá ser cabalmente esclarecida quando vierem à luz novos documentos.

1 Nos in schola Latine loquimur. Ars latine loquendi. Pueris, amatoribus fautoribusque linguae latinae dedicata a Thoma Elsaesser O. S. B. Maredsous. Nova editio emendata et aucta. Jules de Meester lmprimeur-editeur. Bruxelles 1909, p. 454; p. 48.

2 Michel Brouillard: Les couleurs dans la poésie latine au premier siècle avant J.-C. Université de Paris-Sorbonne – Paris IV. 2012. 23 p.; p. 10, 12.

3 Corp. gloss. lat. 5, 8, 20.

4 Classicorum auctorum e Vaticanicis codicibus editorum tomus III, complectens Mythographostres, fabulas Phaedri ut aiunt novas, Boethii opuscula duo, Cassiodorii supplementum, epigrammata vetera, geographum veterem, Gargilii Martialis fragmentum de pomis, Placidi glossas, et alia quaedam, curante Angelo Maio, Vaticanae bibliothecae praefecto. Romae. Typis Vaticanis. M.DCCC.XXXI. xxxii, 512 p.; p. 436.

22/04/2015

Sobre o autor

* Gonçalo Neves, tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 

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