No trabalho que levou à Bienal, Jonathas de Andrade toma como referência uma série de cartazes propostos pelo educador Paulo Freire para a alfabetização de adultos, e estabelece relações entre novas imagens e palavras a partir de conversas que manteve com um grupo de mulheres analfabetas (vejam mais informações no site do artista).
Barthes disse uma vez que a língua é fascista, não porque impede de dizer, mas porque obriga a dizer (Barthes, A aula). Usar uma palavra é filiar-se a uma estrutura cuja tradição espera impor um sentido. Cabe ao artista atuar em suas brechas, arrancar dela as ambiguidades e os contrassensos possíveis. Não só a poesia, mas também as artes plásticas conseguem às vezes explorar essa potencialidade da palavra.
Marcel Duchamp recorre à linguagem verbal de modo “sistematicamente irresponsável”. Ali onde se espera que a palavra apare arestas do discurso e ofereça maior precisão, os títulos, legendas e comentários de Duchamp fazem da obra um mecanismo repleto de folgas e solavancos. Um título como “A noiva despida por seus celibatários, mesmo” (obra apelidada de “Grande Vidro”), tem sido objeto de debates inesgotáveis, mesmo depois de quase um século.
Como diz Octavio Paz comentando a obra de Duchamp: “o jogo de palavras é um mecanismo maravilhoso porque em uma mesma frase exaltamos os poderes de significação da linguagem só para, um instante depois, aboli-los completamente” (O. Paz, Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza).
René Magritte mergulha na filosofia da linguagem, e expõe suas artimanhas de um modo tão simples quanto certeiro.
Num só gesto, Magritte desfere um duplo golpe: de um lado, ele nos lembra que o cachimbo é ali apenas uma imagem. Parece óbvio, mas o poder opressor da imagem reside na dificuldade que temos de percebê-la como tal, como representação. De outro lado, como lembra Foucault, essa obra retira a linguagem do automatismo que parece tornar seu sentido natural, e demonstra que a palavra tem o poder de “dizer o que quer”, apontando “sua própria autonomia diante daquilo que ele nomeia” (Foucault, Isto não é um cachimbo).
Como fará Jonathas de Andrade, Magritte também jogou com a forma das cartilhas de alfabetização.
Ao mesmo tempo em que nos convida a imaginar que um objeto poderia ser chamado por outro nome, ele nos lembra – flertando também com o surrealismo – que o insconsciente é um lugar em que as ligações entre signos e coisas podem ser tão livres quanto poderosas.
O jogo entre imagem e palavra que Jonathas de Andrade cria em “Educação de Adultos” é bastante sutil, está longe do aparente nonsense que muitas vezes faz as obras de Duchamp ou Magritte parecerem herméticas. Aqui, não chega a haver contradição: os objetos sugeridos pelas palavras estão também ali, visivelmente referenciados pela imagem.
Levando adiante o método emprestado de Paulo Freire, Jonathas de Andrade espera ir além do contrato – a relação arbitrária das palavras – que as cartilhas estabelecem. Exige-se das linguagens que elas sejam usadas num embate mais efetivo com a realidade.
Desse modo, palavras e imagens deixam de ser representações abstratas, tornam-se apropriações de fragmentos de experiências, apontadas por conversas que o artista mantém com o grupo de mulheres.
Algumas das relações que vemos parecem óbvias, mas basta dar alguns passos para trás, ampliar o enquadramento que fazemos da obra, situar como fundo não a parede da Bienal, mas a história recente do país, e veremos o poder crítico desse trabalho. Essa contaminação com a realidade multiplica irreversivelmente os sentidos da obra, e nos convida a extrapolar as relações propostas em cada cartaz. Ao se tornar “lúdico”, o trabalho se torna também “político”, duas qualidades que a pedagogia sempre valoriza, mas que raramente consegue conciliar.
Se a linguagem pode ser fascista, é preciso saber que nem toda alfabetização é libertária. Em princípio, ela visa garantir a compreensão e o cumprimento de uma ordem. Para ser libertária, a alfabetização deve estimular no uso da linguagem algum nível de abertura.
Voltando à Barthes: “só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (A Aula).
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A série “Educação para adultos” pode ser vista na Bienal de S. Paulo, em cartaz até o próximo fim de semana (12/12). Vale ver também a entrevista que Jonathas de Andrade concedeu ao Olhavê.
marcio ramos
O trabalho do Jonathas eu gostei muito e este texto ampliou meu olhar.
“Para ser libertária, a alfabetização deve estimular no uso da linguagem algum nível de abertura”.
Como um Magritte que não é um cachimbo…?