A tensão crítica entre a palavra e a imagem

[06.dez.2010]

No trabalho que levou à Bienal, Jonathas de Andrade toma como referência uma série de cartazes propostos pelo educador Paulo Freire para a alfabetização de adultos, e estabelece relações entre novas imagens e palavras a partir de conversas que manteve com um grupo de mulheres analfabetas (vejam mais informações no site do artista).

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Jonathas de Andrade, Educação para Adultos, 2010.

Barthes disse uma vez que a língua é fascista, não porque impede de dizer, mas porque obriga a dizer (Barthes, A aula).  Usar uma palavra é filiar-se a uma estrutura cuja tradição espera impor um sentido. Cabe ao artista atuar em suas brechas, arrancar dela as ambiguidades e os contrassensos possíveis. Não só a poesia, mas também as artes plásticas conseguem às vezes explorar essa potencialidade da palavra.

Marcel Duchamp recorre à linguagem verbal de modo “sistematicamente irresponsável”. Ali onde se espera que a palavra apare arestas do discurso e ofereça maior precisão, os títulos, legendas e comentários de Duchamp fazem da obra um mecanismo repleto de folgas e solavancos. Um título como “A noiva despida por seus celibatários, mesmo”  (obra apelidada de “Grande Vidro”), tem sido objeto de debates inesgotáveis, mesmo depois de quase um século.

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La Mariée mise à nu par ses célibataires, même (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), 1915-23; La Boîte verte (Caixa Verde), 1934, com desenhos e notas sobre a obra "A noiva...".

Como diz Octavio Paz comentando a obra de Duchamp: “o jogo de palavras é um mecanismo maravilhoso porque em uma mesma frase exaltamos os poderes de significação da linguagem só para, um instante depois, aboli-los completamente” (O. Paz, Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza).

Magritte, A traição das imagens (Isto não é um cachimbo), 1928-29.

Magritte, A traição das imagens (Isto não é um cachimbo), 1928-29.

René Magritte mergulha na filosofia da linguagem, e expõe suas artimanhas de um modo tão simples quanto certeiro.

Num só gesto, Magritte desfere um duplo golpe: de um lado, ele nos lembra que o cachimbo é ali apenas uma imagem. Parece óbvio, mas o poder opressor da imagem reside na dificuldade que temos de percebê-la como tal, como representação.  De outro lado, como lembra Foucault, essa obra retira a linguagem do automatismo que parece tornar seu sentido natural, e demonstra que a palavra tem o poder de “dizer o que quer”,  apontando “sua própria autonomia diante daquilo que ele nomeia” (Foucault, Isto não é um cachimbo).

Como fará Jonathas de Andrade, Magritte também jogou com a forma das cartilhas de alfabetização.

René Magritte, La clef des songes, 1930

René Magritte, La clef des songes ("A chave dos sonhos": a acácia, a lua, a neve, o teto, a tempestade, o deserto), 1930

Ao mesmo tempo em que nos convida a imaginar que um objeto poderia ser chamado por outro nome, ele nos lembra – flertando também com o surrealismo – que o insconsciente é um lugar em que as ligações entre signos e coisas podem ser tão livres quanto poderosas.

O jogo entre imagem e palavra que Jonathas de Andrade cria em “Educação de Adultos” é bastante sutil, está longe do aparente nonsense que muitas vezes faz as obras de Duchamp ou Magritte parecerem herméticas.  Aqui, não chega a haver contradição: os objetos sugeridos pelas palavras estão também ali, visivelmente referenciados pela imagem.

Jonathas de Andrade, Alfabetização para Adultos, 2010

Jonathas de Andrade, Alfabetização para Adultos, 2010

Levando adiante o método emprestado de Paulo Freire, Jonathas de Andrade espera ir além do contrato – a relação arbitrária das palavras – que as cartilhas estabelecem. Exige-se das linguagens que elas sejam usadas num embate mais efetivo com a realidade.

Desse modo, palavras e imagens deixam de ser representações abstratas, tornam-se apropriações de fragmentos de experiências, apontadas por conversas que o artista mantém com o grupo de mulheres.

Algumas das relações que vemos parecem óbvias, mas basta dar alguns passos para trás, ampliar o enquadramento que fazemos da obra, situar como fundo não a parede da Bienal, mas a história recente do país, e veremos o poder crítico desse trabalho. Essa contaminação com a realidade multiplica irreversivelmente os sentidos da obra, e nos convida a extrapolar as relações propostas em cada cartaz. Ao se tornar “lúdico”, o trabalho se torna também “político”, duas qualidades que a pedagogia sempre valoriza, mas que raramente consegue conciliar.

Se a linguagem pode ser fascista, é preciso saber que nem toda alfabetização é libertária. Em princípio, ela visa garantir a compreensão e o cumprimento de uma ordem. Para ser libertária, a alfabetização deve estimular no uso da linguagem algum nível de abertura.

Voltando à Barthes: “só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (A Aula).


A série “Educação para adultos” pode ser vista na Bienal de S. Paulo, em cartaz até o próximo fim de semana (12/12). Vale ver também a entrevista que Jonathas de Andrade concedeu ao Olhavê.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

1 Resposta

  1. O trabalho do Jonathas eu gostei muito e este texto ampliou meu olhar.

    “Para ser libertária, a alfabetização deve estimular no uso da linguagem algum nível de abertura”.

    Como um Magritte que não é um cachimbo…?

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